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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Dezembro 14, 2023

Tolentino Mendonça, aquele que foi bibliotecário do Vaticano

Miguel Marujo

Em julho de 2018, José Tolentino Mendonça foi nomeado bibliotecário e arquivista do Vaticano. Hoje é cardeal e prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, também no Vaticano. Em entrevista ao DN, o padre e poeta português - que já tinha orientado o retiro quaresmal do Papa, em fevereiro desse ano - recusou então a "lógica das influências" e falava da sede que desinstala. Hoje, quando é anunciada a atribuição do Prémio Pessoa 2023 a Tolentino Mendonça, recuperamos essa conversa de 2018.

 

Tolentino - Ricardo Perna FC.jpeg

 

José Tolentino Mendonça estava convencido que orientava o retiro quaresmal do Papa - estávamos em fevereiro [de 2018] - e voltava ao seu trabalho em Lisboa. Mas Francisco desinstalou-o e chamou-o a Roma, agora, para ser o responsável da Biblioteca Vaticana e do Arquivo Secreto da Santa Sé, dando-lhe a dignidade de arcebispo.

Depois de ser o primeiro português a pregar os exercícios espirituais ao papa, Tolentino chegará a Roma recusando qualquer influência especial junto de Francisco. "Um retiro tem outra natureza, bem distante da lógica das influências. A voz que aqueles que fazem um retiro procuram não é certamente a do pregador. E mais. De uma forma despojada, nem é sequer a sua própria voz. A única voz importante é mesmo a de Deus que ressoa no silêncio do coração. Tudo o resto é acessório", confessou ao DN.

É esta lógica despojada com que responde sobre a sua nomeação. "Eu estava convencido que fazia o retiro e voltava ao meu trabalho em Lisboa, de que gostava muito."

O poder é uma tentação, notou o padre e poeta, no retiro de fevereiro, publicado em livro em abril (Elogio da Sede, ed. Quetzal). "O culto do poder faz do poder um ídolo, qualquer que ele seja", pregou Tolentino, apontando que é "um risco enorme" quando esse poder "deixa de ser claramente um serviço aos irmãos e se torna o delírio da autoafirmação e da autorreferencialidade". E recordou ao Papa e bispos que o ouviam nesse retiro: "Não devemos esquecer que Jesus se recusou determinantemente a ajoelhar-se perante Satanás, mas ajoelhou-se voluntariamente diante dos discípulos para lavar-lhes os pés."

Tolentino Mendonça foi à metáfora da sede para melhor "descrever a vida espiritual": a sede, respondeu ao DN, "volta sempre, desinstala-nos continuamente, faz de nós caminhantes em busca de uma fonte".

"A fé não é um estado de autossuficiência, mas pelo contrário: é uma aguda e por vezes dramática consciência da nossa pobreza, da nossa escassez que nos atira em confiança para a escuta de Deus", acrescentou. Para melhor olhar para o que tem sido este pontificado: "o Papa Francisco diz recorrentemente que um dos maiores perigos para a Igreja é a autorreferencialidade. Ele tem-nos desafiado a todos a tornarmo-nos sedentos, a vivermos com fome e sede de justiça, de misericórdia, de humanidade... E creio que este é um dos traços que tornam a sua figura tão marcante e inspiradora: percebermos rapidamente que ele faz da sua sede o seu tesouro. Onde é que o Papa alimenta e amplia essa sede? Não tenho dúvidas que a oração para ele é uma máquina de criar sede, mas também o é a leitura que ele faz dos sinais dos tempos ou a sua fidelidade à escuta dos pobres e das periferias."

O telefonema que comoveu o poeta

O modo de atuar de Francisco é de alguém que escuta, que tem sede de ouvir. "Ele é um Papa que defende muito a prática da sinodalidade. Seja com os bispos. E, por exemplo, no sínodo da família, o primeiro pedido que ele fez aos bispos foi que falassem e discutissem abertamente todas as questões. Seja com os fiéis, a quem estimula a uma participação mais ativa. Seja com as periferias sociais e existenciais, cuja voz ele tem a solicitude por escutar e trazer para o centro da reflexão", notou Tolentino.

A reflexão do padre português chegou a todos através da publicação do livro, abrindo a porta a que outros se aproximem desta fonte, um caminho que Francisco também tem proposto. "Tenho uma amiga que tem uma livraria, que é completamente agnóstica, e que, há dias, me surpreendeu. "Quero dizer-te uma coisa" - disse-me ela. "O Papa Francisco é a única voz verdadeiramente humana que hoje se faz ouvir no mundo". Não há dúvida que o Papa Francisco é um grande mestre de humanidade, num tempo em que os mestres escasseiam. E é muito escutado também fora do espaço eclesial", concordou Tolentino.

As pregações reunidas em livro também já têm edição em italiano, que o Papa já viu. "Bem, Elogio da Sede começou por ser uma espécie audiolivro (risos), pois reúne as meditações que o Papa ouviu no retiro da quaresma passada. Mas, sim. Enviei a edição do livro em italiano ao Papa Francisco e ele telefonou-me depois a agradecer, coisa que muito me comoveu."

Tolentino começará em 1 de setembro [de 2018], nas suas novas funções. O 48º bibliotecário espera aprender com os seus trabalhadores. "Estou entusiasmado. Não nos faltará que fazer."

 

[artigo originalmente publicado no DN, em 1 de julho de 2018, com o título "Tolentino Mendonça: O 48.º bibliotecário do Vaticano"; foto de Ricardo Perna/Família Cristã]

Março 07, 2023

O lado político do poeta que é cardeal

Miguel Marujo

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Em 1992, José Tolentino Mendonça assinou um manifesto que abalou a política e a Igreja da Madeira, na altura de João Jardim, esteve numa iniciativa contra a troika e achava que "o catolicismo sem uma inscrição à esquerda perde uma potencialidade profética que lhe é absolutamente indispensável". Recupero este texto de 2019, quando Tolentino foi elevado a cardeal.

 

Poeta e padre, teólogo e biblista, como tantos apresentam o novo cardeal português, José Tolentino Mendonça irrompeu com estrondo na política madeirense em 1992, quando um grupo de jovens padres da região - que incluía também o atual líder do PCP regional e ex-candidato presidencial, Edgar Silva - publicou um texto muito crítico do poder da época. Alberto João Jardim era então o senhor todo-poderoso da Madeira e Teodoro Faria o bispo tantas vezes acusado - como foi o caso desses padres - de acolitar o poder laranja.

Por entre as palavras que dão sentido à vida e fé de Tolentino Mendonça, esta é uma dimensão que nunca esteve ausente do seu discurso, mesmo que de forma discreta. O arcebispo, filho de pescador, que hoje é o arquivista e bibliotecário do Vaticano, colocou-se no lugar de fazedor de perguntas, em fevereiro de 2017, para questionar onde anda um "catolicismo de esquerda".

Num colóquio do Centro de Reflexão Cristã (que se assume como espaço de diálogo entre cristãos de diferentes sensibilidades e entre cristãos e não cristãos) sobre "católicos à esquerda", o novo cardeal preferia lançar dúvidas. "O meu papel é o de formular a pergunta. O que é hoje ser católico à esquerda em Portugal? E por que é que é tão difícil, tão rara, a presença pública de um catolicismo à esquerda, que também ajude a equilibrar a própria prática eclesial", apontava.

A preocupação tem uma razão de ser, na leitura de Tolentino: "Fazendo um diagnóstico da Igreja portuguesa, sente-se claramente um certo vazio, uma ausência de atores que possam trazer para o interior do debate eclesial um conjunto de questões que normalmente, geneticamente, estão associadas à esquerda, e essa ausência provoca um fechamento da Igreja ou um alheamento da Igreja em relação ao debate público."

Falando de Alfredo Bruto da Costa, ministro da Coordenação Social e dos Assuntos do governo de Maria de Lourdes Pintasilgo (em 1979), que se destacou no estudo da pobreza, como uma referência sua, também política, Tolentino é assertivo: "Acho que o catolicismo sem uma inscrição à esquerda perde uma potencialidade profética que lhe é absolutamente indispensável."

