Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Março 10, 2023

A cidade dos canais e dos doces e da arquitetura e...

Miguel Marujo

Esqueça o cliché da Veneza portuguesa, ainda que haja canais e barcos únicos. Não se queixe da dieta, ainda que haja ovos moles e muitos doces. Lembre-se que isto é património da humanidade, ainda que a UNESCO ande distraída.

Este texto de 2012 propunha um roteiro para 24 horas, ou mais, e está obviamente datado nas recomendações mais práticas - de restaurantes e bares, por exemplo, e até de empreitadas duvidosas que se anunciavam, mesmo que a cidade esteja ainda esburacada no Rossio para um parque de estacionamento ruinoso e a Avenida tenha sido tomada de assalto por obras de Santa Engrácia e dona estragação. Boas novas: a Maria da Apresentação já está posta também ao lado da Costeira. E há mil e uma outras coisas boas a fazer. 

 

IMG_0256.jpg

 

Ovos moles, caramujos e cartuchos, castanhas de ovos, lampreia de ovos, tripa de ovos ou com chocolate. Tome nota: 24 horas em Aveiro têm de incluir estes doces. Não se queixe da dieta que as calorias gastam-se a pedalar. O passeio que agora está a começar é de buga, que é como quem diz a bicicleta gratuita que o leva a (quase) todo o lado deste roteiro de um dia só. A cidade dos canais também pode ser vista de barco — mas falta-lhe a dimensão épica de Veneza, onde a água se intromete em todas as vielas e cantos — ou percorrida a pé, tarefa facilitada numa cidade plana.

Para chegar à terra de cagaréus e ceboleiros, o melhor é o comboio que permite ver logo à chegada a Estação da CP, edifício que em 1916 foi decorado com os azulejos que o tornaram um dos cartões de visita de Aveiro. Depois desça a pé "a Avenida", que não precisa de outro nome, até chegar ao antigo Cine-Teatro Avenida, onde a Oposição Democrática à ditadura de Salazar saiu à rua. É hoje um bingo.

Está perto da loja das bugas, onde pode recolher a bicicleta para passear. Para os ouvidos, banda sonora também há: a "Menina da Ria" que "encheu de elegante alegria" o baiano Caetano Veloso.

 

 

Depois já sabe, trilhe os seus roteiros. O das pastelarias, com montras de comer e chorar por mais. Na Avenida, que os aveirenses também chamam de Ramos, pare, veja e coma: cartuchos e caramujos. Há quem fique cheio só de olhar. Na Costeira, compre uma barrica de ovos moles, enquanto não chega à fábrica deles — nas ruas da Beira-Mar, antigo bairro de pescadores e marnotos — a de Maria da Apresentação e herdeiros, cujas partilhas se traduzem desde 1882 nas castanhas, nas broas e nos obos móis, também em hóstias com que, diz a lenda, a freira castigada por gula embrulhou os ovos e o açúcar.

Leve a bicicleta pela mão e perca-se até à Praça do Peixe, local a que voltará à noite — é aí a movida noturna aveirense, com bares de todas as bebidas e feitios, que transbordam para a rua. (Atenção ao Bucha e Estica, onde os copos como Laurel e Hardy engordam ou emagrecem.) Não estranhe que por aqui se meta em atalhos e tropece nos canais em que a ria namora a cidade. O Cais dos Botirões, a desaguar na praça, é o mais emblemático — nas cores refletidas na água.

Está próximo do Canal de S. Roque, por onde correm antigos barracões de sal, os salineiros ali encostados pela pouca serventia, que o sal hoje definhou, e os moliceiros que levam turistas sem o moliço que antes alimentava as hortas das populações anfíbias.

Vai acabar por chegar ao Rossio e ao Canal Central, entaipados para uma ponte de duvidosa utilidade e estética. Faça uma pausa para uma tripa (de ovos ou chocolate ou mista, e não pergunte o que são: coma!), na casa delas.

