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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Novembro 24, 2021

O amor é cego. Como Berlim salvou os U2 e todos ganhámos

Miguel Marujo

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A 18 de novembro de 1991, quando aquele comboio entrou na estação de Berlin Zoologischer Garten, que todos resumem à Bahnhof Zoo, a história aconteceu. Há 30 anos, o mundo vivia uma estranha euforia, com uma Europa que tinha rasgado de par em par a Cortina de Ferro, a pesada fronteira que partia o continente entre Ocidente e Leste. As velhas utopias perdidas nas burocracias e ditaduras de Leste tinham soçobrado e o capitalismo sonhava cantar amanhãs — outra ilusão. Há 30 anos, já o Muro de Berlim tinha sido desmantelado dois anos antes, numa alegria contagiante, e outros muros invisíveis começavam a ser levantados.

É neste tempo que se ouvem os primeiros acordes de Achtung Baby, a provocação sonora que os U2 lançaram no seu regresso à Europa, com paragens em Berlim e Dublin. Naquele dia, ao sair na Zoo Station, o cartão de visita fez-se de guitarras eletrizantes e percussões pesadas, vozes distorcidas, insuspeitas e viciantes tonalidades eletrónicas, I’m ready, I'm ready for what’s next, e eles diziam-se prontos para o que aí vinha.

A surpresa morava logo a abrir o álbum. Num texto incluído na edição de luxo com que os irlandeses assinalaram os 20 anos de Achtung Baby, o jornalista Andrew Mueller, autor de vários livros “que vendem suficientemente mal para continuar no jornalismo”, reconheceu o preconceito que se esboroa aos primeiros segundos de audição do primeiro single, The Fly: “Um rockabilly claustrofóbico e barulhento, vagamente reconhecível como U2.” E acrescentou à paleta de sons ouvidos: “É difícil exagerar o quão surpreendente foi o contacto inicial com Achtung Baby — especialmente para aqueles que, como este correspondente e a maioria dos seus então colegas da imprensa musical da moda, há muito tempo haviam classificado os U2 como uns chatos pomposos e piedosos.”

Não admira a confissão. Os U2 vinham de um período de excessos, do salto para os estádios em digressões gigantes, depois da obra-prima The Joshua Tree (1987) e de uma viagem pelos Estados Unidos em Rattle and Hum (1988), um disco e filme feito como um épico americano que acabou mal recebido pela crítica. Em From The Sky Down - a documentary (2011) são os próprios que descrevem aquela travessia da América como algo penoso e triste. “Ele gravou quilómetros e quilómetros de takes, e não há alegria nenhuma”, diz Edge, referindo-se a Phil Joanou, o realizador de Rattle and Hum. “Aquilo não nos assentava, aquilo em que nos tínhamos tornado”, admitia, neste documentário.

Este final da década de 1980 acabou por desgastar o grupo de quatro amigos irlandeses — Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. — ao ponto de quase pôr um fim à banda. A história é conhecida, e repetida como um mantra: “Fazer Achtung Baby é a razão porque ainda aqui estamos”, diria mais tarde Bono.

“Isto soa demasiado a U2”

Aterrar em Berlim não foi fácil. O outono e inverno são muito frios e cinzentos na cidade. No livro que acompanha Achtung Baby Deluxe Edition, o autor americano Bill Flanagan (que escreveu U2 at the End of the World) descreve as tensões vividas nos estúdios Hansa, local que já tinha visto nascer algumas obras míticas de notáveis como David Bowie, Iggy Pop, David Sylvian, Nick Cave and The Bad Seeds, Siouxsie and The Banshees, Depeche Mode, Tangerine Dream ou Pixies. “O Hansa Studios podia estar cheio de história, mas era um estúdio desatualizado e desconfortável para gravar”, sintetiza Flanagan.

Para Larry Mullen e Adam Clayton, o pouco material que Bono e The Edge tinham escrito não era bom suficiente para fazer a banda mudar de direção. O grupo seguia o seu esquema habitual de encontrar novas ideias em conjunto para as canções, numa jam session, “mas eles continuaram a discordar, musical e filosoficamente”, descreve Bill Flanagan. “Se eles vinham com alguma coisa que soasse como uma grande canção dos U2, Bono e Edge protestavam que soava demasiado a U2. Larry e Adam objetavam: ‘Nós somos os U2!’”

Os quatro miúdos que se fizeram amigos e músicos na banda, não conseguiam agora falar a mesma linguagem. Enquanto Larry ouvia Led Zeppelin e Jimi Hendrix, The Edge explorava música como Einsturzende Neubauten, KMFDM ou os Young Gods. “É música industrial. Tem a ver com a utilização de repetição e com retirar a humanidade das coisas, até um certo nível, para que a humanidade que pomos tenha mais significado”, explicava-se Edge em From The Sky Down.

A ponte surgiu com One, que se tornou também uma das canções mais universais dos U2, como recordou Flanagan. Enquanto Edge, Adam e Larry tentavam acertar as notas de uma canção, Bono começou a improvisar no microfone sobre a tensão na sala, as discussões entre os membros do grupo: “We’re one but we’re not the same, we get to carry each other.” De todos aqueles momentos de tensão em Berlim, nasceu One, quando “os quatro baixaram os braços e começaram a colaborar”.

“Uma dádiva”, chamou-lhe Edge. “No instante em que estávamos a gravar, tive uma sensação muito forte do seu poder. Estávamos todos a tocar juntos na grande sala de gravação, um enorme e misterioso salão de baile cheio de fantasmas da guerra, e tudo se encaixou. Foi um momento reconfortante, quando todos finalmente disseram, ‘oh ótimo, este álbum começou’. É a razão pela qual estás numa banda — quando o espírito desce sobre ti e crias algo realmente comovente. One é uma peça incrivelmente comovente. Ela atinge o coração", confessou o guitarrista a Neil McCormick, em U2 by U2 (2006, ed. HarperCollins).

No seu U2 Songs + Experience (2018, ed. Carlton Books), Niall Stokes acrescenta Sonic Youth e My Bloody Valentine à lista de influências "mais pesadas" que se ouvia nas sessões de Achtung Baby. Mas este jornalista irlandês refere que, em simultâneo, os seus conterrâneos de Dublin desenvolveram um interesse por Roy Orbinson, Scott Walker e Jacques Brel, compositores de “torch songs”, canções de amores não correspondidos. Nas letras era este o caminho a seguir, defendia Edge, tornando-as mais pessoais. One é, de novo, um exemplo.

