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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Maio 22, 2025

O ofício deles é a morte. E foi correndo bem

Miguel Marujo

 

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Quase em simultâneo, o mercado livreiro português conheceu duas obras sobre o Grupo Wagner, a milícia armada de mercenários com base na Rússia que construiu um verdadeiro império de crime e sangue, com uma capa empresarial de opacidade e dinheiros sujos e o apoio invisível do Presidente russo, Vladimir Putin, e do seu regime mafioso.

O Nosso Ofício É a Morte: A história do Grupo Wagner, dos jornalistas Ilya Barabanov e Denis Korotkov (edição Livros Zigurate) e Wagner: A Máquina de Guerra de Putin, dos também jornalistas Rui Pedro Antunes e João Porfírio (Tinta-da-China) propõem-se revelar a história deste bando de mercenários, mas com pontos de partida distintos.

O livro dos portugueses parte das reportagens que Antunes e Porfírio realizaram na Ucrânia, entre agosto e setembro de 2023, no “rasto do temível Grupo Wagner”. Para começar, os jornalistas procuraram protagonistas que lhes deram pistas do que era o PMC Wagner: o mercenário, o “caçador”, o combatente, a enfermeira, a fugitiva. O quadro completa-se com o que vem depois: a reportagem — enriquecida pelas fotografias de João Porfírio — num país em guerra, enquanto se deslocam à vila onde nasceu o número dois da companhia, mas que deu o nome ao grupo, Dmitri Utkin, “Wagner”; e a parte em que se explica a ascensão e queda de Yevgeny Prigozhin, o multimilionário e antigo chef, um criminoso que esteve preso na juventude, o homem que desafiou Putin, acabando morto, que fez de Wagner um nome temido em várias geografias.

É este o ponto de partida dos dois livros: no caso dos jornalistas russos, dá-se conta do funeral de Yevgeny Prigozhin, e dos ardis para enganar a comunicação social do local exato do seu enterro; no dos portugueses, os dois encontravam-se numa sala em Kiev com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, quando se soube da notícia da explosão do avião em que seguiam Prigozhin, Utkin e Valery Chekalov, o homem que conduzia os negócios do grupo.

Barabanov e Korotkov acompanham o PMC Wagner há vários anos, e O Nosso Ofício É a Morte apresenta com notável detalhe o percurso deste grupo mercenário – até onde é possível, num regime como o de Putin – bebendo de uma longa recolha de informação e de entrevistas junto de fontes. As lacunas (assumidas) que não estão preenchidas na história são escondidas por um regime corrupto, nada transparente, uma sociedade que vive uma aparência democrática. A biografia mais recente dos dois jornalistas ajuda a explicar a impossibilidade de ir mais longe: Barabanov e Korotkov vivem atualmente no exílio.

A geografia da atuação dos mercenários da PMC (Private Military Company) Wagner ultrapassa as fronteiras da Rússia, estende-se pela Ucrânia, andou pela Síria garantindo a segurança de Bashar al-Assad, o deposto ditador, e alimenta-se na República Centro-Africana, uma guerra esquecida por todos menos pelos interesses geoestratégicos, comerciais e de delapidação de recursos (como dava conta a reportagem de Rui Araújo em 2021, na TVI/CNN, republicada no 7MARGENS).

Estas duas obras dão-nos conta de como Putin se foi escondendo detrás de mercenários para o trabalho sujo da guerra, alimentando a corrupção e o crime. Hoje, com Prigozhin e Utkin mortos, o futuro do Grupo Wagner pode parecer mais incerto, ou pelo menos com os holofotes desviados dos seus protagonistas, mas dificilmente um império destes se perde, como descrevem O Nosso Ofício É a Morte e Wagner: A Máquina de Guerra de Putin. Um e outro livro são complementares, um cheira a terreno, o outro escava bem fundo nos podres do regime russo. Os dois valem a pena.

 

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O Nosso Ofício É a Morte: A história do Grupo Wagner
Ilya Barabanov e Denis Korotkov (tradução do inglês de Luís Filipe Pontes)
Livros Zigurate, 2024, 256 pp.

Wagner: A Máquina de Guerra de Putin
Rui Pedro Antunes e João Porfírio
Tinta-da-China, 2024, 216 pp.

 

[Imagem: Membros do Grupo Wagner treinam tropas bielorrussas. Foto © Информационное агентство БелТА, CC BY 3.0, via Wikimedia Commons.]