Se esta intervenção é de 2017, o tema permanece atual. Dizendo-se apenas uma "antena" que "fareja" a realidade, Tolentino Mendonça nota que, "sociologicamente, o catolicismo português é arrumado à direita" e, "quando se fala de uma sensibilidade católica", essa é "imediatamente" tida como "um alinhamento à direita, salvo raras exceções que são identificadas como aves raras no panorama político ou cultural".

Para o futuro cardeal, que será nomeado em 5 de outubro, isto é "um problema": "Parece que o catolicismo português contemporâneo está a gerar uma monocultura [em que] o alinhamento intelectual e político da maior parte do corpus dominante dos católicos vai à direita e que a esquerda se tornou um lugar esporádico de inscrição de cristãos e de cristãs, que possam fazer a partir daí um caminho de compromisso político e de diálogo com a sua fé. Os católicos à esquerda entraram numa espécie de clandestinidade - são clandestinos."

"Há uma nova geração que é capaz de uma militância à esquerda", regista, mas não sente "essa vitalidade à esquerda". "Acho que francamente é pena."

José Tolentino Mendonça diz que se há debate instalado com o atual Papa é este e estranha "que, na sociedade portuguesa, este debate ainda não tenha acontecido", apesar de notar que, à esquerda, há "uma aproximação ao Papa Francisco, uma citação permanente das suas palavras no espaço público", enquanto, num "certo setor colocado à direita", existe "um incómodo muito grande" com o bispo de Roma "e uma necessidade de estar sempre a traduzir o seu magistério, como se ele não falasse claro e fosse necessário mitigar o impacto do seu posicionamento e do seu magistério".

 

 

Entre as aves raras que intervêm à esquerda, de que fala o arcebispo, pode incluir-se Edgar Silva, que deixou o exercício sacerdotal em 1997 para se dedicar à política. Da Madeira, onde anda em campanha para as eleições regionais de 22 de setembro, Edgar Silva recorda ao DN o vínculo que Tolentino mantém com a região. "Ele sente muito esta necessidade de regressar sempre ao chão a que pertence, a este chão vulcânico."


"Sermão ao Jardim dos pecados"

Edgar Silva recua a 1992 para contextualizar o manifesto Mais Democracia, Melhor Democracia, que indispôs Alberto João Jardim e o bispo do Funchal, Teodoro Faria. "É um documento que faz parte de uma sequência de documentos, ainda éramos estudantes de Teologia e depois padres", explica.

Aquele que hoje lidera o PCP madeirense lembra que todos os anos esse grupo de dez jovens, às vezes mais, se juntava, em julho ou agosto, no Porto Santo ou no Funchal, para uma semana de reflexão, onde discutiam a "realidade regional, a situação social, política e cultural, o estado da Igreja e os desafios para a Igreja". De cada uma dessas semanas de verão foram saindo documentos, "preocupações com a situação pastoral" da Igreja local ou "desafios que o Concílio [Vaticano II] colocava à diocese do Funchal".

Nesses anos, Edgar Silva identifica três textos "de teor mais político", incluindo o de 1992, que bebia na doutrina social da Igreja e na realidade social concreta da região. "Foi o que teve maior impacto político e mediático", aponta. O Expresso (22-8-1992) apelidava-o de "sermão ao Jardim dos pecados".

Alberto João não gostou, enviando recados ao bispo. O então presidente do governo regional disse, lembra-se Edgar, que "esta gente não tem perdão", questionando o que faria o prelado aos dez padres. "A pressão foi muito forte e o bispo chamou um conjunto de subscritores para os inquirir individualmente." Teodoro Faria aproveitou as movimentações pastorais para "tentar dispersar ao máximo o grupo", colocando alguns em paróquias mais afastadas ou difíceis. Alberto João dizia, no Telejornal regional, que o desenvolvimento "tem de ser feito com medidas económicas e não com poesia".

Os jovens padres pediam que "o debate seja estimulado e não evitado; que os direitos de oposição e de discordância sejam considerados aspetos essenciais da democracia; que, em consequência, a unanimidade não seja erigida em valor ou objetivo final de uma sociedade democrática". A poesia era de facto outra aos ouvidos de Jardim.

Tolentino Mendonça estava em Roma, a estudar, mas assinava o documento, juntamente com Edgar Silva, que também já tinha seguido para Lisboa, onde acompanhava o Movimento Católico de Estudantes, e outros oito padres, incluindo Francisco Caldeira, Paulo Silva e Rui Nunes de Sousa.

Hoje, como em 1992, Tolentino Mendonça "acompanha de forma muito direta a situação da sua terra", sempre "de forma muito contextualizada", confirma Edgar Silva, que o vai encontrando na ilha. "É um dever de fidelidade, e ele tem isso presente, é quase identitário."

É a atenção de quem "tem um gosto particular em fazer pontes", que o faz estar "com pessoas que não têm as mesmas convicções ou a mesma visão do mundo", como o definiu Pedro Mexia ao DN. Tudo somado, não espanta que Tolentino tenha participado, em 2013, numa conferência à esquerda contra o governo PSD-CDS, falando sobre "A situação da Cultura em Portugal".

Eram tempos de troika e os seus subscritores denunciavam "as opções, os conteúdos e as consequências de uma orientação política que vem arrastando o país para uma dependência crescente, avolumando injustiças e desigualdades, hipotecando as suas possibilidades de crescimento, estrangulando o presente e comprometendo o futuro das jovens gerações". Tolentino também esteve lá.

 

PERFIL

O cardeal português é um reconhecido poeta, biblista e teólogo. Desde 5 de outubro de 2019 tem lugar no Colégio Cardinalício.

O MADEIRENSE

José Tolentino Mendonça nasceu em 15 de dezembro de 1965, no Machico, na ilha da Madeira. Cresceu no Lobito, Angola, onde viveu com a família até aos 11 anos e onde o pai era pescador.

O POETA
O novo cardeal é um homem das letras desde muito novo. Escreveu textos no antigo DN Jovem, no qual antecipava: "Não quero ser escritor, quero ser feliz." Mas é poeta, escritor e ensaísta, autor de mais de 20 livros desde Os Dias Contados (1990).

O PADRE
Ordenado padre em 1990, estudou Ciências Bíblicas em Roma. Regressou a Lisboa, foi capelão e, mais tarde, vice-reitor na Católica, dirigiu o Secretariado da Pastoral da Cultura. Chegou ao Vaticano como consultor do Conselho Pontifício da Cultura. Elevado a arcebispo titular de Suava, é bibliotecário e arquivista da Santa Sé desde 2018.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 7 de setembro de 2019]

Fevereiro 15, 2023

Há mais de 50 anos, aquele estudante levantou-se e pediu a palavra. "Um momento libertador"

Miguel Marujo

Há 50 anos, aquele instante em que disse "peço a palavra" mudou a sua vida?

Sim, em alguma medida sim. Terá mudado a vida da gente da minha geração da Universidade de Coimbra porque foi o desencadear de uma grande e grave crise académica em Coimbra. Foi um momento tão forte na universidade. No fundo é uma greve às aulas e greve a exames, num momento de grande pressão política e simultaneamente de grande consciencialização política, numa altura e numa situação, em 1969, em Portugal, em que a Guerra Colonial tinha começado oito anos antes, estávamos num país pobre, subdesenvolvido, desigual, o grau de analfabetismo da ordem dos 33%, com uma Guerra Colonial, com uma ditadura.

Foi um momento muito forte da academia de Coimbra. Obrigou a mudar a vida de todos nós porque as opções que foram feitas - da greve às aulas, a greve a exames... Esta, por exemplo, tem uma coisa única: foi um momento coletivo, mas era um momento que implicava uma opção de natureza individual, e fazer a greve a exames implicava a perda de ano, eventualmente a incorporação militar, a perda de bolsas de estudo nalguns casos, os estudantes das ex-colónias com a perda das bolsas de estudo e eventualmente a impossibilidade de continuar os estudos em Portugal, aos brasileiros também...