Mora ali também a Casa Major Pessoa, belíssimo objeto de arte nova (e museu), em que Caetano também notou.

A arquitetura da cidade não se reduz a este e mais alguns exemplares vizinhos de arte nova. O campo universitário é uma montra dos nomes maiores da arquitetura. Siza Vieira, Souto Moura, Carrilho da Graça, Gonçalo Byrne, Alcino Soutinho e muitos outros. Um catálogo vivo que se deita junto à ria que foi durante séculos vida e morte de Aveiro.

Esse é mesmo o último roteiro a fazer: explorar as redondezas, a ria de Norte a Sul, ver a obra de engenharia que foi a barra do porto, na Praia da Barra (e o seu Farol, o maior do país), a praia da Costa Nova e os seus palheiros às riscas, e São Jacinto das dunas.

Costa Nova.JPG

 

A jornada pede alimento. Recomendações locais indicam O Batel ou O Marujo (declaração de interesses: não é da família), La Mamaroma ou a Pizzarte (ai os crepes de ovos moles!) e o hambúrguer do Ramona (fama local que merece o mundo). A noite pode ainda acabar no Olaria, um bar na antiga Fábrica Campos, de cerâmica. Se não derem 24 horas, use mais tempo. A UNESCO anda distraída, mas Aveiro é património da humanidade.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 14 de agosto de 2012; fotos de julho de 2022, em Aveiro e na Costa Nova © Miguel Marujo]

 

Junho 23, 2021

Os galos pedem a nacionalização dos ovos! Abaixo o sabão amarelo! Visite o andar-modelo

Miguel Marujo

25do4.jpg

No Maio de 68, eles pegaram nos paralelos e fizeram das ruas de Paris a sua praia da utopia. Sonhavam com a imaginação ao poder, eram realistas, por isso pediam o impossível, era proibido proibir e a liberdade era o crime que incluía todos os crimes e por isso era a arma absoluta de quem protestava.

No 25 de Abril, naquela manhã clara e limpa, a liberdade saiu à rua num dia assim e descobriu-se também uma torrente de palavras novas para dar significado à festa que se vivia. Gritou-se por aquilo que a ditadura de 48 anos tinha roubado: "Liberdade, liberdade, liberdade" foi a palavra de ordem que muitos começaram a lavrar em forma de alegria nas ruas de Lisboa, registada pelos repórteres tão comovidos como os populares, enquanto acompanhavam os militares que tinham deposto o regime. Disseram "fascismo nunca mais", como se repete "25 de Abril sempre" porque nunca devemos ter a democracia por garantida. Pediu-se "trabalho igual, salário igual", e ainda temos de o lembrar. Dizia-se "os ricos que paguem a crise" e sabemos que continuamos nós a pagar as crises dos ricos. "O povo unido jamais será vencido", sonhava-se. Havia no ar e nas palavras aquilo que, uma vez, Pacheco Pereira definiu como "uma ideia antiautoritária, uma alegria antiautoritária", pronta a "incomodar os slogans da época".

Daí nasceram alguns irreverentes slogans, palavras de ordem que devíamos recuperar. Ficam algumas destas frases, prontas a serem escritas e levadas no bolso, para as usarmos na situação certa, quando alguém nos quiser dizer basta, quando afinal quer negar a liberdade.

"Abaixo o sabão amarelo! Abaixo a tinta-da-china! Independência nacional, já!" "Abaixo a reação, viva o motor a hélice." "Inter 2, Sindical 0." "A terra a quem a trabalha. Mortos fora dos cemitérios, já!" "Abaixo a foice e o martelo, viva o Black and Decker!" "O socialismo está em construção, visite o andar-modelo." "Os galos pedem a nacionalização dos ovos." "Cimbalino ao poder, abaixo o café de saco!"

Já sabemos: a liberdade está a passar por aqui.