 

Brian Eno, que produziu o disco com Daniel Lanois, sintetizaria (na revista Rolling Stone, de 28 de novembro de 1991) o som que ali se começou a forjar. “Os termos da moda neste álbum eram trashy, descartável, dark, sexy e industrial (todos bons) e sérios, educados, doces, justos, rockistas e lineares (todos maus). Era bom se uma música te levasse numa viagem ou te fizesse achar que a tua aparelhagem estava avariada, seria mau se lembrasse estúdios de gravação ou os U2. Sly Stone, T. Rex, Scott Walker, My Bloody Valentine, KMFDM, The Young Gods, Alan Vega, Al Green e Insekt eram todos a favor. E Berlim... tornou-se um pano de fundo conceptual para o registo. A Berlim dos anos 30 — decadente, sexual e sombria — ressoando contra a Berlim dos anos 90 — renascida, caótica e otimista…”

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“Foi o momento em que a rock culture se encontrou com a club culture. Berlim significava textura, Manchester significava ritmo, ritmo que só podia ser criado usando computadores e máquinas”, argumentava Edge, enquanto Bono recordava a influência da música alemã, citando os Kraftwerk. “Aos 16, um dos primeiros álbuns que comprei para a [namorada] Ali foi o Man Machine. Isto é a música soul para a Europa. É a invenção da música eletrónica.”

É este choque que marca a diferença do disco, com pitadas de ironia.“A abertura de Zoo Station faz uma declaração poderosa: no seu uso deliberado de sons ‘industriais’, que não nos lembram de forma alguma os instrumentos convencionais; no primeiro plano da tecnologia, no início da música — na verdade, em tornar isso a afirmação de abertura do álbum — não há dúvidas de que os U2 adotaram recursos sonoros novos para eles. Mas o facto de ser um gesto deliberadamente hesitante coloca-o claramente no reino da sátira. Talvez satirize a própria tecnologia ou a novidade dos U2 abraçarem a tecnologia”, interpreta Susan Fast num ensaio intitulado “Music, Contexts, and Meaning in U2”, incluído na coletânea de textos Expression in Pop-Rock Music: A Collection of Critical and Analytical Essays (Studies in Contemporary Music and Culture), de 2000 (ed. Garland Publishing).

As pistas para a dança
A dance music, que Bono e Edge referem no filme-documentário sobre Achtung Baby, acaba por marcar o trabalho do grupo de forma evidente nos singles que vão sendo publicados, com remisturas das canções mais orelhudas para as pistas de dança, como Even Better Than The Real Thing ou Mysterious Ways, The Fly ou Who’s Gonna Ride Your Wild Horses, ou em lados B como The Lady With the Spinning Head ou Salomé. Mas também nos dois álbuns seguintes: Zooropa (1993), outra obra-prima, e que é um segundo capítulo de Achtung Baby (foi, aliás, publicado como um dos discos na já referida edição dos 20 anos, que incluía outros dois com remisturas, Über Remixes e Unter Remixes); e Pop (1997), que arriscava três canções a abrir (Discothèque, Do You Feel Loved, Mofo) que pareciam deixar para trás o rock — e os seus fãs dos anos 80.

Ouvindo hoje Achtung Baby, todas estas músicas-mais-pop-que-rock integram sem qualquer mácula o cancioneiro dos U2. “No seu novo habitat, os U2 apropriaram-se de novos sons e novas batidas, aparentemente sentindo-se tão confortáveis em saquear os reluzentes legados da vanguarda dos Kraftwerk, Can e Neu! em Berlim, como tinham feito com os blues empoeirados em Memphis”, regista Andrew Mueller. A própria herança do grupo é uma vantagem, acrescenta o jornalista, lembrando a Irlanda natal, uma rocha cravada entre a Europa e a América.

 

O alinhamento do disco regista esse caminho, com Zoo Station e Even Better Than The Real Thing a apontarem logo a abrir novas pistas para os sons do álbum. Se One fez tiro ao alvo dos clássicos da banda, Until the End of the World retomou os riffs de guitarra que se deixam enlevar numa percussão que pede corpos dolentes a dançarem. O realizador alemão Wim Wenders tinha-lhes pedido uma canção, a banda respondeu com este tema, dizendo-lhe que o queriam usar no disco e que lhe roubavam também o nome do filme. Em U2 Songs + Experience, Niall Stokes pergunta quais são os temas das canções dos U2 e The Edge responde: “Traição, amor, moralidade, espiritualidade e fé.” Stokes regista: “Traição veio primeiro.”

Who’s Gonna Ride Your Wild Horses e So Cruel, que se seguem, mantêm o registo da nova sonoridade experimentada nos Hansa Studios, antecipando The Fly, o single de apresentação do disco e que, já vimos, deixou todos baralhados.

U2-Achtung-Baby-Kv.jpgÉ Brian Eno quem melhor descreve o processo de composição do disco, num longo parágrafo, publicado em Achtung Baby Deluxe Edition. “Alguém chega com uma velha mistura em bruto que acabou de redescobrir e que, apesar de todas as suas deficiências, tem alguma coisa. O que é? Podemos conseguir sem abandonar tudo o que aconteceu desde então? Podemos obter o melhor de ambos? Quando falha, o resultado é diluído, comprometido, homogeneizado. Quando corre bem, passa a existir um híbrido, há uma sinergia de sentimentos e nuances que ninguém antecipou. Se isso acontecer, é novidade. Há muitas novidades deste tipo neste álbum: So Cruel é épica e íntima, apaixonada e tranquila, Zoo Station, de uma alegria maníaca e industrialmente jovial, Ultra Violet (Light My Way) tem uma melancolia envolvente, Mysterious Ways é pesado e leve. Encontrar um único adjetivo para qualquer canção mostra-se difícil: é um álbum de oximoros musicais, de sentimentos que não deveriam existir juntos, mas que de alguma forma são verosímeis.”

Para além das já citadas, toda a segunda metade de Achtung Baby é uma sucessão de outros oximoros musicais: Tryin' to Throw Your Arms Around the World, Acrobat e Love Is Blindness.

O amor é cego, bem se vê. “Por um momento, à medida que a velha ordem ia passando, os U2 exploraram a possibilidade de reconciliar muitas ideias aparentemente contraditórias e fazer tudo soar. Eles escaparam do canto em que eles próprios se tinham metido, no final dos anos 80, fazendo explodir a casa. Foi uma explosão linda. Podia ver-se o fogo de artifício a milhas. E ainda se podem ouvir os ecos”, concluiu Bill Flanagan.