 

 

E ir contra a vontade dos pais, em muitos casos.

Exatamente isso. O estudante não tem autonomia financeira e económica e dependia da vontade dos pais. Há um traço interessante em Coimbra... Coimbra é uma cidade universitária, 15% dos habitantes na altura eram estudantes universitários, nós éramos nove mil. Tudo o que se passava em Coimbra tinha muita força, mas um dos fatores que contribui para aquilo que foi único na vida da resistência à ditadura na universidade portuguesa - uma greve a exames -, foi o facto de 70% dos estudantes da Universidade de Coimbra serem de fora da região. Havia três universidades na altura, Porto, Lisboa e Coimbra - Lisboa tinha 13 mil na Universidade Clássica, uns dez ou oito mil no Técnico, Porto era mais pequeno, tinha uns oito mil. Contrariamente a Porto e Lisboa, que eram da ordem dos 50%, em Coimbra 70% eram de fora, o que lhes permitia ter uma maior distância em relação às pressões familiares, pressões sociais do meio em que estavam inseridos. E isso foi um fator muito importante, julgo eu, na decisão da greve a exames.

Naquele momento em que pediu a palavra, na altura ao Presidente Américo Tomás, imaginava que pudesse atear o rastilho que provocou?

Não (risos)! Isso foi absolutamente imprevisível. O ato de pedir a palavra foi decidido coletivamente na noite anterior, pelos meus colegas, foi feita a sugestão de pedir a palavra se houvesse condições para isso. Eu fui-me deitar, dormi mal nessa noite (risos), preocupado... Tinha mais ou menos previsto o que era previsto, com alguma angústia, devo dizer: "O que é que me vão fazer? Vão-me prender? Vão-me bater? Vão-me deixar falar? Vão abafar aquilo que vou dizer?"

Eu tinha decidido pedir a palavra, achava que era uma questão de honra. Tinham dito para pedir se tivesse condições, eu para mim iria criar as condições, estava com essa determinação. Mas a determinada altura comecei a pensar para mim: "Vou fazer isto, o que é que vai ficar deste gesto? Isto vai-se perder, porque é um ato de reivindicação dos estudantes de Direito a intervir na vida da sociedade." Mas entretanto começam a entrar os meus colegas, mil, mais de mil, e então a minha alma subiu. É um momento de grande tensão.

Naquela pausa de discursos, pede então a palavra.

Eu estou num momento de grande tensão, por um lado a imaginar que palavras ia usar. Estou de capa e batina que é para se saber que sou um estudante, a minha condição de estudante ser afirmada logo que me levantasse, saberem que era um estudante que estava a levantar-se... A maior parte daquela gente, os ministros, o Chefe do Estado, os chefes militares, as altas autoridades académicas, eclesiásticas, os pides, ninguém me conhecia.

Eu tinha de pedir a palavra de forma a que não seja uma provocação porque isto tem de ser visto como um exercício de uma legitimidade de pedir a palavra, por parte de um estudante, do presidente da Associação Académica, na circunstância, que é pedir a palavra em nome dos estudantes e quer fazê-lo de uma forma solene, firme, rigorosa, mas respeitando as regras da urbanidade, que era forçoso respeitar, era isso que eu queria.

Eu tinha a consciência de que os setores mais retrógrados, mais ultras, o fascismo mais duro, iam tentar colocar aquilo como uma arruaça, e eu tinha de pôr aquilo como um gesto de legitimidade do uso da palavra. Por isso, estou aqui numa grande indecisão de qual é o momento de pedir a palavra: falou o reitor, falou o decano da faculdade e a seguir ia falar o ministro das Obras Públicas, estava a soerguer-se e eu disse bem, "é aqui o meu momento", porque estou entre a universidade e o governo, era mais uma forma de evitar a leitura da provocação...

Quando me levanto, há uma salva de palmas brutal dos estudantes e eu digo: "Neste momento, em nome dos estudantes de Coimbra, peço a palavra a Vossa Excelência", qualquer coisa assim, e fico de pé. Aquela gente levanta-se toda, há uma salva de palmas dos estudantes, dentro e fora da sala, que é uma coisa impressionante, a minha alma voa, porque tinha cumprido a honra da academia, tinha conseguido vencer todas as resistências, o medo. O ambiente era difícil, estávamos em ditadura e o destino estava traçado para quem fizesse uma coisa dessas. Aos aplausos, há gritos de "fora! fora", dos fascistas, há um burburinho.

O Chefe do Estado Américo Tomás tem uma pausa, acho que fala com um ministro, assim um bocado indeciso, e faz-me um gesto e "mas agora fala o ministro das Obras Públicas". Eu sento-me e fico na dúvida se a palavra me seria dada. Nas declarações da PIDE, os tipos ficaram sempre com a ideia de que eu estava a tentar ludibriá-los, mas não era verdade. E depois constatei que muitos professores, no inquérito que foi instaurado, também ficaram na dúvida. E muitos dos meus colegas...

Aquele "mas agora" abre essa dúvida.

Sim, fiquei tanto na dúvida que fiquei a arquitetar mentalmente o que é que iria dizer. Eu tinha umas notas, ia falar dos 33% de analfabetos em Portugal, de uma universidade elitista, onde o número de pessoas que chegavam à universidade era muito pequeno, da degradação do país, de uma universidade arcaica, da juventude do país, era o que eu ia falar...

Estava a arquitetar mentalmente, acaba a falar o ministro e o Américo Tomás sai com toda a comitiva, abruptamente, e aí é que é um coro brutal, "queremos falar! queremos falar!", e eles saem com os pides à cotovelada. A malta estudante ia deixando-os passar mas sempre a dizer "queremos falar! queremos falar!" Eu estou dentro da sala, só ouço "queremos falar! queremos falar!", e depois começam outros ditos, "palhaços, fantoches".

Fico na sala, entram estudantes que dizem para falar e levanto-me, ponho-me de pé... E depois falei. E falou o Carlos Batista, da junta de delegados de Ciências; o Celso Cruzeiro e o Barros Moura, que nós considerámos a verdadeira inauguração do edifício. As autoridades do regime foram para uma sala, mas os altifalantes estavam ligados para o exterior, eles provavelmente ouviram aquilo que não queriam. (risos)

 

"Quando sou preso, há estudantes que os insultam, 'assassinos', 'fascistas'. E insultos menos adequados à luta política."

 

Acaba por passar essa noite na prisão?

Sim. Nessa noite eu estava na Associação Académica, estávamos todos muito satisfeitos, tinha sido um grande momento. Eu tinha dormido no dia anterior muito mal, e às duas eu disse que me ia deitar e temos a informação de que a PIDE estava a cercar as portas de saída da Associação Académica, havia agentes em todas as portas. Saem alguns estudantes para ver qual é a reação deles e não acontece nada. E às 02.00 eu saio com muitos estudantes, mulheres e homens, e dirigem-se-me uns sete agentes da PIDE, com um crachá e uma pistola, "é o sô fulano de tal, está preso, acompanhe-me à sede da PIDE" e lá fui. Quando sou preso, há estudantes que os insultam, "assassinos", "fascistas". E insultos menos adequados à luta política (risos) e sou interrogado durante a noite, "quem é que estava por trás", queriam saber...

Com ou sem violência?

Sem violência. A conversa era sobre quem estava por trás disto, que organização tínhamos. Nós não tínhamos organização nenhuma.

Eram os estudantes...

Eram, eram os estudantes.

Cinco dias depois, há estudantes que são suspensos.