[artigo originalmente publicado no DN, com o título "Visite o andar-modelo", a 24 de abril de 2019; foto MM, de abril de 2014, de uma exposição na Assembleia da República sobre os 40 anos]

Janeiro 04, 2020

A casa que perdeu o chão

Miguel Marujo

Apúlia.jpg

É uma casa que já perdeu o chão. O mar veio e galgou areias e pedras e a casa lá ficou, suspensa no ar, inclinada enquanto resiste à queda definitiva. Quem ali vivia já desistiu mas há alguns que resistem, em casas nas dunas, algumas de pescadores - que esses são cada vez menos e a faina já não rende - outras de habitação de veraneio, do tempo em que se permitiam todos os devaneios. E há restaurantes na beira da estrada mas o mar já se abeira deles em dias alterados.

Chega-se à casa sem chão na praia da Apúlia e no horizonte a norte, em direção a Esposende, há mais casas com o mar a fustigar as dunas que são os seus alicerces. Anda por ali muita gente, uns políticos de Lisboa vieram ver o que se passa naquela língua de areia que se prolonga até à restinga da foz do Cávado e, sem que ninguém lhes pergunte, falam das alterações climáticas. Aquela gente que vê o mar vir para terra não lê certamente ensaios falhados de antigos humoristas encartados no ceticismo militante contra estas mudanças, mesmo que na hora de defender os seus argumentos garanta - a pés juntos, como se o chão não lhes fugisse - que o mar não avança.

Todos têm uma ideia de como resolver a coisa, entre o sonho de repetir os diques que impedem o oceano de avançar nos Países Baixos aos homens que já se resignaram à força do mar. "Vamos ter de desocupar o litoral", dizia um, antecipando o pior dos cenários. "Se o essencial for retirar da costa, que se retire da costa", disse outro. "A comunidade científica mundial diz que o melhor é retirar, gaste-se a proteger bens e pessoas", completou. Outro deixou um pedido angustiado. "Façam qualquer coisa para defender a costa e não venham para cima dos desgraçados." Um dos políticos concluiu salomonicamente que "contrariar as alterações climáticas é como travar o vento com as mãos" mas as populações também não podem ser deslocalizadas. A casa sem chão já mostrou que o mar quer ter uma palavra.

[artigo originalmente publicado no DN/1864, em 12 de março de 2019; foto MM, na Apúlia, em 18 de fevereiro de 2019]

Janeiro 03, 2020

Às malvas com as convenções

Miguel Marujo

Nuovo-Cinema-Paradiso-54.jpg

Quando Salvatore recebe a notícia da morte de Alfredo, o projecionista do pequeno cinema da sua aldeia natal, a sua vida passa-nos no grande ecrã: desde os tempos da infância, quando o pequeno Totó, como chamavam a Salvatore, se apaixonou pela magia do cinema, à adolescência em que se enamora de Elena. Mas a melhor síntese da sua vida está num pequeno filme que Alfredo lhe deixou e que não é mais do que uma extraordinária montagem de cenas cortadas dos filmes que eram exibidos no Cinema Paradiso e o padre mandava censurar ao som de um sino.

São beijos e beijos e beijos, e alguns nus, que não passavam no crivo do senhor de batina. É um dos mais belos hinos à história do cinema - e ao beijo!

Às malvas com as convenções, quando aqueles beijos se mostram naquelas películas enxertadas. O cinema sempre nos deu um beijo chamado desejo: quando nos lembramos de Burt Lancaster e Deborah Kerr, deitados na praia, em From Here to Eternity; quando o Homem-Aranha de cabeça para baixo beija Mary Jane; ou quando a misteriosa Rita toca nos lábios da inocente Betty em Mulholland Drive; e ficávamos aqui a ocupar páginas e páginas com exemplos destes. É esse também o sonho do cinema.