Ícones pop

 

“Os U2 chegaram a Berlim do final do século XX em busca de uma musa e de uma metáfora, e partiram com o início de um álbum que pareceu surpreendê-los tanto quanto a todos. Era uma boa época para ser um iconoclasta — até mesmo para os ícones”, define Mueller.

“Apesar das ironias mordazes ouvidas ao longo de Achtung Baby — ou, talvez, por causa delas —, os U2 parecem que nunca se divertiram tanto nas suas vidas”, sublinha Andrew Mueller, apesar do batismo de fogo que significou Berlim. E esse divertimento foi transposto para o palco na Zoo Tv Tour.

Para a imagem de Achtung Baby, o fotógrafo e cineasta Anton Corbijn resgatou os Trabant, velhos carros de fabrico da Alemanha de Leste, para cortar com a imagem de quatro rapazes encasacados junto às árvores de Joshua (são também dele, Corbijn, as icónicas — lá está — imagens de Joshua Tree). “Da noite para o dia, o carro deixou de ser um símbolo de status muito desejado e tornou-se uma lembrança do passado”, escreveu Corbijn, que com as suas fotos ajudaria a transformar aqueles automóveis da RDA em ícones pop.

Como recorda o jornalista alemão Martin Scholz (também na Deluxe Edition), os U2 viajaram de avião para Berlim a 3 de outubro de 1990, apanhando o último voo da British Airways que pousaria oficialmente no território da República Democrática Alemã, a RDA, no lado oriental da cidade. Mas já aterraram no futuro, no dia em que a Alemanha foi oficialmente reunificada e a RDA deixou de existir. É a imagem perfeita para Achtung Baby: um disco que aterrou no futuro. E o Muro caiu de vez naquele 18 de novembro de 1991.

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[artigo originalmente publicado no 7Margens; fotos © Anton Corbijn, da sessão de fotografias para a promoção de Achtung Baby.]

 

 

Abril 28, 2020

Dez discos que influenciaram o meu gosto musical. 8

Miguel Marujo

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Pediram-me para escolher 10 álbuns que influenciaram o meu gosto musical. Um álbum por dia, 10 dias consecutivos. Pediram-me sem ordem cronológica, sem explicações, sem críticas, apenas as capas de álbuns. Mas não consigo deixar de contar um pouco da (minha) história de cada um deles. E à boleia acrescentar outras influências que nasceram daqui.

U2: The Joshua Tree

No tempo dos telediscos, em que a música também se via, aqueles rapazes divertiram-me em cima de um prédio até serem chamados pela polícia. Já disse que se ganha quando se é o irmão mais novo – e se ouvem coisas que os mais velhos trazem para casa. Foi o caso com os U2: Sunday Bloody Sunday e Bad já eram hinos para mim quando chegou um novo álbum, The Joshua Tree.

É o álbum da América, depois de The Unforgettable Fire, é a descoberta de uma América que os U2 nos apresentaram há 33 anos, quando a 9 de março de 1987 chegou às lojas esta carta de amor pelos Estados Unidos e que nos fez também apaixonar por essa América, de espaços a perder de vista.

É também para muitos o derradeiro disco que vale a pena ouvir dos irlandeses, esquecendo esses muitos que a banda se soube reinventar como poucos em Achtung Baby e Zooropa, o genial díptico berlinense, do início dos 90, e que nunca baixou a guarda, fosse no extraordinário Original Soundtracks 1, com Brian Eno, em Pop ou No Line on the Horizon, ou no modo inventivo como souberam transportar cada um dos álbuns, incluindo os menos conseguidos e mais fustigados pela crítica, para os palcos, como as derradeiras digressões de Songs of Experience e Songs of Innocence o demonstram.

Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. já nos contaram a sua história em 14 discos originais e muitas outras obras ao vivo ou em participações especiais e deixaram uma marca de génio que tanto moldou o meu gosto musical.

Foi a partir deles – e isto soará a sacrilégio para muitos! – que descobri os universos sonoros de Brian Eno e Daniel Lanois, que me embrenhei mais na América de Bruce Springsteen e Bob Dylan ou na poesia de Leonard Cohen (os irmãos também já tinham ajudado, mas os U2 convenceram-me), que me apaixonei pela voz de Johnny Cash e que me rendi a Lou Reed e a Siouxsie and the Banshees. Foi no deserto que encontrámos o amor.

Setembro 17, 2018

Eles dizem que são a melhor banda de rock’n’roll do norte de Dublin

Miguel Marujo

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Eles chegaram esta noite. Como gostaram sempre de fazer: de guitarra, baixo, bateria e voz. E uma energia desmedida, com truques de algibeira, um jogo cénico que joga com o espaço de uma forma deslumbrante — seja revisitando McPhisto, a personagem diabólica que encarna os fascismos e populismos da Europa, seja o desfiar das memórias de infância, no número 10 de Cedarwood Road, em Dublin, onde agora regressam num dia de chuva. 

Eles chegaram esta noite a um pavilhão sedento de canções (vivemos de novo o tempo das canções, avisou Bono), pedindo desculpa por terem demorado quase oito anos a voltar e agradecendo a paciência dos portugueses que esperaram por eles e retribuíram cantando em coro muitas das canções que já não ouvíamos há muito — e as que acabámos de conhecer nos últimos anos.

Eles, os U2, que é deles que falamos esta noite, convidaram-nos para a sua casa, percorrendo a sala em diferentes pontos, contando histórias de como experimentaram, ousaram, sonharam, namoraram e construíram, desfraldando bandeiras, a da Europa e a de cada um dos 28 países da União Europeia, cantando o Hino da Alegria, abençoando Portugal, Lisboa, Eusébio, Cristiano Ronaldo e António Guterres, denunciando fascistas, racistas, mentirosos, ditadores, dizendo que o que nos une é a Europa, este mesmo céu azul e de estrelas amarelas e que a droga que hoje queremos é o Espírito Santo. Sim, o Espírito Santo (já sabíamos que os rapazes têm fé).