São estudantes que eles consideravam os responsáveis. Na PIDE, inicia-se um processo-crime contra mim, um crime de segurança interna contra a honra e a consideração devida ao Chefe do Estado, que de acordo com o Código Penal, se fosse provado - e naturalmente era provado, eu tinha-me levantado em público contra o Chefe do Estado - dava prisão efetiva de um a três anos. Iniciaram logo o processo-crime, por ordem do diretor nacional da PIDE, Silva Pais. A 22 de abril, todos os estudantes da Direção-Geral, o Osvaldo de Castro, o Celso [Cruzeiro], a Fernanda Bernarda, o José Gil [Ferreira], o Matos Pereira, mais o delegado de Ciências, o Carlos Baptista, e o Barros Moura, que tinham falado na sessão - é uma sequência direta dos acontecimentos de 17 de abril.

 

 

Isso faz precipitar uma maior contestação?

Na noite em que sou preso, cerca de duas, três centenas de estudantes são barbaramente espancados na sede da PIDE. Coimbra era uma cidade muito noctívaga e, quando sou preso, a notícia correu muito célere, pelas repúblicas, pelas casas de estudantes. Passado um quarto de hora, meia hora, estavam duas, três centenas de estudantes à sede da PIDE e os tipos fazem uma carga violentíssima, com cães-polícias, sem qualquer aviso prévio. Foi muito chocante e revoltou muito a academia e durante a noite foram distribuídos comunicados por Coimbra a dar conta desses factos.

Entretanto, a 22, há essa suspensão desses oito estudantes que dá origem a uma assembleia magna, onde há grande participação de professores. A suspensão tinha sido decidida pelo ministro da Educação: suspensão de frequência das aulas e de todos os atos da universidade até apuramento das responsabilidades. Isto na prática significava a expulsão da universidade.

A assembleia magna decide-se por uma greve às aulas, transformando-as em debates e discussão sobre a situação da universidade. Nós defendíamos uma universidade nova e a greve é estrategicamente radical e taticamente moderada nos meios que utilizamos. A diferença de Coimbra. E daí ter sido a maior greve na universidade portuguesa, é porque foi uma greve de massas, a greve a exames com 85% de adesão dos estudantes da Universidade de Coimbra.

Note-se que se vive um período de transição, estamos em 1969, cai o Salazar e está Caetano e é talvez o primeiro momento em que Caetano acaba por revelar a identidade repressiva do regime [depois da sua posse]. A suspensão que nos é feita é contra mesmo as regras da ditadura, sem contraditório, não ouviram a outra parte, sem processo disciplinar.

Há uma inabilidade do ministro José Hermano Saraiva em lidar com tudo isto ou é apenas a faceta repressiva do regime?

É uma faceta, é a identidade repressiva do regime: ele é um homem autoritário, é um ultra, ele é o "quer, posso e mando". José Hermano Saraiva prestou um grande serviço à luta de Coimbra no dia 30 de abril, quando ao fim de dias, desde 17 de abril, ele vem fazer uma comunicação ao país, num período de ditadura, com censura...

... sem saber do que se passava.

Sem saber do que se passava e ele vem anunciar que a Universidade de Coimbra está desde o dia 17 de abril sujeita a grandes perturbações, agitadores, os estudantes não estudam, as famílias e tal... Vem fazer um apelo demagógico e termina com um ato impositivo, garante aos portugueses que a ordem será restabelecida.

Foi uma declaração de guerra forte. Que teve uma resposta brutal: no dia seguinte, numa assembleia magna, recrudesceu a movimentação estudantil, de tal forma que a greve às aulas continuou e o Saraiva vê-se na necessidade de, em 6 de maio, encerrar a Universidade de Coimbra, um gesto repressivo muito forte. E diz que só quando houver exames é que a universidade será reaberta e isso colocou-se a nós, o que quero fazer.

E decidiram-se pela greve aos exames?

É uma decisão lenta, muito maturada porque havia os que defendiam que se devia fazer um ato de repúdio, de relevo público. Mas tínhamos de garantir uma assembleia magna com muita gente, e tivemos seis mil. E no dia 2 de junho a universidade está cercada pela Guarda Republicana, com jipes com arame farpado, polícia a pé, a cavalo, estudantes a começarem a ser presos e a serem absolvidos no tribunal da comarca, acusados de um crime que era o de perturbarem exercícios fundamentais previstos na Constituição.

 

 

No fundo eram os piquetes de greve para evitar as idas aos exames, mas nunca condenaram ninguém porque isso implicava ser preso em flagrante delito. Mas isso nunca se verificou dada a velocidade dos piquetes, quando a polícia chegava (risos). Prenderam uma centena de estudantes. A Direção-Geral acabou por ser presa em agosto... E depois há a incorporação militar de 49 estudantes em outubro.

Pelo meio, há acontecimentos que têm muita importância na cidade de Coimbra: fazemos a operação Flor e a operação Balão, para conquistar a população; não se faz a Queima das Fitas, e explica-se à população porquê. A Queima das Fitas tinha uma importância brutal na vida comercial, nos serviços de Coimbra e nas contratações de artistas.

E temos também a felicidade da final da Taça de Portugal, Académica-Benfica, que é uma vitrina fantástica. Distribuímos 35 mil comunicados, passamos as tarjas no intervalo do jogo, a equipa da Académica, que era constituída esmagadoramente por estudantes universitários, estava de luto, e entraram com as capas em sinal de luto. O Tomás, o governo, os ministros, os secretários de Estado, ninguém apareceu e a TV também não transmitiu.

Depois há um regresso à normalidade?

Há uma delegação de Coimbra que é recebida pelo Chefe do Estado, cai o reitor, que é do regime, ultra, cai o ministro da Educação e vem o Veiga Simão e há um novo reitor, que aliás é um democrata, o professor Gouveia Monteiro. E a Associação Académica é reaberta... E a vida académica continua. Há um recuo brutal do governo, nessa altura.

Cinquenta anos depois há alguma mensagem daqueles dias que permanece?

Sim, acho que há muitas coisas: o fim da ditadura, o fim da Guerra Colonial, o fim de um país subdesenvolvido, isso foi alcançado. Agora, uma sociedade desenvolvida, economicamente sustentável, uma dimensão de realização da universidade, dos jovens, do sonho que vivia em cada um de nós, continua por cumprir. Mas isso é a ideia de que o essencial de 1969 foi o que o movimento gerou e esse movimento continua sempre: é o movimento da juventude, do sonho, de uma sociedade mais justa, menos desigual, mais solidária, que de alguma medida nós vivemos naqueles momentos. Que se projetam numa dimensão muito mais ampla, a nível local, nacional, planetário.

E 50 anos depois esta memória é tão presente que só pode ter sido muito marcante para si.

É um momento muito marcante. Tenho a noção de que cada um de nós, que estivemos em Coimbra nessa altura, e que estivemos do lado certo da história, viveu como um momento libertador e um momento galvanizante. E cada um de nós viveu numa dimensão própria. Sendo um movimento coletivo, foi também um movimento interior que nos interpelou muito, que nos obrigou a grandes decisões. Foram momentos duros, difíceis, mas foram também momentos de grande exaltação e de festa.

 

[Entrevista originalmente publicada no DN, em 17 de abril de 2019; fotos do artigo original]

Novembro 26, 2022

Urnas, mortos e mau cheiro. "É altura de acabar com isso", avisou a Censura

Miguel Marujo

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Por telegrama, a Censura avisava as redações: "É conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante" © Arquivo DN

 

Há 55 anos, na noite de 25 para 26 de novembro, ocorreu uma das maiores tragédias no país, com cheias a provocarem uns 700 mortos, segundo estimativas — os números oficiais foram sempre bem menores. O Portugal de 1967 era uma ditadura onde coronéis riscavam títulos, textos e fotografias dos jornais. A Censura queria limitar a dimensão de uma tragédia de que nunca se conheceu a verdadeira realidade. No terreno, os jornalistas também recebiam instruções sobre o que escrever. "Evita coisas macabras, que o coronel já telefonou." Os textos eram ditados ao telefone, as fotos iam de moto.