Há tratados sobre isto, páginas de filosofia, o beijo contado ao longo da história, fotografias, pinturas, livros, mas nada nos prepara para o momento em que mandamos um recado à professora da nossa filha e ela nos explica o que devemos escrever. "E depois terminas com beijinhos." Não, filha, não se mandam beijinhos à professora. Talvez no cinema.

[texto originalmente publicado no DN/1864, em 16 de abril de 2019]

Dezembro 23, 2019

... e viajámos apenas nos sonhos

Miguel Marujo

round-the-world-in-80-days.jpg

Quando a memória da leitura se perde no tempo, nada como regressar aos livros com a miúda, aqueles livros que fizeram a nossa infância, agora que ela também vai descobrindo as palavras encadeadas umas nas outras. Há tempos, depois de ter visto um espetáculo de dança que relatava a viagem de 80 dias à volta do mundo, a partir da obra que Júlio Verne tinha escrito em 1872, contei-lhe algumas dessas peripécias, a partir do relato parcelar que a dança tinha reavivado. Teve uma única pergunta para me fazer: consegue dar-se a volta ao mundo em 80 dias? Se isto é tão grande, é mais do que legítima a questão, pensei. Que sim, que hoje em dia até se pode fazer em menos tempo.

No tempo de Júlio, o ritmo era outro: os barcos a vapor, os comboios e as carruagens eram meios de transporte de então (e até mesmo um elefante, na aventura de Phileas Fogg). Agora galgamos países no ar sem nunca lá pôr os pés, atravessamos terras apenas com tempo para reabastecer o carro - é bem mais rápido dar a volta ao mundo.

Voltámos a pensar como seria fazer os tais 80 dias: sem uma qualquer enciclopédia de 30 volumes à mão, pesquisámos ao engano na internet, espreitámos pelo ecrã as terras que fazem o roteiro do livro, tentámos ver quanto tempo se demorava em cada etapa - para ver se de facto Fogg podia ter ganho a aposta de fazer a viagem em menos de três meses. As contas dariam sete dias de Londres ao canal de Suez, mais 13 daqui a Bombaim e três por terras da Índia até Calcutá. Somavam-se mais 13 dias até Hong Kong e seis para chegar a Yokohama, de onde se partia pelo oceano Pacífico durante 22 dias para alcançar São Francisco. Na América, eram sete dias até Nova Iorque e depois outros nove até Londres.

O entusiasmo levou-nos ao óbvio: procurar o original que algures existiria em casa, numa edição porventura comprada há muito com um qualquer jornal, apenas pelo prazer de viajar pela pena de Verne. Não o encontrámos e o sono venceu a excitação da viagem. E tal como Júlio um dia, ela prometeu então viajar "apenas nos sonhos".

[artigo originalmente publicado no DN/1864, em 2 de julho de 2019]

Dezembro 22, 2019

Blasfemos, graças a deus

Miguel Marujo

MP.jpg

 

Os Monty Python entraram algures nos ecrãs da RTP, talvez ainda a preto e branco - falha-se-me a memória e o Dr. Google não ajuda -, com aquele pé a esmagar um homem num genérico que antecipava já o humor desconcertante de travo surrealista e maluco, verdadeiramente louco, que ainda hoje nos faz rir a bandeiras despregadas. Monty Python's Flying Circus está cheio de episódios desses, como a Inquisição Espanhola, Spam ou as Avozinhas do Inferno, entre dezenas e centenas de outros, que ocupariam páginas e páginas.

Além da série, também tivemos os filmes, como A Vida de Brian, que blasfemava, segundo alguns crentes. A estes sobrava em fundamentalismo o que lhes faltava em humor, por não gostarem de ver esta história que se mete com Jesus e os cristãos. No entanto, este Brian desmascarava antes um seguidismo acrítico, uma fé sem vida, quando devia antes levar os cristãos a refletir sobre si próprios. Como na cena da crucificação em que Brian mimetiza Jesus e os ladrões lhe cantam Always Look on the Bright Side of Life.