Os U2 mostraram-nos o álbum de família, os vídeos de Iris, a mãe de Paul, o rapaz que hoje se chama Bono, que também fez de conta que telefonou a Ali, para lhe cantar o seu amor, You're the Best Thing About Me. E Summer of Love, que parece ser uma história de amor e afinal mete-nos nos barcos de refugiados que todos os dias atravessam o Mediterrâneo, esse mar plano, vindos da costa ocidental que é a Síria. Também houve Sunday Bloody Sunday, uma canção que nos recorda os troubles de uma Irlanda dividida em duas partes e as paredes de ódio e de quem quer paz. 

Os U2 mostraram-nos que o aparato cénico deve contar-nos as histórias e cantar-nos os sonhos que eles têm, de erradicar a pobreza, de esmagar os ditadores, metendo-nos a guerra dentro, como se estivéssemos em casa a ver um telejornal com imagens de Berlim em 1945 e da Síria nestes últimos anos, de Lisboa em 1926 ou Manchester ou Copenhaga ou Dublin na II Guerra Mundial, e os fascistas e extremistas que têm nome na Suécia de Democratas Suecos e muitos nomes na Itália ou na Polónia ou na Hungria.

Os U2 pegam em canções que porventura já não gostamos tanto (ah, antes é que era, dizem sempre alguns) e ensinam-nos que elas sabem-nos a hinos como os hinos de sempre: The Blackout como I Will Follow, Cedarwood Road como Until The End of World13 como One.

Os U2 sabem que podem ajudar um bocadinho a fazer a diferença. E não se cansam de o lembrar a quem os vê e ouve. E também o dizem com humor e auto-ironia. “Somos a melhor banda de rock’n’roll do norte de Dublin”, diz Bono. Não são nada. São mesmo a melhor banda de rock’n’roll do mundo. 

(foto da Cláudia, esta noite na Altice Arena)

Setembro 16, 2018

Rapazes de fé. Os U2 bebem na Bíblia sem medo

Miguel Marujo

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Quando este domingo e segunda-feira à noite os U2 subirem ao palco do antigo pavilhão da Utopia, em Lisboa, dificilmente alguma das pessoas ali presentes dirá que vai ver o concerto de uma banda cristã, que não o é, ou que quer ouvir mensagens cristãs, que as há.

É antes a música e o espetáculo (e quase só a música e o espetáculo) que leva os milhares de fãs à Altice Arena, na busca de uma utopia que os irlandeses continuam a procurar reinventar, reinventando-se, com mais ou menos ousadia – e mais ou menos sucesso – quase 40 anos depois do seu primeiro disco, o EP Three (1979). Trata-se de uma questão de fé, para Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr., como para aqueles que os seguem de forma indefetível. Crentes uns e outros, e uns nos outros.

 

Nunca renegando um vínculo ao cristianismo, e em particular ao catolicismo, os U2, nomeadamente o seu vocalista, Bono, carregaram sempre uma espiritualidade muito própria: eram “uma espécie de irmandade”, como os definiu The Edge, crentes nos únicos “dois grandes sacramentos”, a amizade e a música, em que uma fé inabalável na sua capacidade de vingar também representou a vontade de melhor cantar essa sua fé. “Eu só vou onde há vida, sabe? Onde sinto o Espírito Santo. Se é no fundo de uma catedral católica romana, na quietude e no incenso, que sugerem o mistério de Deus, da presença de Deus, ou nas luzes cintilantes de uma tenda revivalista, eu apenas vou onde encontro a vida. Não olho para a denominação”, confessou Bono ao Christianity Today.

Esta ponte entre o sagrado e o profano é seguida de perto pelo vocalista do grupo irlandês. Em 2005, numa exposição sobre a Bíblia, em Lisboa, no âmbito do Congresso Internacional para a Nova Evangelização, liam-se estas palavras de Bono: “Sou um músico ‘escrevinhador’, fumador de charutos, bebedor de vinho, leitor da Bíblia. Sou um exibicionista que adora pintar quadros daquilo que não vê. Um marido, um pai, amigo dos pobres, às vezes dos ricos. Um ativista vendedor ambulante de ideias. Jogador de xadrez, estrela de rock em part-time, cantor de ópera no grupo pop mais barulhento do mundo. Que tal?”

Órfão de mãe, Bono escreve ao sair da adolescência I Will Follow, o tema de abertura de Boy, o primeiro álbum, lançado em 1980 (e que certamente se ouvirá agora de novo em Lisboa, como tem acontecido nesta The eXPERIENCE + iNNOCENCE Tour). Notou que “este era um tema que ninguém tinha ainda explorado, no rock and roll – o fim da angústia da adolescência, a enganadora arte da masculinidade, a sexualidade, a espiritualidade, a amizade”.

 

 

No jornal L’Osservatore Romano recorda-se como Bono olhava para o rei David, dos tempos bíblicos: “Aos 12 anos adorava David: para mim era como uma pop star, as palavras dos salmos eram poesia e ele era um ídolo. Antes de se tornar profeta e rei de Israel, David passou por muita coisa. Viveu exilado e acabou por ir viver para uma caverna, onde fez as pazes com Deus. É aí que esta história se torna interessante: David compõe os seus primeiros blues.”

Perante uma afirmação destas, o jornalista do órgão oficial da Santa Sé verifica que “dito assim, tem todo o ar de uma afirmação irreverente”, mas Gaetano Vallini prefere ler esta ideia de Bono “como uma declaração de fé muito original”.

É tempo então de olharmos para as letras (na sua esmagadora maioria escritas por Bono), para lá do imediatismo das palavras. Trata-se de uma tarefa facilitada por Andrea Morandi, crítico musical e autor do livro U2. The Name Of Love (Roma, Arcana, 2009), que nos guia por esta “pesquisa filológica singular”, como lhe chama Vallini no L’Osservatore Romano. Trata-se de uma obra na qual são analisados todos os textos de Bono, desde o primeiro álbum, Boy (1980) até No Line On The Horizon (2009), na altura o último trabalho editado pelos U2. Depois disso, os irlandeses lançaram Songs of Innocence (2014) e Songs of Experience (2017), os trabalhos que mais alimentam a atual digressão.

 

 

Morandi considera que “a presença da Bíblia nos primeiros registos era uma coisa conhecida, mas que continuou de forma persistente até que [em No Line On The Horizon] foi uma verdadeira descoberta”. Para o autor italiano, neste 12.º álbum, canções como Magnificent, que remete para o Magnificat (o hino colocado na boca da mãe de Jesus, enaltecendo a presença de Deus e condenando os poderosos e os soberbos) ou Unknown Caller, onde este estranho que chama é o Deus que salva, fecham um círculo perfeito: a religiosidade omnipresente dos primeiros trabalhos – como Boy, October (1981), War (1983), mas também The Unforgettable Fire (1984), The Joshua Tree (1987) e Rattle and Hum (1988) – antecipa a entrada na última década do milénio, no regresso a uma Europa em que a queda do muro de Berlim abre novas esperanças e dúvidas insistentes. Achtung Baby (1991) e Zooropa (1993) são essa nova Europa onde se perde a fé. E Bono também canta essa fé perdida.