 

A mensagem é curta e chega por telegrama: "Não falar no mau cheiro dos cadáveres." A 29 de novembro de 1967, as páginas dos jornais ainda se enchem de reportagens e notícias sobre as "chuvas diluvianas" da noite de 25 para 26 em Lisboa e nos arredores e a Censura aplica outras instruções aos jornais. "Inundações: os títulos não podem exceder a largura de 1/2 página e vão à CENSURA." O "Dr. Ornelas", capataz do lápis azul, avisa ainda a redação do Jornal de Notícias no mesmo telegrama: "Actividades beneméritas de estudantes - CORTAR." As maiúsculas gritam a ordem.

No Portugal cinzento da ditadura de Salazar, a tragédia tinha de ser limitada e amaciada. "É conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos", escreve o "Tenente Teixeira", logo a 27 de novembro.

Junho 10, 2022

António, um rapaz de Lisboa. Guia para uma peregrinação popular

Miguel Marujo

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A igreja onde vão celebrar de propósito ou a capela a que ninguém liga, um painel numa estação ou uma escultura num hospital: a capital guarda locais improváveis de memória do rapaz de Lisboa. A reportagem é de 2019, antes da pandemia, e foi republicada no DN tal e qual em 2020, quando a covid parecia dar uma trégua, mas a vida ainda estava longe de retomar o seu ritmo. Depois de dois anos muito atípicos, praticamente sem santos, este texto podia ter sido quase todo escrito agora.


Faltam minutos para as nove da manhã e já o ritmo vai acelerado naquele pedaço de Lisboa, um dos recantos da cidade tomado de assalto por turistas de todo o mundo, que chegam em autocarros, tuk-tuks, táxis e algumas bicicletas e mais uma trotineta, por entre quem anda na vidinha do costume. É o retrato da Lisboa que todos querem ver – e há uns quantos que ali vão de propósito. Querem ir, querem entrar na “casa do santo”.

Estamos junto à Sé Patriarcal, o tal recanto antigo da capital, na Igreja de Santo António, em Lisboa, o primeiro ponto de paragem obrigatória de um roteiro de António por Lisboa, e há um intenso formigueiro de gente que sobe as escadas do templo. Ouve-se italiano, sussurra-se francês, há um casal americano e outros alemães.

No altar-mor há uma mulher que cuida da limpeza, um balde de água verde e a vassoura, e num dos altares laterais é um homem que trata de pequenos arranjos, empoleirado num escadote. “Ai, a ferrugem”, ouve-se a meia voz, mas não há quem lhe preste atenção. Ou à mulher lá em cima.

É aqui que vêm muitos devotos do franciscano, que terá nascido neste local em 1195, no dia 15 de agosto – as contradições sobre o seu nascimento são muitas e apesar de comummente ser esta a data apontada, há quem defenda que Fernando de Bulhões, assim se chamava, nasceu em 1191 ou mesmo em 1188, na Rua das Pedras Negras, que hoje tem o nome de Santo António da Sé. Na igreja, que é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, a informação é assertiva: “Aqui nasceu Santo António” – e as setas indicam-nos o caminho para a cripta em dez línguas. À cripta, há quem chegue bem cedo, logo pela hora da abertura, para rezar, “conversar com o santo”, conta Pedro Ferreira, que zela pela igreja. “Pedem para estar uns cinco minutos.” Outros apressam-se mais, perante o pequeno altar separado dos fiéis por uma grade. Em cima, uma placa diz que “nesta Casa, segundo a tradição, nasceu e viveu António, que foi roubado pela gloriosa morada do Céu”.

Um italiano ensaia-se a ler esta frase em português. “Ah, é a sua casa”, diz para uma mulher. Benze-se apressadamente e sai. Ali vai “por devoção”, confirma Tommaso, sem muita vontade de se explicar mais, dizendo que não fala português. Outro homem também fez questão de ir ali abaixo, a 12 de maio de 1982, para rezar: “O santo padre João Paulo II por sua iniciativa e devoção visitou e orou neste lugar onde nasceu Santo António.”

Num livro de visitas da igreja, alguém do grupo deste homem alto, com mais de 60 anos, auricular nos ouvidos para escutar o guia, deixa uma prece: “Reza por todos nós e sobretudo os doentes.” Outro casal assinala a sua presença. “Angelo e Teresina estiveram aqui. Santo António protege toda a nossa família.” “Por devoção e para rezar”, explicam-se tão apressados quanto o seu outro compatriota. António de Lisboa e de Pádua, a quem invocam, “é um homem bom”.

Isto da fé é coisa que nem sempre se explica ou se confessa a um jornalista. Quando questionado, o alemão prefere repetir-se "schönschön", às perguntas do porquê de estar ali. É bonito, para ele, e nada mais se consegue perceber. Italianos, polacos, brasileiros, são os que mais peregrinam ali. “Há um encanto” para com este templo, defende o funcionário da igreja. “Pedem para celebrar ou concelebrar”, conta Pedro Ferreira, que acrescenta que há missais em “muitas línguas” que permitem essas celebrações. “Os libaneses gostam muito de vir celebrar” na Igreja de Santo António. Há celebrações de rito caldeu ou maronita, do Oriente, e também os patriarcas de Constantinopla e da Síria fizeram “questão de vir aqui”.

O Museu de Lisboa – Santo António, reaberto em 2014, paredes-meias com a igreja, coleciona peças sobre o homem que nasceu Fernando. A peregrinação aqui é artística, numa viagem que passa pela relação entre o jovem e a cidade onde viveu até aos 20 anos, com peças de coleções públicas e privadas e diferentes museus nacionais.

A tradição popular tomou António como um santo de especial devoção. E o roteiro que aqui se propõe tropeça numa exposição temporária – disponível até 30 de junho [de 2019], junto ao museu – de uma procissão de Santo António, 300 peças dos irmãos Baraça, representantes da típica cerâmica de Barcelos, que fotografaram uma das procissões (que acontece todos os 13 de junho e a ela se juntam os santos das igrejas por onde passa). A partir das fotos, os ceramistas reproduziram todos os seus participantes, escuteiros, bombeiros, polícias, padres e populares e o andor no carro.

Do lado de fora da igreja, também há quem entregue a sua devoção junto da pequena estátua de Santo António, inaugurada “pelo Papa João Paulo II”, no dia em que o Papa foi ali rezar. Na base, junto a esta inscrição, repousa o brasão do papa polaco.

As velas estão apagadas e a estátua quase fica escondida por entre a parafernália de uma estação televisiva que ali faz um programa dedicado aos santos populares. Tudo em volta é feérico e mesmo um outro Santo António, de cerâmica, pintado de cor-de-rosa, colocado junto à entrada do museu, submerge na confusão em volta. É um ícone pop.

Pelas ruas de Alfama, sobejam gift shops souvenirs, por entre balcões e barraquinhas improvisadas que abastecem as noites dos santos, onde se inscrevem versos magoados, como os de que “Alfama não cheira a fado/ Cheira a povo, a solidão/ Cheira a silêncio magoado/ Porque querem matar a tradição”. E resiste um pequeno azulejo com a imagem clássica do santo, de criança ao colo e ar contristado. Estamos na Rua de São Miguel, multiplicam-se os templos fechados, o desta rua, mas também o de Santo Estêvão. Só num pátio escondido da Rua das Escolas Gerais, o elétrico 28 a serpentear a colina cheio de turistas ali acima, encontramos um outro painel, gasto e tosco, uma auréola no santo e outra na criança de colo, entalado entre duas janelas num prédio pintado de amarelo. E dois americanos, enormes, a fumar a vapor e a ouvir música no telemóvel a olhar para o casario, sem ligar peva.

Embrenhando-se pelo bairro, não há sinais dos tronos de Santo António, antiga memória dos peditórios que ajudaram à reconstrução do templo depois do terramoto de 1755. Esta arte efémera começava a ser armada de forma espontânea pelos moradores do bairro, em finais de maio, nos pátios e às portas das casas, e eram os tronos o primeiro sinal das festas de junho. E com eles vinham os miúdos a pedirem uma moedinha para o santo. Num café, às Escolas Gerais, ali abaixo de São Vicente de Fora, pergunta-se pelos tronos. “Ah, eram tradição, agora só há alojamentos locais”, responde-nos o homem com uma bica. Nem tudo se perdeu, agora promove-se um concurso de tronos e figuras, que começaram a ser expostos no fim de semana (e ficarão durante o tempo que apetecer aos seus autores).