Maio 21, 2025

As memórias guardadas de Abril

Miguel Marujo

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Nestes tempos, ninguém questiona por onde anda a Liberdade, como cantam os Mão Morta. Talvez os livros que aqui se apresentam nos apontem caminhos para saber por onde anda ela, indo à História do 25 de Abril para também nos ajudar a refletir o presente.

À boleia dos 50 anos do 25 de Abril, que se continuam a comemorar (num arco temporal que decorre, pelo menos, até ao cinquentenário das primeiras eleições legislativas de 1976), as edições no mercado livreiro têm continuado a bom ritmo, recuperando textos ou documentos antigos, propondo novas releituras e abordagens inovadoras, sempre com a efeméride festiva no horizonte.

Depois de três (breves) propostas deixadas nestas páginas, voltamos a avançar com mais uma sugestão de seis livros obrigatórios para melhor conhecer as memórias guardadas destes 50 anos e melhor entender a diversidade que nos trouxe Abril. Não se estranhe o facto de todos eles terem a chancela da Tinta-da-China, que mantém uma parceria com a Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, por um lado, e sempre dedicou uma atenção particular à História, e em particular ao século XX.

 

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Por enquanto, o Povo Unido ainda não Foi Vencido

Manuel Vázquez Montalbán deixou-nos como legado essa personagem maior dos policiais que é Pepe Carvalho, que alimentava a sua lareira com livros, e que se confundia tanto com o jornalista e escritor espanhol, morto subitamente em 2003.

Em boa hora a Tinta-da-China, numa cuidada edição de Rita Luís (investigadora em História Contemporânea), recuperou as “crónicas da revolução” que Montalbán escreveu em 1974 e 1975 sobre Portugal, desvelando a sua fina ironia, argúcia e humor na leitura da realidade nacional naquele tempo. Há três textos anteriores ao 25 de Abril, sobre o livro de Spínola que desestabiliza o regime, e depois da Revolução o jornalista acompanha, em nome próprio ou por pseudónimos (ele que foi o homem dos “100 nomes”), os dias festivos e quentes de Abril e os meses que se seguiram até ao final de 1975.

Há um entusiasmo claro pelos dias que Portugal vivia, por oposição a uma Espanha então ainda amordaçada no estertor de Franco e da sua ditadura. As notícias sobre o país, os seus políticos emergentes ou os caminhos a seguir são despachadas com lucidez, apesar do entusiasmo tropeçar nalgumas leituras precipitadas, por vezes corrigidas: Montalbán percebe muito depressa que é no PS e PPD que os portugueses irão concentrar os seus votos, antecipa a necessidade de Portugal aderir à Europa e nota a importância em fortalecer a democracia – assim como se refere a Pereira de Moura como uma “das quatro figuras políticas mais importantes da atualidade portuguesa” e cuja memória se esfumou na História.

Este Por enquanto, o Povo Unido ainda não Foi Vencido: Crónicas sobre a revolução (1974-1975) não é livro que Pepe usasse na sua lareira.

 

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A Guerra Guardada

Este é, antes de mais, um objeto bonito, que os livros também o são, numa edição irrepreensível que nos traz, como se descreve no subtítulo, fotografias de soldados portugueses nas três frentes da Guerra Colonial, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, entre 1961 e 1974. Esta viagem pela memória de tantos homens mobilizados para o combate foi resgatada da “estreiteza dos seus círculos pessoais”, para dar corpo também a uma exposição no Museu do Aljube.

As fotografias “banais ou extraordinárias” desvelam um outro olhar sobre a “guerra longa e anacrónica, que foi mandada combater pela ditadura”, e que por vezes parece nem existir naquele quotidiano. Há fotos contadas pelos soldados, ou faladas pelos próprios (explorando o áudio através de um QR code), há os avessos dessas fotos, com breves mensagens ou legendas em letras mais ou menos redondas, há soldados fotógrafos, e a vida na caserna, e também a violência e o racismo que espreitam nas molduras daquelas fotos, na sua maioria a preto e branco.

A estas memórias particulares, junta-se o olhar da academia que debate a várias vozes o colonialismo, a guerra e o fim do império, num diálogo que se revela fresco e franco entre a investigação e a guerra guardada por quem a fez. A completar estas abordagens, a obra coordenada por Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte apresenta ainda as criações artísticas e as composições musicais – de novo, fazendo um uso inteligente de QR codes – que acompanharam a exposição, entrelaçando o olhar sobre a Guerra Colonial. Este livro é, então, um objeto bonito, mas também de leitura obrigatória.