Este episódio mostra-nos como as canções dos Monty Python são outra possível explicação para a universalidade do seu humor, que se mantém tão atual, como em Every Sperm Is Sacred, do filme O Sentido da Vida, ou Spam, de Flying Circus, que hoje é um termo banalizado no nosso quotidiano.

É este contexto que ajuda a explicar que o reencontro dos cinco Pythons vivos (Graham Chapman morreu de cancro em 1989), em dez espetáculos londrinos realizados em julho de 2014, tenha sido editado num álbum com quatro DVD intitulado One Down, Five to Go.

No funeral de Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin não estiveram presentes, para permitir alguma privacidade à família e enviaram um cartão com o tal pé do genérico de Flying Circus, onde deixaram um post scriptum: "Pisa-nos se estivermos a ser demasiado idiotas." O pé nunca foi usado.

[texto originalmente publicado no DN/1864, em 8 de outubro de 2019]

Agosto 20, 2019

Ruas estranhamente familiares que nos enchem a barriga

Miguel Marujo

68606339_421159478493861_1463222059835326464_n.jpg

Por estes dias, verão de 2019, as férias fizeram-se também nas coordenadas de sempre, revisitando os lugares da infância, entre Aveiro, as praias da Barra e da Costa Nova, a Arrancada e outros lugares da freguesia de Valongo, os dias a acordarem de neblina e o sol a romper quente, bolachas americanas e tripas, uma geografia muito própria feita de passagens acidentais, mais ou menos demoradas. Há conta disso lembrei-me desta breve crónica que escrevi há quase um ano no 1864, do Diário de Notícias, com o título As palavras que enchem a barriga, e que agora recupero. Continua atual, apesar do caramujo envergonhado que comi antes do atraso monumental do comboio de volta a Lisboa.

 

De cada vez que regresso a Aveiro, sou transportado como no conto em que Haruki Murakami nos leva por “um passeio a Kobe” (Granta Portugal, n.º 3), cidade onde viveu e onde ia cada vez menos. Aquele grande terramoto de 1995, no meu dia de anos, deixou-o também sem a casa da infância, onde até então viviam os pais. Assim, “descontando todas as recordações” que guardou no seu “íntimo” (“o meu bem mais precioso”), Murakami deixou de ter uma “ligação concreta” com aquela terra, “um profundo sentimento de perda”, como se as lembranças rangessem “de forma vaga, mas audível” dentro dele. E aquelas ruas eram estranhamente familiares, mesmo que não as reconhecesse.

De cada vez que regresso a Aveiro, pareço turista em casa própria, a redescobrir os recantos que foram meus na infância e juventude, a olhar com espanto as mudanças feitas, a temer que se destrua o Rossio porque um autarca quer ali enfiar um parque de estacionamento, como se ainda pensássemos as cidades nos anos 1980, a perder-me como se perdia Murakami nas ruas estranhamente familiares. 

Aveiro é uma cidade onde também já se ouvem queixas sobre turistas, à imagem da sua dimensão, uma escala humana como definiu Miguel Esteves Cardoso, que concluiu numa visita no mês de setembro [de 2018] que “maior que Aveiro é grande demais, mais pequeno que Aveiro é pequeno demais”. 

No tamanho certo querem-se os ovos-moles, que “estão melhores”, como descobriu MEC, que não sabia explicar como “porque já eram perfeitos”; os caramujos que os lisboetas chamam de cornucópias mas não têm aquele doce de ovos que fazem os olhos comer; e os cartuchos que o país descobriu numa reportagem televisiva, uma mistura que dispara massa de cacau com pão-de-ló, ovos-moles (sempre presentes, ámen!) e chantilly. 

As montras das pastelarias da cidade são de comer e chorar por mais, e ainda não falámos das broas e das castanhas de ovos ou das tripas de ovos ou com chocolate regina. 