Nem só de arte temporária e efémera se faz um roteiro de António por Lisboa: no Museu Nacional de Arte Antiga pode espreitar-se um Santo António pregando aos peixes, de Vieira Lusitano, do século XVIII, um São Francisco e Santo António, uma pintura a óleo do mestre da Lourinhã, do primeiro quartel do século XVI, e o Livro de Horas de D. Manuel, também do século XVI. Mais à mão, para viajantes apressados, na Estação do Rossio, há um painel de azulejos com Santo António junto à Sé, de Lima de Freitas, deslocado no tempo, com um elétrico e namorados e candeeiros.

Regressa-se a Alfama, seguindo por Santa Clara e chegando à colina que sobe para Sapadores, Santa Apolónia dos comboios ali abaixo. Vamos a caminho da Capela do Vale de Santo António, na rua com o mesmo nome. Estamos numa zona que é uma amálgama arquitetónica e, encravada no casario incaracterístico, a capela branca, de linhas simples e uma curta torre sineira.

Também conhecida por Ermida de Santo António do Vale e Nossa Senhora da Assunção, esta capela foi edificada em 1780 (e há uma pequena placa que assinala o “II Centenário da edificação”). O santo casamenteiro está embutido num pequeno nicho, por cima do n.º 84, numa porta lateral da capela. Mais acima, na fachada principal, um vitral revela António.

Foi aqui que, diz a tradição, o franciscano descansou quando se dirigia ao rio Tejo, vindo do Convento de São Vicente, para embarcar em direção às costas do Norte de África. Agora não há quem pare, as portas estão fechadas. Há uma ranhura onde se lê “pão de Santo António”, para esmolas, que remete para a tradição antoniana de colocar nas igrejas uma caixa para o “pão dos pobres”.

No antigo Convento dos Capuchos instala-se hoje o Hospital de Santo António dos Capuchos, onde no pátio de entrada está uma referência escultórica ao monge. O nome do estabelecimento, ao Campo de Santana, vem do século XVI quando ali se ergueu um convento com o nome do doutor da Igreja, que foi entregue aos padres recoletos da Custódia de Santo António. É o Patriarcado Latino de Jerusalém que nos conta que o homem de Lisboa e Pádua “é venerado de forma especial pela comunidade dos franciscanos da Terra Santa”.

Este roteiro da Lisboa de António termina já longe do centro, em plena Praça de Alvalade, onde uma enorme estátua do escultor António Duarte ali foi erigida e inaugurada em outubro de 1972. De cada um dos lados, faz-se o percurso de António, “padroeiro de Portugal 1195-1231”, que viveu em “Lisboa 1195-1213”, esteve a estudar em “Coimbra 1213-1221” e, por fim, morreu em “Pádua 1231”. Por entre carros apressados, e sem passadeira para a placa central, há quem ali vá venerar o santo: lá estão vasos de flores e, estamos em junho, um grande manjerico.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias em 11 de junho de 2019, republicado em 2020]

Dezembro 21, 2021

Cuidado com o beijo

Miguel Marujo

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Muitos anos antes da covid-19, já havia preocupações com determinadas tradições natalícias, como a do "beijo ao menino". No Natal de 2000, o então bispo de Leiria-Fátima pedia cautelas neste tradicional ritual das missas de Natal, por causa do «recrudescimento da tuberculose». 

 
Um simples beijo no “menino”, um gesto quase mecanizado, repetido em todos os natais, nas igrejas portuguesas de Norte a Sul. Bastou um alerta sobre possíveis perigos relacionados com este beijo e logo se inflamaram alguns ânimos. 
 
O bispo de Leiria-Fátima, D. Serafim Ferreira e Silva, sugeriu aos padres da diocese que encontrassem alternativas ao tradicional beijo na imagem do Menino Jesus, uma tradição nas missas desta época natalícia, para «acautelar os riscos», quando se assiste ao «recrudescimento da tuberculose», mas rejeitando qualquer proibição e alarmismos. Apesar das cautelas do responsável eclesiástico, a iniciativa mereceu críticas do director da Associação Nacional de Tuberculose e Doenças Respiratórias, António Romão, em declarações ao jornal «Público», esta sexta-feira. 
 
Para este médico pneumologista, «a eficácia dessa proibição é praticamente nula», acrescentando que «só se a pessoa mandasse uma expectoração é que haveria algum perigo». E remata que «as pessoas que vão beijar o Menino Jesus nem sequer pertencem aos grupos de risco», como migrantes clandestinos ou toxicodependentes. 
 
A proposta inédita é «um sinal simbólico e pedagógico» às comunidades, explicou o prelado de Leiria ao PortugalDiário. «Alertado por uma médica» e apoiado por um grupo de médicos do Hospital de Leiria, D. Serafim quis sensibilizar a população. Afinal, diz, «a Igreja tem sido paladina dos direitos da saúde», com uma «caminhada social notabilíssima». 
 
Na sua mensagem de Natal [de 2000], o bispo de Leiria dirige um apelo aos padres diocesanos para que, «apesar das tradições e dos sentimentos», procurem «encontrar alternativas, que respeitem a dignidade do gesto e a preservação da saúde». Uma vénia, um gesto de carícia na imagem ou uma genuflexão são algumas das possibilidades. Que os padres de Leiria, contactados pelo PortugalDiário, não rejeitam. «Estou disponível para outro tipo de gestos que as pessoas assumam», diz Abílio Lisboa, padre em Pousos. Para o pároco da Sé de Leiria, Joaquim Almeida Baptista, os fiéis poderão fazer «o gesto que quiserem, aquilo que as sensibiliza mais», uma recomendação que António Pereira Faria, prior da Barreira, outra freguesia do concelho de Leiria, também fará aos seus paroquianos. 
 
«Sem alarmismos», os sacerdotes referem que este «é um assunto menor», na expressão de Pereira Faria, e que esta não «é uma questão fundamental do cristianismo», como acrescenta Almeida Baptista. Mas, reconhecem, a atenção à saúde pública é um aspecto necessário. Por isso, o prior da Sé não fará «tábua rasa da recomendação». Por enquanto, e porque a «sensibilidade vai-se apurando lentamente», D. Serafim Ferreira e Silva mantém a tradição: «No dia de Natal, eu próprio darei a imagem a beijar a quem quiser». 
 
Esta advertência sobre o beijo no “menino” levantou a questão da distribuição da comunhão na boca, «muito mais importante», na expressão de todos aqueles que foram ouvidos pelo PortugalDiário. D. António Marcelino, bispo de Aveiro e vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, refere que na próxima assembleia do clero da sua diocese, a 28 de dezembro [de 2000], este será um assunto na mesa. E diz que insistirá com os sacerdotes para adoptarem a comunhão na mão, «mas sem forçar ninguém». 
 
D. Manuel Falcão, bispo resignatário de Beja e presidente da Comissão Episcopal da Liturgia, diz que se «deve caminhar» cada vez mais para a distribuição das hóstias na mão. E, referindo as palavras de Jesus na última ceia, diz que «“tomai e comei” não é meter na boca; tomar na mão é muito mais fiel à ordem de Cristo». Por tudo isto, em Pousos, «como prática, as crianças são educadas a receber a comunhão na mão», conta Abílio Lisboa. Se ainda «há um caminho a percorrer», como diz este padre, porque «há maneiras arreigadas que tem de ser respeitadas, o respeito pela inovação também é importante». 
 
[artigo publicado originalmente a 23 de dezembro de 2000, no Portugal Diário, reproduzido a partir do blogue LxRepórter
 

Novembro 09, 2021

A caminho da Expo: um bairro inteiro que quer criar

Miguel Marujo

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À passagem dos 20 anos da Expo'98, antes de uma pandemia que suspendeu vidas, uma reportagem nos caminhos do Oriente sobre a vida que fervilhava por ali, num bairro onde agora querem fazer nascer unicórnios (não lhes digam nada, mas os unicórnios não existem).