 

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25 de Abril. Revolução e mudança em 50 anos de memória

Este livro vive da memória, traçando uma abordagem inovadora sobre de que forma é lembrada ou esquecida a Revolução de 1974, mas também celebrada ou contestada, apropriada ou combatida.

Nesta obra que não é um livro clássico de História, como definem os seus organizadores, Manuel Loff e Miguel Cardina, os protagonistas não são os soldados que derrubaram uma ditadura podre de quase 50 anos; são aqueles que trazem evocações pessoais e sociais que ajudam a traçar várias dimensões da Revolução, inscrevendo a pluralidade e o conflito como narrativa para melhor perceber a mudança de Portugal nestes 50 anos de liberdade. Por isso, há a proposta das “memórias reacionárias” da Revolução (por Loff) ou das “memórias disputadas” dos retornados (trazidas por Elsa Peralta), e também cabe a leitura de como se construíram as ficções da Revolução, a partir da memória dos acontecimentos (num olhar de Luís Trindade, que já nos tinha trazido o excelente Silêncio Aflito).

A partir da condição da mulher no Estado Novo, Ana Sofia Ferreira  questiona se a Revolução está (ainda) incompleta para as mulheres, traçando um percurso sobre estes 50 anos, no qual regista a tese de Manuela Tavares (dirigente da UMAR) de que “a participação de muitas raparigas na Juventude Operária Católica (JOC) e na Juventude Universitária Católica (JUC) terá sido importante para o despertar de uma consciência feminista na fase final da ditadura”.

A memória do fim do império e do 25 de Abril, entrelaçada com a narrativa das “Descobertas” e do “caráter benevolente do colonialismo português”, que Miguel Cardina desenvolve, e as sombras perenes da Reforma Agrária, decifradas por Paula Godinho, são outras importantes abordagens desta obra.

O livro encerra com uma leitura sobre “o que se esconde atrás da nuvem: imagens em movimento da Revolução Portuguesa nalguns centros urbanos”, uma proposta de Joana Craveiro que é “um exercício de investigação historiográfica construído como uma ficção”, que não é uma ficção, parte antes de “relatos orais” e histórias escutadas em primeira mão, “como fontes primordiais” do texto, para além de notícias dos jornais de então. Memórias imprescindíveis, todas elas.

 

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Vozes da Revolução e A Revolução dentro da Revolução

No acervo de livros sobre o 25 de Abril, Vozes da Revolução. Revisitando o 25 de Abril de 1974. Entrevistas e Estudos é uma significativa recolha documental, centrada no “precioso conjunto de entrevistas”, como as define António Costa Pinto, até agora inéditas em Portugal e que foram realizadas nos anos 1990 pelo cientista político norte-americano Paul Christopher Manuel, quando era ainda estudante na Universidade de Georgetown. Este investigador entrevistou intervenientes relevantes na Revolução e durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso), que categorizou como “reformistas anticomunistas”, nos quais incluiu Spínola e Jaime Neves; “um oficial do MFA radical pró-comunista”, que era Vasco Gonçalves; “moderados do MFA”, “três dos quais signatários do importantíssimo documento do Grupo dos Nove”, como Vítor Alves e Vasco Lourenço; “dois populistas do MFA”, que favoreciam um “regime de tipo revolucionário pró-cubano” (Otelo e Mário Tomé); e “dois independentes”, incluindo Costa Gomes). Os pontos de vista únicos dos entrevistados ajudam a compor o mosaico de que se fazem as vozes do 25 de Abril.

Na mesma coleção, “O 25 de Abril visto de fora”, promovida pela Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, com a chancela da Tinta-da-China, e com coordenação de Costa Pinto, é apresentada uma tese de doutoramento da cientista política americana Nancy Bermeo, que avalia a Reforma Agrária portuguesa enquanto processo revolucionário enquadrado pela mudança de regime, centrada no controlo operário dos grandes domínios fundiários. A Revolução dentro da Revolução. O controlo operário no Portugal rural é uma história da Reforma Agrária – que pode, para muitos apressados, parecer datada ou ultrapassada – e, como aponta o coordenador da coleção, “um excelente contributo” para compreender o 25 de Abril e o processo de democratização do país. Com a profundidade merecida, e ultrapassando a caricatura (ideologicamente preconceituosa, na esmagadora maioria dos casos) que tantos hoje transmitem deste processo reformador.

