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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Dezembro 03, 2021

Vidas de histórias mínimas: viver com quase nada

Miguel Marujo

Agora que vem aí nova campanha eleitoral, regressará o argumento falso de quem vive do "rendimento mínimo", como se viver com quase nada fosse desejo. O CDS abusou desse pretexto para tentar destruir uma das medidas socialmente mais justas alguma vez concretizada, e hoje há um partido antidemocrático que ataca de forma primitiva e troglodita quem beneficia desta medida, enquanto ignora os desmandos de muitos que o financiam. Já em 2002, com o debate feito de falsos dados, fui ouvir quem trabalhava no terreno, para contar sobre estas vidas mínimas.

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Sérgio, 22 anos, seropositivo, casado, mulher também toxicodependente, um filho. Bateu à porta do rendimento mínimo, que o apoiou. Na altura, não lhe davam mais de um mês de vida. Dois anos depois, a doença permanece, mas a miséria não.

Até aqui chegar, o processo daquele jovem de Braga passou por passos simples, uma montanha quase intransponível para muitos dos beneficiários do Rendimento Mínimo Garantido (RMG), agora transformado em Rendimento Social de Inserção (RSI) pelo Governo.

“Ninguém tem acesso ao RMG de um momento para outro”, contrapõe o assistente social João Paulo Freitas à ‘vox populi’ que condena os eventuais facilitismos da medida. Só quem vive em “condições precárias” pode aceder à medida, explica quem já trabalhou no terreno com utentes do programa. “E têm de fazer prova dessas condições precárias.”

Mas afinal quem são os beneficiários do rendimento mínimo? Têm entre 25 e 44 anos, pertencem a famílias nucleares com filhos e têm uma baixa escolaridade. A miséria reproduz miséria: “Quando falamos de RMG estamos a falar do bas-fond da sociedade. Não há nada mais abaixo”, resume Ricardo Maximiano, psicólogo social, que acompanhou o programa até há meses. O PortugalDiário procurou vidas de histórias mínimas – aqueles que vivem com quase nada.

“Já sou alguém!”

Os técnicos deparam-se no terreno com casos de marginalização extrema. “Não se pode projetar uma solução para estes casos a partir do padrão de vida que temos”, defende João Paulo Freitas. “A um toxicodependente ressacado não se marca uma ida ao gabinete às 10 horas da manhã”, diz. Para este assistente social, a secretária foi muitas vezes a rua. E sublinha: “Não podemos dar respostas clássicas” a problemas que não o são.

O RMG (ou o seu substituto RSI) obriga qualquer beneficiário a “contrapartidas”. Afinal, esta é “uma medida de inserção, não de subsidiação”, justifica Ricardo Maximiano. Os desempregados têm de se inscrever num centro de emprego, as crianças das famílias beneficiárias têm de se matricular na escola e entrar no programa de vacinação. Os doentes iniciam tratamentos, os toxicodependentes procuram a desintoxicação.

As dificuldades começam aqui. Adultos sem qualquer tipo de documentação, crianças que nunca foram vacinadas ou observadas por profissionais de saúde. E romper este ciclo não é simples, conta João Paulo Freitas, que trabalhou no Casal Ventoso, em Lisboa, e mais recentemente na cidade de Braga. Entrar no registo civil, por exemplo, “é uma prova para eles”. No fim, lembra, muitos exclamavam com o bilhete de identidade na mão: “Já sou alguém!”

Ser alguém também é ter autonomia económica. A prestação para um adulto ronda os 135 euros (qualquer coisa como 27 contos), um valor equivalente à pensão de sobrevivência. Cada criança, se as houver, recebe 50 por cento do adulto beneficiário. Por isto, Ricardo Maximiano rejeita que haja “quem viva do rendimento mínimo e não queira trabalhar”. O que está em causa, em situações de fraude detetadas, “é a ‘chico-espertice’ de alguns, que até trabalham, e ‘sacam’ mais uns vinte contos [100 euros]”, acrescenta. Mas, defende, “estas fraudes são quase inevitáveis, como também as há no IRS, por exemplo”.

Do outro lado da moeda, “há situações complicadas de resolver”. Como o caso da mulher de 30 anos, divorciada, com dois filhos menores. De prestação do RMG recebia 52.400$00 (cerca de 261 euros), 26.200$00 (pouco menos de 131 euros), da mãe, mais 26.200$00, dos dois filhos. Foi-lhe proposto um emprego, com um salário de 65 mil escudos (não mais de 324 euros). Com uma diferença: a mulher precisaria de arranjar quem lhe cuidasse das crianças e necessitava de comprar o passe para os transportes. Feitas as contas, a situação deteriorava-se. “Em consciência, não é lícito recusar este emprego?”, questiona Ricardo Maximiano. Na verdade, são pobres, mas não são mal-agradecidos.

 

“Não há mais nada abaixo na sociedade”: quem recebe o Rendimento Mínimo

O perfil das famílias beneficiárias ao Rendimento Mínimo Garantido (RMG) parece ir ao encontro da caracterização de Ricardo Maximiano, psicólogo: “Não há mais nada abaixo na sociedade.”

Vejamos. Nos projetos urbanos concorreram principalmente “famílias precarizadas”, aquelas que vivem “em situações de pobreza extrema, sem rendimentos ou com rendimentos muito escassos, com dificuldades de sobrevivência”, e “famílias instáveis”, com uma “situação de pobreza determinada pela existência de rendimentos incertos provenientes de biscates e empregos ocasionais, situação de emprego instável nos adultos ativos”.

Nos projetos de zonas rurais ou semiurbanas predominam “famílias pobres-remediadas”, ou seja, famílias com rendimentos certos, mas escassos, vivendo com dificuldades.

A caracterização é de estudos de acompanhamento e avaliação, nos anos de 1997 e 1998, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE, encomendados pelo (então) Ministério do Trabalho e da Solidariedade. Hoje, ao fim de seis anos de Rendimento Mínimo Garantido, quase 800 mil pessoas passaram por esta medida. Atualmente são 118 mil famílias abrangidas pelo programa, num total de 344 263 pessoas.

Outro dado significativo, segundo números do Instituto para o Desenvolvimento Social: os “motivos da cessação a nível nacional” do programa revelam a importância da medida: 64,3 por cento dos beneficiários terminaram a sua ligação ao RMG por “alteração de rendimentos”. O “não cumprimento do programa de inserção” e a “não subscrição do programa de inserção” levou à cessação de 18,8 por cento dos benefícios.

No estudo do CIES de 1998, coordenado pelo sociólogo Luís Capucha*, refere-se que “os efeitos do RMG não podem ser medidos pelos acordos de inserção associados ou implementados”. O facto de existir para as famílias “uma fonte previsível e regular de receitas provoca por si só efeitos – por exemplo na capacidade de projetar o futuro – que não podem ser menosprezados”.

 

 

Artigos originalmente publicados a 7 de julho de 2002, em duas partes no PortugalDiário (jornal online do portal IOL, depois TVI24 online, hoje CNN Portugal). Os dados são dessa data. Foto: Victor, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons.

* – Luís Manuel Capucha (coord.), Rendimento Mínimo Garantido: Avaliação da Fase Experimental, Ministério do Trabalho e da Solidariedade/Comissão Nacional do Rendimento Mínimo e Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (ISCTE), Lisboa, 1998.