De bicicleta, numa foodtrip pela Europa, Anne e Antoine Legrand começaram por se maravilhar pelo Alentejo, onde pensaram lançar âncora, mas chegados a Lisboa enamoraram-se de tal modo da cidade que deixaram o sonho de viver nas terras da planície para um dia.

Quando procuravam móveis para a casa que encontraram na Graça, foram parar a uma loja de mobiliário vintage no Beato, num enorme armazém como tantos outros na zona. "E assim descobrimos este bairro", explica Anne ao DN, em português.

É um bairro "com todo o potencial", diz, antecipando a escolha que ela e o marido fizeram por uma pequena casa que será um restaurante familiar [A Ilegítima, assim se chama], a inaugurar no outono [de 2018], junto ao Largo do Olival.

Este largo sossegado de coreto a um canto é um parque de estacionamento, onde os carros parados não perturbam a calma do lugar, com mesas para jogar às cartas e sem ninguém naquela tarde de dia de semana, casas de piso térreo ou de um ou dois andares, não mais, um apartamento de janelas de acrílico branco que denuncia a reabilitação recente e que está à venda, e outro edifício de esquina a cair.

Passam poucos por ali, encostados que estamos à Rua do Grilo, à Calçada Duque de Lafões e à Alameda do Beato, mas já há cartazes imobiliários nesta Lisboa que agora, 20 anos depois da Expo'98, deixou de ser apenas uma terra de passagem entre o centro da cidade e o Parque das Nações. Beato e Marvila ficaram a ver o progresso nascer paredes meias com estas duas freguesias, e começam por fim a mexer. Sem medo da gentrificação, o palavrão para estes tempos. 

"É um bairro ótimo, parece Brooklyn", compara Anne Legrand, "com as cervejas artesanais, as galerias de arte. Aqui há garagens, armazéns, um bairro inteiro que quer criar", entusiasma-se Anne. "E eu tenho um milhão de ideias", antecipa.

Ideias de sobra têm também os responsáveis do Hub Criativo do Beato (HCB) para uma área de 35 mil metros quadrados e 20 edifícios, enumera Miguel Fontes, diretor executivo da Startup Lisboa, a quem a Câmara de Lisboa entregou a gestão do projeto.

Se "Lisboa está no mapa", como diz ao DN, "obriga Lisboa a mexer-se", apostando numa zona da capital que começou a "ganhar outra dinâmica". "De Santa Apolónia à Expo" - como tantos ainda hoje dizem, referindo-se ao Parque das Nações - "era a zona que faltava desenvolver e consolidar". Por isto, "a localização do Hub não foi inocente", admite Miguel Fontes.

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No espaço por agora quase vazio, há obras de saneamento a arrancar e empresas que já começaram a anunciar a sua instalação na antiga Manutenção Militar - era ali que se fazia o pão, as massas e as bolachas para os militares portugueses. Miguel Fontes chama-lhes parceiros e puxa dos nomes com satisfação: haverá a Factory Berlin, o hub digital da Mercedes, a Super Bock, a Web Summit ou a Startup Lisboa. São "entidades âncora", ímanes que podem atrair outras nos eixos definidos para o HCB: empreendedorismo, indústrias criativas e mundo corporativo. E haverá ali um museu, na antiga fábrica da moagem, para perpetuar a memória do lugar.

Até ao final de 2019, Miguel Fontes conta ter "os primeiros ocupantes a abrirem portas", num espaço que se foi mostrando à cidade com eventos, que ocuparam o local, como a mais recente exposição do World Press Photo.

O responsável recusa que o projeto seja um objeto estranho ao bairro, a esta zona de Lisboa. Mas reconhece que "já havia uma dinâmica própria no Beato e em Marvila". O HCB "é um ponto de partida e de chegada", conta, recordando a reunião que mantiveram com comerciantes e líderes da comunidade para lhes explicar o que será o Hub e para os ouvir. "O desafio é controlar os efeitos mais perniciosos, como a gentrificação."

Anne Legrand duvida que venha a ser um bairro tão atingido como outras zonas da cidade. "É uma zona de trabalho e industrial, não é uma zona turística", nota, eventualmente procurada por quem se interessa por arte urbana. Eles próprios na sua Maison Legrand, empresa de eventos, que pretendem que funcione como um laboratório, querem "trazer os locais". "Não procuramos os turistas, se vierem muito bem, mas queremos trazer quem vive e trabalha em Lisboa", para se sentarem na sua cozinha em volta da mesa.

É de vizinhos que se faz também a clientela do Bistrô Lisboa, cafetaria e lounge como se apresenta o estabelecimento na Rua Fernando Farinha, numa urbanização de prédios incaracterísticos de construção recente, e onde sobressai o elétrico amarelo que marca a Lisboa que os turistas procuram. Sem quererem fazer um simples "café do Nuno e do Bruno", o Bistrô nasceu com vontade de ser diferente. Bruno Ribeiro é desta zona de Marvila, o Vale Formoso, e depois de saber da disponibilidade do espaço desafiou Nuno Gomes (trabalhavam os dois numa empresa da restauração) para fazer de outro modo, onde a oferta é limitada. "Manter o tradicional mas atualizado" - e desde há dois anos e meio que assim fazem. À oportunidade de negócio, estudaram os clientes e o que pediam para apostar em alimentação saudável, sumos naturais, saladas. Há bolachas e chás e um parque infantil ao lado, muito procurado.

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Em conversa com o DN, os dois notam que já há "muita procura imobiliária" e "pouca oferta". "Se souberem de alguém que venda", ou "arrende", pergunta quem passa, também estrangeiros. Ao longe, no fundo da rua, veem-se os silos de cereais do Beato, o azul do Tejo a espreitar.

Numa zona "muito parada, envelhecida e e decadente", que foi perdendo atratividade, a sua precariedade "trouxe este tipo de usos" de gente a apostar em negócios e espaços diferentes, avalia Miguel Fontes. "O início desta dinâmica esteve muito cruzado com esta indefinição." Agora, é tempo de outra definição: o Beato e Marvila não são mais meras passagens a caminho do Oriente.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias a 23 de maio de 2018; foto principal: Anne Legrand, no espaço que viria a ser o restaurante familiar, © Pedro Rocha/Global Imagens]

Julho 30, 2021

Presos à consciência

Miguel Marujo

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INVESTIGAÇÃO: Testemunhas de Jeová foram condenadas por não quererem fazer a tropa – nem o serviço cívico. Em Portugal, em plena democracia. Uma reportagem publicada em 2002.

 

Uma proibição de 50 anos valeu a prisão de muitos fiéis das testemunhas de Jeová, em todo o mundo. Em Portugal, também houve condenações. E dois ou três jovens terão passado pela prisão. A causa: recusa em cumprir o serviço cívico em alternativa ao serviço militar. Em nome de Jeová, que neste caso se pode traduzir em nome da intransigência dos homens.

Como José (os nomes são fictícios, a pedido dos próprios), membro das testemunhas de Jeová numa cidade do interior de Portugal. Esteve em tribunal por recusar prestar serviço cívico. Condenado com «uma pesada multa monetária» – ficou cadastrado, por uma doutrina que já não existe. Ou Manuel, filho de portugueses emigrantes nos arredores de Paris, que esteve preso um ano em 1989/90. Em França, como noutros países, muitas testemunhas passaram pelas cadeias.

Hoje, «o serviço militar é uma questão de decisão pessoal, de responsabilidade individual», disse ao PortugalDiário Pedro Candeias, da Associação de Testemunhas de Jeová em Portugal (ATJ). Mas nem sempre foi assim: da Segunda Guerra Mundial até 1996, os responsáveis veicularam a proibição do cumprimento de serviço militar e cívico.