 

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Cabral Ka Mori

Este catálogo de “Amílcar Cabral, Uma Exposição” acaba por viver para lá dessa mostra (apresentada em Lisboa, em 2023, e entretanto mostrada em Bissau, em 2024), ao propor uma viagem pelo mundo do líder independentista do PAIGC, através de 50 peças que apresentam momentos e lugares da vida de Amílcar Cabral.

Os historiadores José Neves e Leonor Pires Martins, comissários científicos da exposição, completam os seus textos com fotografias, ilustrações, livros, jornais, documentos, que traçam um olhar atento também à sua época. Este livro-catálogo acaba por retratar, como se aponta, o passado de Amílcar Cabral mas também sobre quem fez e continua a fazer sentido desse passado, – Cabral “e as suas vidas posteriores”, ele que contribuiu de forma decisiva para pôr um ponto final no império colonial português. O 25 de Abril também foi escrito por Cabral.

 

 

Por enquanto, o Povo Unido ainda não Foi Vencido: Crónicas sobre a revolução (1974-1975)
Manuel Vázquez Montalbán (seleção e tradução de Rita Luís)
Tinta-da-China, 2024, 176 pp.

A Guerra Guardada. Fotografia de Soldados Portugueses em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, 1961‑1974
AAVV, com coordenação de Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte
Tinta-da-China, 2024, 192 pp.

25 de Abril. Revolução e mudança em 50 anos de memória
AAVV, com organização de Manuel Loff e Miguel Cardina
Tinta-da-China, 2024, 312 pp.

Vozes da Revolução. Revisitando o 25 de Abril de 1974. Entrevistas e Estudos
AAVV, com organização de Paul Christopher Manuel (tradução de Myriam Zaluar)
Tinta-da-China/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, 2024, 248 pp.

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A Revolução dentro da Revolução. O controlo operário no Portugal rural
Nancy Bermeo (tradução de Susana Sousa e Silva)
Tinta-da-China/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, 2024, 288 pp.

Cabral Ka Mori. Catálogo de ‘Amílcar Cabral, Uma Exposição’
José Neves e Leonor Pires Martins
Tinta-da-China/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, 2024, 120 pp.

[Artigo originalmente publicado no 7Margens, a 23 de março de 2025. Imagem principal: instalação na Assembleia da República, com palavras de ordem dos anos de 1974 e 1975, em abril de 2014. Foto © Miguel Marujo]

Fevereiro 18, 2025

Frescos que falam com Deus

Miguel Marujo

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Chega-se a Assis por estradas que serpenteiam, entre curva e contracurva, a neve a pintar as bermas e a cidade de Francisco coberta de neve. É inverno, está frio e só uma bicicleta encostada num muro denuncia a presença de pessoas. O presépio com figuras de dimensões humanas acolhe o visitante da Basílica de São Francisco, onde a vista se perde pelo vale branco.

Cheguei a Assis por causa de Nick Cave. Perguntaram-lhe como ia passar ele o dia Natal, e se gosta de ouvir canções da época, e o músico antecipou com detalhe esse dia, entre idas à praia e à missa, salpicando o texto com comida e bebida e referências musicais, para assim dizer que também gosta de ouvir os clássicos de Natal (e não, não são os Wham!).

Para ilustrar a prosa, em que a banalidade quotidiana se entrelaça com a poesia, Nick Cave escolheu a Natividade de Giotto — e daí saltei para Assis, da memória daqueles frescos, na igreja alta e na igreja baixa, de uma arte e magnificência que inquieta e nos transporta de forma viva para Deus. A obra de Giotto é de 1304, num tempo que nos habituámos a associar às trevas, quando hoje os tempos não serão tão luminosos como gostaríamos ou desejamos.

Entre a música e a pintura descobrimos sempre formas próximas de falar com Deus, mesmo quando a Igreja dos homens nos inquieta mais do que desinquieta. E ao trazermos a linguagem das artes para esta relação é, de facto, por a arte ser um refúgio necessário quando nos falham os homens.

Não nos falha Herberto Helder, que disse-nos que “através da mãe o filho pensa/ que nenhuma morte é possível”, e logo fomos beber de novo ao texto de Nick Cave, sobre o significado do Natal: “Recordarei também, no meio de tudo o que se faz e do que se faz, o princípio energizante em torno do qual gira este dia, que fala tão eloquentemente de renascimento e de renovação, e do fim da espera — o de uma mãe que dá à luz uma criança num estábulo, revitalizando o mundo para toda a eternidade.” Neste ano novo, perante tanta desesperança (e desespero), da Faixa de Gaza à Ucrânia, do Sudão ao Iémen, entre outros tantos pontos de um mapa de conflitos, só falta a humanidade estar à altura.