Se Esteves Cardoso descobriu só agora a doçura de Aveiro e se eu já quase me perco nesta cidade bafejada por uma natureza ímpar que se intromete na bonita malha urbana (apesar das cicatrizes), o melhor mesmo é perdermo-nos no passeio. Por vezes, os afetos e as memórias difusas recuperam-se pela barriga. 

[texto editado a partir do original publicado na revista 1864 do DN, em setembro de 2018; foto de MM, agosto de 2019]

Agosto 14, 2019

Pink Floyd na Lua feita de queijo verde

Miguel Marujo

green-moon.jpg

Quando os Pink Floyd chegaram ao lado oculto da Lua, esse Dark Side of the Moon lançado em março de 1973, já traziam na bagagem uma outra viagem lunar.

Quase quatro anos antes, a 20 de julho de 1969, nos estúdios de televisão da BBC, os produtores do programa colocaram de um lado do estúdio um painel de cientistas e do outro quatro rapazes prontos a improvisar em conjunto ao vivo música para aquela emissão, em direto, da chegada à Lua da Apollo 11.

Moonhead é porventura dos temas menos conhecidos de Roger Waters, David Gilmour, Nick Mason e Richard Wright, os quatro Pink Floyd que naquela noite aceitaram o desafio da televisão britânica para esta sessão. "Era uma programação mais solta por aqueles dias e, se um produtor de um programa fosse mais ousado, eles eram capazes de fazer algo assim, mais fora da caixa", contou há dez anos Gilmour.

Esta banda sonora especial para a emissão espacial quase se perdeu no tempo, uns seis, sete minutos, nunca tendo sido editada em disco pela banda. Alguém a resgatou em duas bootlegs, With/Without e Wavelenghts, e mais ainda, alguém a publicou no YouTube, sobrevivendo a memória. Conta-se que a peça instrumental é conhecida também como Trip on Mars, mas nunca viajou para Marte.

Gilmour explicou que a BBC tinha pensado em meter pelo meio alguns intervalos na transmissão em direto da alunagem com a banda a tocar. Em estúdio estavam ainda atores que liam frases e poemas alusivos à Lua. Na descrição do floyd, Moonhead "é um blues agradável, atmosférico e espacial de 12 compassos". Confere: é uma trip psicadélica, onde nos sentimos com a cabeça na Lua, como pensaram os quatro no momento em que tocaram.

Por causa disto, a banda usou uma frase numa digressão digna do seu feito: "Pink Floyd — still first in space." Também o programa de televisão tinha um nome muito adequado às muitas histórias que se contavam naquele tempo, com a devida dieta de humor britânico. "Mas e se for feita de queijo verde?!" A Lua, claro.

[texto originalmente publicado na revista 1864 do DN, em 29 de junho de 2019]

Agosto 13, 2019

Apenas o suficiente para respirarmos

Miguel Marujo

Lamastrock.jpg

Deixem-me blasfemar: Johann Sebastian Bach é tido como o compositor de todos os tempos. Mas quando ouço Prélude de la Partita pour Violin nº 3 precedido de Pepa Nzac Gnon Ma vacilo. Estou a meter no mesmo saco Bach e um tema tradicional gabonês, interpretado por Elugu Ayong?! Sim, estou. Na música, descobrimos, desarmados, que Bach desenha uma melodia que se entrelaça na perfeição com os sons da selva africana, vozes, percussões, violoncelo, música, beleza e a dança do povo fang, do norte do Gabão, derrotando discursos das falsas superioridades civilizacionais. (Ouçam então Lambarena — Bach to Africa.)

Arrisquemos nova pauta, antes de retomar a partitura: numa altura em que se democratizou o gosto de viajar, a bagagem não tem lugar para a música - mais ainda quando o streamingquase derrotou o CD. A coisa boa da globalização (e do streaming) é o mundo todo num clique na internet.