No prefácio ao livro de Morandi, Davide Sapienza pergunta: “Quem imagina o quanto seria uncool ser fã de um grupo que nas canções e entrevistas falava de Deus, citava a Bíblia, concluía os concertos com uma (esplêndida) canção inspirada num salmo, e que era publicamente caracterizado por um líder sem pelos na língua, como uma intenção de condenar as ideologias e falar sobre pontes a serem construídas para ligar as margens opostas de um longo e doloroso pós-guerra?”

Em The First Time, canção de Zooropa, Morandi reflete sobre como Bono “se entrega”, confessando “ter perdido a bússola e os mapas, a razão e a religião, os limites e as fronteiras”, a partir da parábola do filho pródigo. As referências bíblicas, que se fazem notar em todos os álbuns dos U2, traduzem-se em passagens dos textos de Bono: “Gave me the keys to his kingdom coming”, canta ele em The First Time, numa remissão para o evangelho segundo Mateus (16, 19). Ou “He said ‘I have many mansions/And there are many rooms to see’”, que nos remete para São João (14, 2).

 

 

Gaetano Vallini nota que Morandi nos apresenta Pop (1997), disco em que os U2 se abalançam a linguagens mais dançantes, como um álbum “cheio de discussões com Deus”, à procura da estrada perdida, mas difícil de encontrar. “Deus desligou o telefone”, canta Bono em If God Will Send His Angels.

Também o díptico recente de Songs of Innocence e Songs of Experience aproxima-nos desta espiritualidade, até pelo grafismo: a capa do disco de 2014 é a foto de um pai e do filho (na realidade, Larry e o seu filho), transmitindo a relação única entre progenitor e criança; e a mais recente revela-nos dois adolescentes (filhos de Bono e The Edge), de mãos dadas, ela com capacete militar. Estes dois álbuns foram inspirados no livro de poemas Songs of Innocence and Experience, do místico e poeta inglês do século XVIII, William Blake. E Bono seguiu o conselho de um outro poeta irlandês que lhe disse para escrever “como se estivesse morto”.

Muitos podem estranhar esta “forte religiosidade”, nota o jornal L’Osservatore Romano, “numa estrela de rock do calibre de Bono e num grupo tão conhecido e comprometido”. “Mas as músicas estão lá para o provar.” Exemplos mais ou menos óbvios: Gloria, de October; Grace, de All That You Can’t Leave Behind (2000), Yahweh, que remete para o nome hebraico de Deus, “Eu Sou Aquele Que Sou”, em How To Dismantle An Atomic Bomb (2004); ou Cedars Of Lebanon, de No Line On The Horizon. Ou ainda 40, de War, cujo texto bebe o título, a inspiração e frases no Salmo 40, completadas com uma linha que, ao longo destes 35 anos, milhares e milhares de fãs repetiram nas mais de 400 vezes que a canção já foi interpretada ao vivo: “How long (to sing this song)”, por quanto tempo teremos que cantar esta música? – e que Bono encontrou no Salmo 6.

 

 

"Deus está interessado numa arte honesta e não em publicidade”, como já defendeu o vocalista dos U2, que encontra nos textos dos salmos uma fonte de inspiração para a sua escrita. Para aqueles que não creem, Bono aponta o Salmo 82 como um “bom começo”: “Defende os direitos dos pobres e dos órfãos. Que devemos ser justos para os necessitados e sem esperança. E salva-os do poder de pessoas más. Isto não é caridade, é justiça.”

Foi este mesmo sentido de justiça que levou Bono a empenhar-se nas campanhas que, antes do ano 2000, defenderam o perdão da colossal dívida externa dos países mais pobres, e que o fez encontrar-se várias vezes com o Papa João Paulo II, que pugnava pela mesma causa. E é ainda este mesmo sentido de justiça que fez Bono decidir desfraldar uma bandeira da União Europeia no final de concertos. E que leva Bono, no arranque da digressão europeia que agora chega a Lisboa, a defender uma Europa que deve ser sentida, pelas suas “múltiplas afinidades” e “identidades estratificadas”: “Ser irlandês e europeu, ser alemão e europeu, sem que se excluam mutuamente. A palavra patriotismo foi-nos roubada pelos nacionalistas e radicais que exigem a uniformidade. Mas os verdadeiros patriotas procuram a união acima da homogeneidade. Reafirmar isso é, para mim, o verdadeiro projeto europeu.”

(texto publicado originalmente no blogue Religionline)

[foto inicial: Stufish, dos concertos da atual digressão]

Janeiro 19, 2018

U2 em Lisboa. Vem aí uma lição de rock

Miguel Marujo

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Depois da digressão dos 30 anos do álbum The Joshua Tree, durante o ano de 2017, é tempo de os portugueses ouvirem (por fim!) os U2 com a sua digressão Experience+Innocence, após a reação um pouco mais do que morna a Songs of Experience (2017), o álbum que dividiu a crítica especializada. Será a 16 de setembro, em Lisboa, na Altice Arena (com bilhetes à venda a 26 deste mês).

Há uma verdade incontornável: um concerto dos U2 não deixa ninguém indiferente. Sejam fãs indefetíveis que ouvem sempre a sua música como uma liturgia que se renova nos detalhes ou se transmuta em grandes passos (e assim se podem resumir os quase 40 anos do percurso da banda); ou sejam aqueles que descreem da salvação da humanidade pela música destes quatro rapazes irlandeses, desde The Joshua Tree (1987) ou, pelo menos, desde o díptico berlinense de Achtung Baby/Zooropa (1991/1993).

Uma qualquer concerto dos U2 faz de um imenso estádio uma sala de estar, as colunas no máximo, um grande grupo de amigos à volta de hinos mais ou menos reconhecíveis e que têm marcado gerações.

Esta digressão que trará os irlandeses a Lisboa já andou pela América e pela Europa, numa primeira versão depois da publicação de Songs of Innocence (2014). A Innocence+Experience Tour de então demonstrou o experimentalismo visual que a banda sempre ousa nas suas digressões com um palco único e inovador em 360º.