 

[artigo originalmente publicado no Ponto SJ, a 7 de janeiro de 2025]

Novembro 24, 2024

A próxima guerra civil americana está em preparação

Miguel Marujo

Este texto foi escrito e publicado dias antes das eleições presidenciais americanas. E se a sua frase final já tem uma resposta, cada uma destas linhas vertidas a partir do livro A Próxima Guerra Civil — Notícias da América do futuro antecipa muito daquilo que se começa a desenhar com uma insistência assustadora, sobretudo quando lemos sobre as nomeações do indigitado Presidente, e de como o mesmo Donald Trump pretende exercer o seu cargo: pelo ódio e pelo ressentimento.

 

 

Assalto ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, por apoiantes de Trump, que queriam impedir a tomada de posse do Presidente Joe Biden. Foto © TapTheForwardAssist, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.

 

A América que vai a votos na terça-feira, 5 de novembro, não é apenas uma América dividida. Os Estados Unidos da América são hoje um país à beira da guerra civil, em que a insurreição está já a acontecer. Tal e qual como no século XIX, em que ninguém viu chegar a primeira guerra. A catástrofe depois era inevitável. Hoje, os preparativos já estão em curso, mas como ninguém quer o que aí vem, ninguém quer ver o que aí vem: uma guerra civil.

A tese de Stephen Marche, escritor canadiano, que colabora com publicações americanas, não é do mundo da ficção, ainda que em A Próxima Guerra Civil – Notícias da América do futuro, um livro de 2022, publicado já este ano em Portugal pela Zigurate, o autor ensaie notícias ficcionadas para articular com aquilo que já acontece no terreno.

Esta América em crise é um país fortemente armado, em que há forças milicianas (armadas até aos dentes) empenhadas em derrubar o governo, que odeiam, e é uma sociedade profundamente desigual, hiperpartidarizada, economicamente insustentável, com crises iminentes na segurança alimentar e ambiental das cidades, e em que a cor, a religião, o dinheiro, o género, o território, o clima, tudo é motivo para discussão, também ela bastante polarizada.

Para Marche, de ambos os lados (leia-se: republicanos e democratas), as diferenças de opinião cristalizaram numa mentalidade de cerco. São dois países que convivem nas mesmas fronteiras, entre vermelhos e azuis, ricos e pobres, progressistas e reacionários, Norte e Sul, litoral e interior… Tudo é uma fortaleza: política, sociedade, ideologia, geografia. “Nenhum americano quer ter o outro lado por perto e, sempre que possível, escolhe não ter.”

A Guerra da Secessão, de 1861 a 1865, acabou numa união forjada no ressentimento e na desconfiança. Por isso, nota Marche, “os Estados Unidos já arderam no passado”, uma e outra vez: “A Guerra do Vietname, os protestos a favor dos direitos civis, os assassinatos de John F. Kennedy e de Martin Luther King, o escândalo Watergate, todos foram catástrofes nacionais que permanecem na memória contemporânea.” Mas, e a grande diferença nos dias de hoje é esta, “os Estados Unidos nunca se confrontaram com uma crise institucional como a atual”. Afinal, “a confiança nas instituições era muito maior nos anos 1960 e 1970”. Para o autor canadiano, os EUA precisam de reformar as suas fundações, como a Constituição (“idolatrada como um documento religioso”) ou o sistema eleitoral, e não apenas de caras novas.

Stephen Marche parte de notícias ficcionadas, cinco cenários possíveis, como já se disse, para contar a América atual. E nada parece ficção porque o escritor optou por basear esses cenários “nos melhores modelos de projeção disponíveis”. Só os “incidentes catalisadores” sugeridos no livro “são produtos da imaginação”, “escrupulosa e exaustiva”, mesmo que a realidade se aproxime ou ultrapasse a ficção. Basta pensar na invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro de 2021, a imagem que ilustra a capa do livro.

Não se pense que esta é uma obra de um autor de esquerda a bater em Trump e os seus extremistas. Stephen Marche é um moderado, aponta ao centro, defende o diálogo como ponte necessária para a América dar a volta, tanto critica os conservadores do Tea Party, como os esquerdistas do Occupy Wall Street, mas conclui que a violência armada e organizada mora na ultradireita radical, “patriota antigovernamental”, que põe a mão no peito enquanto canta o hino de um país em que não acredita. Trump é uma distração, como nota Marche: “A coisa mais inteligente que o próprio afirmou acerca da sua carreira política foi dita numa conferência de imprensa em 2017: «Eu não cheguei e dividi o país. Este país já estava gravemente dividido antes de eu cá chegar.» Na melhor das hipóteses, Trump é um sintoma.”