Pode começar-se a viagem com Baaba Maal em Call to Prayer ou escutar em silêncio os ventos andinos de um Kyrie da Misa Criolla, tropeçar num casamento klezmer dos Muzsikás, percorrer os desertos sufis com o afegão Mohammad Rahim Khushnawaz ou o paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, visitar os banhos do Istanbul Oriental Ensemble ou cair nos braços de Sheila Chandra e das vozes búlgaras em polifonia com António Zambujo e adormecer, por fim, ao som do violão de Ricardo Cobo.

Esta divagação não é para mostrar apressados saberes enciclopédicos. Num tempo em que nos impingem que quem é diferente (apenas por ser migrante, refugiado, asilado, estrangeiro) deve ficar algures esquecido no seu canto, talvez possamos reconhecer que estes sons nos levam antes em peregrinação. Elias Chacour, que é (num mundo de definições fechadas) palestiniano, árabe, cidadão israelita, cristão, disse-nos: "A palavra guerra significa em hebraico aproximar-se demasiado um do outro, a ponto de não se conseguir respirar. A paz significa afastar-se um pouco, para que eu possa respirar. Hoje, sufocamos." Podemos descobrir a música afastados apenas o suficiente para respirarmos.

[texto originalmente publicado na revista 1864 do DN, com o título Peregrinação Interior, em 11 de maio de 2019; imagem de Tony Canton e Jean-Pierre Caporossi, La Tour de Valse]

Agosto 04, 2019

Beijos que enchem o mar

Miguel Marujo

Beppe Giacobbe.jpg

Não é a página em branco, vazia de palavras, que assusta o jornalista. É a falta de palavras exatas para contar o que se viu e ouviu e tocou e cheirou e provou. Deixemos os cinco sentidos assim, na cadência da conjunção, evitando as vírgulas abruptas, que nos ensinam a respirar entre as palavras mas tiram o prazer de ir somando palavras enquanto nos lembramos de cada um dos cinco sentidos. De novo, não é a página vazia que assusta. Cada um dos sentidos preenche um espaço na página branca e vai dando corpo ao texto.

Num sábado, 6 de julho, fomos despertados do torpor de uns dias de férias com a notícia: "Morreu João Gilberto." E mais uma vez apressámo-nos em obituários que se devoram nas redes sociais (pelo menos é uma colorida página de necrologia) até ao próximo morto. Acaba por faltar sempre tempo, daquele que vivíamos nas longas férias do verão azul da infância (e nunca os dias sem fazer nada eram dias vazios), enquanto levávamos a bicicleta pelos defensões das marinhas (ainda havia montes de sal) para ouvir o restolhar das águas e dos pássaros. E já nos estávamos a perder de novo.

Falta sempre tempo — para saborear, para ir ouvir de novo, ler as palavras que acompanham o violão, tatear os discos, cheirar os corpos. "Melhor do que o silêncio, só João", arrumou Caetano Veloso. E assim nos ensinou como nunca ganha o vazio, qualquer vazio.

Damos outro salto no tempo — e não há nenhum vazio entre este tempo e esse, em Manchester, quando, em maio de 2017, no final de um minuto de silêncio de homenagem pelas vítimas do atentado no concerto de Ariana Grande, a voz de uma mulher irrompeu na multidão a cantar Don't Look Back in Anger, e um a um todos em volta se foram juntando e cantando a canção dos Oasis. A música salva, sabemos, por isso quando João nos sussurrou Chega de Saudade, percebemos que vazio algum nos ganha. "Vai minha tristeza/ E diz a ela/ Que sem ela não pode ser", e logo à frente nos enche tudo de futuros. "Mas se ela voltar, se ela voltar/ Que coisa linda, que coisa louca/ Pois há menos peixinhos a nadar no mar/ Do que os beijinhos/ Que eu darei na sua boca."

[crónica publicada no 1864, suplemento do DN, em 30 de julho de 2019; imagem de Beppe Giacobbe, Made in Italy]