A tour de 2015 acabou por ficar marcada pelos atentados em Paris, na noite de 13 de novembro desse ano, que atingiram também a mítica sala parisiense Bataclan, onde atuavam os Eagles of Death Metal. Os U2 atuariam em Paris na noite seguinte e o concerto acabou adiado, para uma nova data que contou com os Eagles of Death Metal e Patti Smith, em palco, a celebrar People Have The Power, a 7 de dezembro de 2015. Foi também esse concerto que esteve na origem de uma edição em DVD.

Depois dessa primeira parte, chamemos-lhe assim, os U2 preparavam a edição de Songs of Experience, desde o primeiro momento assumido como uma continuação do álbum de 2014. Só que o mundo mudou — houve o brexit e Donald Trump chegou onde ninguém acreditava — e a banda irlandesa preferiu olhar para esse mundo em vez de se enfiar numa concha (a dose de risco que, ao fim de quase quatro décadas de estrada, nem muitas bandas mais novas arriscam).

Primeiro, suspenderam a edição do álbum, que foi lançado no passado mês de dezembro, e depois lançaram-se para uma outra digressão, a comemorar os 30 anos de The Joshua Tree, sem ponta de nostalgia, numa imensa lição de rock e humanismo, como se de uma grande produção de Hollywood se tratasse e onde torcemos pelo final feliz, numa síntese certeira do jornalista e crítico musical Vítor Belanciano.

Para 2018, promete-se uma atualização desse palco para um cenário com múltiplos palcos e um sistema de som inovador, com um novo ecrã de elevada resolução — nove vezes maior que o de 2015. Pelo meio tivemos também o ecrã único de Joshua Tree no qual se mergulhava no deserto americano, como se não estivéssemos num estádio, como testemunhou o DN em julho passado em Londres.

Agora, o alinhamento destes concertos (que só se pode especular) incluirá algumas das canções mais fortes de Songs of Experience, para além de revisitar o repertório clássico da banda. Nisso, Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen são exímios na arte de equilibrar entre os hinos que todos sabem de cor e salteado e as canções que muitos provavelmente nem reconhecerão.

Na sexta visita a Portugal, os U2 vão apresentar aquele que é, no seu rock mais reconhecível, provavelmente o melhor conjunto de canções da banda irlandesa deste século XXI. Sabe a pouco, para muitos. Mas uma coisa é certa: teremos uma verdadeira lição de rock.

AS OUTRAS CINCO VEZES EM PORTUGAL
360º TOUR, 2010
Foi em Coimbra, no estádio da cidade, que os irlandeses tocaram pela última vez em Portugal, em duas datas de outubro, perante 42 mil fãs. Os bilhetes esgotaram numa hora. Entraram em palco ao som de Space Oddity, de David Bowie.

VERTIGO TOUR, 2005
A 14 de agosto, nova incursão em Alvalade, para encerrar a digressão Vertigo, num concerto com 52 mil espectadores. Antes de subirem ao palco, os U2 foram condecorados com a Ordem da Liberdade pelo presidente Jorge Sampaio.

POPMART TOUR, 1997
Levaram a Alvalade, a 11 de setembro, um alinhamento rico em clássicos como I Will Follow, Pride, New Year's Day, Desire, With Or Without You ou Mysterious Ways.

ZOO TV TOUR, 1993
A 15 de maio, Bono e companhia subiam ao palco do estádio de Alvalade pela primeira vez, com a escala portuguesa da Zoo Tv Tour, iniciada em fevereiro. Foi a primeira grande digressão da banda com efeitos visuais. Tinha como base o álbum Achtung Baby. Durante a tournée, sairia Zooropa.

VILAR DE MOUROS, 1982
Os irlandeses tocaram na primeira edição do Festival Vilar de Mouros, com o álbum October recém editado. O bilhete custava 400 escudos (2 euros) e os U2 tocaram a 3 de agosto. O cartaz incluía nomes como The Stranglers, Echo & The Bunnymen e Durutti Column.

[artigo publicado originalmente no DN de 17 de janeiro de 2018]

Dezembro 02, 2017

As canções de tempos sem inocência

Miguel Marujo

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Os U2 não chegam hoje de Berlim com a revolução de Achtung Baby e Zooropa, mas o seu 14.º álbum, que conhece este dia 1 de dezembro a sua edição mundial, traz-nos no seu rock mais imediatamente reconhecido um repositório de canções que é, provavelmente, o melhor da banda irlandesa deste século XXI. E traz-nos um Bono a descobrir que a morte é uma certeza.

Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr apresentam este Songs of Experience depois da digressão que comemorou os 30 anos dessa outra obra prima que é The Joshua Tree e que acabou por adiar o lançamento deste novo álbum. Verdade seja recordada: a culpa foi de Trump. Com a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA, os U2 quiseram fazer um compasso de espera e recuperar o álbum de 1987, para num fechar de círculo melhor cantarem a distopia do tempo em que vivemos.

Para chegar aqui é preciso olhar ainda um pouco mais para trás, para Songs of Innocence, o álbum anterior, de 2015, que foi lançado com a promessa de um segundo tomo (o álbum que é hoje lançado) e que em determinados momentos assoma à porta de canções deste Experience: American Soul, que conta com Kendrick Lamar a abrir este hino contra a política de Trump, começa onde terminava Volcano; e a fechar o álbum 13 (There Is a Light) é uma reinterpretação de Song for Someone

A pausa foi produtiva entre um e outro disco, com a digressão pelo meio, explicou Bono nas páginas da revista americana Rolling Stone. “A pausa no nosso álbum deu-nos a oportunidade de tocar ao vivo no estúdio estas canções, despindo-as até ao essencial, sem qualquer truque de estúdio, para ver o que realmente tínhamos. Foi um excelente presente para o álbum.”

Não é, ainda assim, um disco para cativar detratores de sempre ou miúdos que só os ouvem a encher estádios, mas também não se acomodam a revisitar a matéria dada sem ponta de novidade. O letrista e vocalista escreveu estas novas canções como uma coleção de cartas dirigidas à família, amigos e à América. Por isso, a intimidade de 13 (There Is a Light) resgata a luz de alguns bons momentos dos U2.