Também diferentes acórdãos de Tribunais de Relação e do Supremo Tribunal de Justiça dão conta de vários recursos apresentados por jovens condenados, por recusa de prestação de serviço cívico.

Uma testemunha, nascida em Luanda, recenseada para efeitos militares no Laranjeiro, freguesia do concelho de Almada, baptizada numa congregação da ATJ de Almada, recusou-se servir a dois senhores: «Ali serviu como publicador cristão [que divulga porta a porta a sua doutrina]. Declarou não aceitar prestar qualquer outro serviço em substituição do serviço militar», lê-se no acórdão.

Já este ano [de 2002] uma publicação interna da ATJ – «Nosso Ministério do Reino» (Janeiro de 2002), a que o PortugalDiário teve acesso – anuncia o recenseamento militar para «varões» com 18 anos. Mais: trata-se de uma «obrigação cristã». Porque mudou a atitude? Por causa «da lei», dizem os "anciãos" da ATJ. Por «nada», respondem membros críticos da associação.

«As testemunhas de Jeová são profundamente cristãs», referiu Pedro Candeias. Por isso, seguindo «Jesus Cristo como ponto principal do ensino bíblico», devem recusar prestar serviço militar. A reserva é total, quando confrontado com as histórias individuais de "objectores ao serviço cívico": desconhece eventuais idas a tribunal, por não estar à época (finais dos anos 80 e inícios de 90) na direcção da ATJ. E a recusa da prestação de serviço cívico? «Teriam de ser os próprios a responder», diz Candeias.

Esta é a linha oficial desde 1 de Maio de 1996: a revista «A Sentinela» adverte que «o cristão dedicado e baptizado terá de fazer a sua própria decisão [em cumprir um "serviço civil compulsório"] à base da sua consciência treinada pela Bíblia». Mais: «Os anciãos designados devem respeitar plenamente a consciência deste irmão e continuar a considerá-lo como cristão de boa reputação».

«No passado, algumas testemunhas sofreram por se terem negado a participar numa actividade que sua consciência agora talvez permita», escreve-se ainda. Os críticos garantem que nunca se trataram de decisões pessoais, mas sim imposições. E quem não acatasse a ordem era excomungado, desassociado, e ninguém podia falar com eles - estavam condenados ao ostracismo.

Em 1949, no livro «Seja Deus Verdadeiro», o Corpo Governante – o órgão máximo dirigente mundial das TJ – condenou o «serviço militar combatente ou não». Proibição reafirmada em 1955, em nova edição, e em publicações internas («Despertai!», de 8/5/1975, e «A Sentinela», de 1/9/1986).

Como se lê num dos textos, de 1955: «A actividade de pregação dos ministros de Jeová lhes confere o direito de solicitar isenção de prestar treinamento militar e serviço nas forças armadas. A condição de isenção das testemunhas de Jeová também as dispensa de prestar o serviço governamental que se requer dos objectores de consciência aos serviço militares, combatentes ou não». O ano de 1996 ainda estava longe.

 

Um longo processo

Em Portugal, não há dados para quantificar o número de testemunhas de Jeová que tenham sido condenadas. Os processos ficaram dispersos por diferentes tribunais e o Gabinete do Serviço Cívico dos Objectores de Consciência (GSCOC) não recebeu esses dados sistematizados. O que se sabe é que cerca de 70/80 por cento dos objectores são fiéis daquele movimento religioso.

Até 1992, a obtenção do estatuto de objector de consciência ao serviço militar obrigatório forçava a um processo judicial, uma medida que só foi corrigida nesse ano – passando o processo a ser meramente administrativo.

Entre 1989 e 1992 foram vários os casos julgados. O Supremo Tribunal de Justiça emitiu 22 acórdãos sobre casos que envolveram testemunhas de Jeová objectoras de consciência. O incumprimento da prestação de serviço cívico implica uma pena que pode ir até dois anos.

As testemunhas de Jeová tentaram convencer os juízes que a sua recusa se fundava na sua doutrina. Os fiéis apenas se sentiam obrigados «a servir a Deus»: «Qualquer trabalho que fosse simples substituto para o serviço militar não seria aceitável às testemunhas de Jeová», lê-se em «Despertai!» (8/5/1975), uma argumentação repetida até à inversão da doutrina em 1996.

Às jovens testemunhas que recusavam cumprir a lei nunca lhes foi dito que o serviço cívico não estava ligado à instituição militar. E os processos seguiram para tribunal. Só não houve mais condenações por um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) – e pela actuação do GSCOC, que discretamente arrastou o reconhecimento dos objectores.

O acórdão do STJ, a 3 de Outubro de 1991, indica que «a concessão do estatuto de objector de consciência (...) não depende da prévia aceitação pelo requerente da prestação de serviço cívico, funcionando este como uma sua consequência e não uma condição». Ou seja, ninguém podia ir a tribunal apenas por manifestar a intenção de não cumprir o serviço cívico – depois de convocado, apenas podia ser condenado se recusasse a sua prestação.

Outro factor que veio aliviar a possível condenação de testemunhas de Jeová foi "prolongar" os seus processos entre o momento em que o estatuto foi requerido e a altura em que se reconheceu como objector. Por isso, verificou-se um aumento de estatutos reconhecidos a partir de 1996, com grande expressão em 1999: 2062 novos objectores, num universo de cerca de seis mil em dez anos (1992-2001).

 

«Um mundo orwelliano»

«Bem-vindo ao mundo “orwelliano” das testemunhas de Jeová», ironizaram fontes contactadas, a propósito de “sites” na internet e vozes críticas que, do interior das testemunhas de Jeová, procuram uma nova forma de viver a sua fé. «O que custa mais é transformar a partir de dentro», relataram. Por causa do «ostracismo» a que são votados os “dissidentes”, mas também os familiares que eventualmente permaneçam.

E há uma suspeição face àqueles que, de fora, procurem saber coisas sobre as testemunhas de Jeová, como revela uma advertência publicada em «Nosso Ministério do Reino» (Janeiro de 2002): «Irmãos de diversas congregações têm sido contactados por pesquisadores e outros que procuram obter informações sobre as Testemunhas de Jeová e a sua organização. (...) Se tais pessoas abordarem um publicador de congregação, ele deve fornecer o nome do superintendente presidente [um superior hierárquico]. Os anciãos [clero não remunerado] podem lidar com tais pesquisas e respondê-las de forma adequada (...).»

A falta de liberdade de expressão e os direitos humanos, a utilização da internet, as transfusões sanguíneas, o simples exercício do voto ou a recusa de cumprir o serviço cívico são alguns dos aspectos realçados pela documentação consultada.

A internet é hoje a principal fonte de críticas de muitas testemunhas de Jeová. Dezenas de sítios e páginas, sob a capa inevitável do anonimato, apresentam denúncias, procuram contradições, analisam documentação, alicerçado numa vontade – levantar «dúvidas». Um acto simples, mas reprovável, à luz do Corpo Governante, que tutela o pensamento “teológico” deste movimento religioso: «Não permita que dúvidas destruam a sua fé», lê-se num artigo publicado em «A Sentinela» (1/7/2001).

Num sítio crítico (“O Sentinela”, em alusão à revista das Testemunhas de Jeová) defende-se a internet como o instrumento que permitiu a muitos «conhecer o outro lado da moeda, as mentiras, os envolvimentos políticos, os falsos moralismos, os ensinamentos erróneos de cumprimento de profecias». Sem controlo da Sociedade Torre da Vigia (hoje Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová), que desaconselha o uso da internet por fiéis. Curiosamente os órgãos dirigentes mantêm um “site” oficial – que se proclama como o «sítio autorizado acerca das crenças, ensinamentos e actividades das Testemunhas de Jeová».

[artigo revisto a partir do publicado originalmente no PortugalDiário.iol.pt, em 22 de março de 2002, na antiga ortografia, disponível em Arquivo.pt; foto do Congresso anual das Testemunhas de Jeová (em 2013, em Guimarães), de © Paulo Jorge Magalhães/Global Imagens]