É por Love Is All Have Left que se inicia esta experiência, num tom quase místico de vozes sintetizadas e cordas a vibrarem nas palavras de um Bono que nunca deixa as coisas por menos: Nothing to stop this being the best day ever/ Nothing to keep us from where we should be, avisa, para início de conversa. E depois de Lights of Home entra-se na sequência das canções já mostradas ao mundo, com You’re The Best Thing About Me, Get out of Your Own Way e American Soul. Se na primeira, Bono sabe que The best things are easy to destroy, em American Soul é Kendrick Lamar que nos narra que Blessed are the bullies/ For one day they will have to stand up to themselves/ Blessed are the liars/ For the truth can be awkward

Também mais à frente, The Blackout — outra das canções já reveladas — regressa à América de hoje. Bono confessou que este tema “começou por ser mais sobre um apocalipse pessoal”. E explicou-se em setembro na Rolling Stone: esta canção é sobre “alguns eventos na minha vida que me recordaram da minha mortalidade mas seguiu depois para a distopia política para onde estamos a caminhar”. E é o próprio que cita os versos da canção que melhor retratam esta canção: Dinosaur, wonders why it still walks the earth/ A meteor promises it's not going to hurt would — e com humor acrescenta que “seriam versos divertidos sobre uma velha estrela de rock, mas têm menos piada quando estamos a falar sobre a democracia e antigas certezas, como a verdade”. É por isso que os versos seguintes vão diretos ao que está em jogo no mundo, neste momento, como defende Bono: Statues fall, democracy is flat on its back, Jack/ We had it all and what we had is not coming back, Zac/ A big mouth says the people they don't want to be free for free/ The blackout, is this an extinction event we see?

Na capa, os dois jovens fotografados pelo colaborador de sempre, Anton Corbijn, são os filhos adolescentes de Bono e de The Edge. E quando em The Little Things That Give You Away se ouve The air is so anxious/ All my thoughts are so reckless/ And all of my innocence has died, melhor percebemos que a inocência ficou para trás e é a maturidade de uma obra como esta dos U2 que nos ajuda também a ouvir melhor os dias de hoje.

[publicado originalmente no DN, em 2 de dezembro de 2017, com o título original de "A inocência ficou para trás. Os U2 estão mais experientes"]

Dezembro 02, 2017

Há 30 anos apaixonámo-nos pela América que os U2 cantaram

Miguel Marujo

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Já se ouve o órgão quase religioso há 40 segundos quando entra a guitarra dedilhada num ritmo e num som hoje tão característicos, logo depois a bateria sincopada, antecipando a voz, também ela única, a cantar I wanna run, I want to hide/ I wanna tear down the walls/ That hold me inside — e entramos no deserto, na América das paisagens a perder de vista, nas cidades onde as ruas não têm nome, das colinas forjadas no trabalho árduo de mineiros.

É a América que os U2 nos apresentaram há 30 anos, quando a 9 de março de 1987 chegou às lojas o seu disco The Joshua Tree, uma carta de amor pelos Estados Unidos, que nos fez também apaixonar pela América.

Para cantar esta terra imensa, "a poesia deste país", Bono Vox, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. viajaram de caravana para lá das silhuetas de grandes cidades, acompanhados das letras de Tennessee Williams, Allen Ginsberg, Charles Bukowski ou Sam Shepard e dos blues ouvidos nas rádios locais.

É esta América a que o grupo irlandês regressará na sua digressão anunciada para comemorar exatamente estes 30 anos. É também o fechar de um ciclo, como explicou Adam Clayton à revista britânica Mojo: "The Joshua Tree assemelha-se de alguma forma a um espelho das mudanças que estavam a acontecer no mundo no período de Thatcher/Reagan. Parece que completámos o círculo e voltámos a esse período com um conjunto diferente de personagens." Não é preciso perceber do que fala o baixista dos U2: a eleição de Donald Trump para presidente dos EUA, o brexit ou a ascensão dos extremismos na Europa.

Já em 2007, Bono explicava-se na edição especial comemorativa dos 20 anos do álbum: "Eu sempre disse que a América não é apenas um país, é uma ideia, e andámos à procura de como essa ideia se expressava nos anos 1980. Era quando a ganância era boa, era o fenómeno de Wall Street e o filme Wall Street, era ganhar, ganhar, ganhar, sem tempo para derrotados, era a material girl, preços astronómicos no mercado de arte, uma nova forma de prosperidade e o amanhecer de uma idade da informação... e então tivemos de destruir isto tudo descrevendo-o como um deserto."

É o deserto que faz também a icónica capa do álbum (e dos vários singles), com fotografias de Anton Corbijn no inóspito Mojave.

Para levar ao palco (a partir de maio) o álbum, os U2 deixaram de lado, por enquanto, o novo trabalho, Songs of Experience (um segundo tomo para Songs of Innocence, de 2014) que pode ainda ser publicado neste ano. "As novas canções já estavam prontas a sair e, entretanto, o mundo mudou", explicou Bono, nas páginas da Mojo. "E tivemos um daqueles momentos 'para onde vamos? Vamos voltar um bocadinho atrás'. É um álbum muito pessoal, não será um álbum político de um momento para o outro."

Agora, é The Joshua Tree que nos interessa: o álbum abre com o tríptico Where The Streets Have no Name, I Still Haven't Found What I'm Looking For e With or Without You, os três primeiros singles que arrebataram multidões e levaram a obra até à marca de quase 30 milhões de discos vendidos.

Este é também o disco que retrata duas Américas (o nome que Bono pensou para o álbum), de tensão política e social, como em Bullet The Blue Sky ou Red Hill Mining Town (nunca tocada ao vivo) ou na sequência final de Exit e Mothers of the Disappeared. Mas também da terra mítica que é In God's Country. Ou das canções que ficaram fora do álbum (como no lado B de With or Without You, com as geniais Luminous Times e Walk to the Water).

Há uma demo dessas gravações, Desert of Our Love, que parece sintetizar o lugar deste álbum na história da música popular: é no deserto que encontramos o amor.

 

[agora que é publicado o 14.º álbum dos U2 recupero este artigo publicado originalmente no DN de 9 de março de 2017 — dia em que passavam 30 anos da edição de The Joshua Tree, o álbum que obrigou a adiar o lançamento de Songs of Experience]

Agosto 11, 2017

We need new dreams tonight. A América cantada pelos U2

Miguel Marujo

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Primeiro ato. The Whole of the Moon 

O ato é de celebração, as palavras são conhecidas e os gestos já muito ensaiados, mas há algo de refrescante no que ali se festeja: as canções têm 30 anos e ganham todo o sentido cantadas assim, do princípio ao fim, num espetáculo no qual os U2 comemoram os 30 anos do álbum The Joshua Tree. E chegaram há pouco mais de uma semana à Europa para esta digressão sem ponta de nostalgia. Estas canções fazem-se eco da América e do mundo de hoje, nas palavras e sons que são também manifestos políticos, projetados num imenso ecrã.

É com The Whole of the Moon, tema de 1985 dos Waterboys, que se insere a palavra-passe para o início do concerto, depois de Noel Gallagher's High Flying Birds ter entusiasmado a multidão com os sucessos dos Oasis. Larry Mullen Jr. entra para a bateria e marca o ritmo e, com a abertura sincopada de Sunday Bloody Sunday, os outros elementos da banda vão chegando ao palco para interpretar uma canção que é também senha para este concerto. Como explicou The Edge, na Mojo, cantar e tocar este tema de War (1983), logo a abrir, é “para deixar claro que banda é esta”.

As quatro canções com que arranca o concerto — depois de Sunday Bloody Sunday, em Londres ouviram-se New Year's Day, Bad e Pride (In the Name of Love) — são tocadas num palco mais pequeno, uma sombra da árvore de Joshua, que se destaca no ecrã panorâmico e é assim “projetada” no relvado do estádio de Twickenham. 

A lua tenta romper por entre a luz do sol, mas não há imagens no ecrã, remetendo assim para 1987, quando os espetáculos em estádios ainda não faziam uso da capacidade cénica de hoje (e onde os U2 sempre foram pioneiros e ousados). Apresentadas cronologicamente, estas canções de War e The Unforgettable Fire antecipam o álbum de 1987, mas também se inserem na linhagem política da banda irlandesa.

 

Segundo ato. The Joshua Tree

Os tempos de hoje, antecipava a banda antes da digressão, parecem completar um círculo regressando ao período de Ronald Reagan/Margaret Thatcher com diferentes personagens — agora Donald Trump, o brexit, Theresa May. “The Joshua Tree assemelha-se de alguma forma a um espelho das mudanças que estavam a acontecer no mundo”, dizia o baixista Adam Clayton. O ato é, pois, também político: os U2 nunca esconderam que olham de forma crítica para o mundo — e este álbum trintão conta-o por todas as espiras.

O público (no caso, londrino) sabe as letras de cor e salteado e sabe que é por Where the Streets Have No Name que se inicia o álbum e que depois dessa vem I Still Haven't Found What I'm Looking For e depois With or Without You e depois... Esse reconhecimento poderia jogar contra o espetáculo, mas não. Percebe-se que faz sentido ouvir de novo Where the Streets Have No Name ou Bullet the Blue Sky. Uma e outra vez: “É importante para nós que isto não dependa de nenhum tipo de nostalgia. É um olhar fresco sobre estas canções, uma nova forma de as apresentar e aproveitar uma qualquer qualidade intemporal que tenham. Elas parecem ter ganho uma nova vida agora”, confessava o guitarrista The Edge à Mojo.

Em palco, nas quase duas horas e meia de concerto, a banda também faz da encenação uma forma de luta: no ecrã panorâmico gigante projetam-se curtas-metragens realizadas por Anton Corbijn (responsável pelas fotos que acompanham o álbum de 1987) e filmadas nos californianos parque de Joshua Tree e Zabriskie Point, no vale da Morte. 

São metáforas para estes dias. Em Where the Streets Have No Name, as ruas sem nome são uma longa reta que rasga o deserto com migrantes a caminharem sob o sol (e ali projetado com o sol ainda a fazer-se ver no Twickenham Stadium). Estes filmes são sobre “como pôr The Joshua Tree na América de hoje”, explicou Corbijn à revista Mojo.

Quando arranca a interpretação na íntegra de The Joshua Tree, o ecrã do espetáculo concebido por Willie Williams assume também protagonismo no palco, transportando os cerca de 55 mil presentes para essa América que é a de Donald Trump e de Barack Obama.

Se ao longo destes 30 anos as canções de Joshua Tree foram ganhando outros contextos e mantendo um olhar fresco sobre a América e o mundo, basta chegar a Bullet the Blue Sky, que nasceu de uma viagem de Bono e da mulher à América Central das guerras civis violentas e dos esquadrões da morte dos anos 80 e que hoje podia ser cantada sobre a Síria, o Iémen ou a República Centro-Africana.

Em 1987, “a música falava sobre os tempos e sobre o que estava a acontecer na cultura, de uma maneira que não se faz agora. Talvez no hip-hop haja um pouco mais”, apontou o guitarrista nas páginas da Q

Ouvindo The Edge, é mais fácil de perceber o que se passa no concerto: Exit é antecipado por um excerto de uma série de western onde um Trump, Walter, assusta a população de uma cidadezinha do Texas com a iminente colisão de um cometa a construção e garantindo que a solução mágica passa por construir um “muro magnético” que os protegerá do mal que se anuncia. Sounds familiar? Sim. E é a referência mais explícita a Trump, Donald, que se ouvirá no concerto. 

 

Terceiro ato. Miss Síria

Junte-se Mothers of the Disappeared, por exemplo, logo a seguir, e temos retratos de um mundo que está ainda presente. Ou Miss Sarajevo, já a abrir um encore com sete temas mais recentes dos U2, que acaba por ser uma miss Síria, Omaima, a jovem refugiada de 15 anos do campo jordano de Zaatari que vê os seus olhos abrirem-se no ecrã gigante enquanto uma bandeira com o seu rosto é levada pelos braços do público que compõe as bancadas de Twickenham.

Já antes, a antecipar a canção que celebra a América de forma clara, In God’s Country, Bono deixou uma declaração de amor a Brian Eno, pelo seu trabalho no álbum. “Não haveria um lado 2, ou um lado 1, se não fosse Brian Eno, que está aqui esta noite”, explicou-se o vocalista.

Há um verso neste In God's Country que ajudou Bono a explicar a vontade de tocar Joshua Tree agora na íntegra nos palcos. “We need new dreams tonight.” Precisamos de novos sonhos nos tempos que vivemos. Hoje a digressão, que passou entretanto por Berlim e Roma, chega a Barcelona. Para continuarmos a sonhar outra América — e outro mundo.

 

[texto publicado na Máquina de Escrever, a 18/7/17, elaborado, revisto e aumentado, a partir de uma crónica escrita para o DN, publicada a 15/7/17; o concerto em Londres aqui narrado foi a 9 de julho.]