Há uma existência documentada e provada “entre extremismo político e épocas de dificuldades económicas”, como se prova na popularidade do fascismo com as causas mais profundas da Grande Depressão. Hoje, como ontem: “A ascensão da direita radical e o hiperpartidarismo patentes em Washington são também um efeito indireto do colapso do mercado imobiliário em 2008.”

O sintoma que é Trump, e toda a direita patriota antigovernamental, pode ser combatido com uma nota de esperança, argumenta Marche no final, esperando ser levado a sério: “Os Estados Unidos precisam de recuperar o seu espírito revolucionário”, porque as crises que o país vive “exigem um novo começo”. “Uma vez mais, tal como antes, a esperança da América são os americanos.” Terça-feira, 5 de novembro, pode ser um primeiro passo. Para a secessão ou para a esperança.

 

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A Próxima Guerra Civil — Notícias da América do futuro
Stephen Marche (tradução de Ilda Luís)
Livros Zigurate, 2024
224 pp., 19,30€


Artigo originalmente publicado no 7MARGENS, a 2 de novembro de 2024. Imagem: Assalto ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, por apoiantes de Trump, que queriam impedir a tomada de posse do Presidente Joe Biden. Foto © TapTheForwardAssist, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons. 

Outubro 28, 2024

Um encontro com a alegria e o riso. Senhoras e senhores, Nick Cave em Lisboa

Miguel Marujo

 

 

Este texto foi escrito antes do concerto de Nick Cave & The Bad Seeds, em Lisboa, na noite de domingo. Não seria muito sensato publicá-lo depois, sobretudo quando assistimos a mais um espantamento e estremecimento em forma de concerto — melhorando de cada vez que o vemos, uma e outra vez. Faltando-nos as palavras para o que vimos, um momento tão íntimo quanto gigante, recupero aquilo que antecipava, que Nick Cave iria insistir em semear as melhores bad seeds deste mundo. Foi o caso.

 

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Arregalar os olhos e pôr os ouvidos à escuta: aquilo que se promete para domingo, dia 27, à noite, em Lisboa, é uma celebração da alegria e do riso, a adrenalina do melhor rock-pop que se ouve por aí e que se tem feito de dor, alegria e humor, sobre as ironias da vida e da morte.

É uma promessa já cumprida: Nick Cave traz, com os seus companheiros Bad Seeds, o mais recente disco – e que estará entre os melhores do ano, nas contas de 2024 –, Wild God, resgatando a alegria na vida do cantor, que perdeu dois filhos nos últimos nove anos, e que exorcizou a sua dor em público, em dois notáveis discos (Skeleton Tree, 2015, e Ghosteen, 2019) e tantos concertos memoráveis (e o Porto e Lisboa puderam ver nestes últimos anos toda esta catarse ao vivo). Wild God resgata também para a alegria a composição do músico de origem australiana, destilando a energia que lhe descobrimos sempre em palco, mesmo que haja marcas que permanecem de um passado recente (incluindo apontamentos da sonoridade dos seus dois últimos discos com os Bad Seeds, e também de Carnage, de 2021, a obra composta com Warren Ellis).

“A alegria foi cultivada dentro da mecânica do desgosto. Este registo foi feito por alguém que passou por perdas, mas que está fundamentalmente feliz na existência. Não poderia ter dito isso há cinco anos”, descreveu Nick Cave ao Le Monde, sobre este novo Wild God. E percebe-se.

Este é também um disco que caminha sobre as águas, de Song of the Lake, o arrepiante tema de abertura, a As the Waters Cover the Sea, uma peça delicada que exulta em coros e piano, no final do disco, enquanto se canta And as you wake and turn to me/ Peace and good tidings He will bring/ Good tidings to all things (“E quando acordares e te voltares para mim/ Paz e boas novas Ele trará/ Boas novas a todas as coisas”).

Os coros com reminiscências ao gospel americano já tinham alimentado Conversion, um relato que navega entre um mar chão e a violência das ondas, como uma verdadeira experiência de conversão. E este é ainda o disco em que ouvimos Anita Lane – recuperada de uma gravação feita antes da sua morte – a perguntar a Nick se ele se lembrava de como antes se divertiam mesmo muito. Há alegria e saudades e risos, neste disco.

Ao vivo, Nick Cave é muitas vezes visceral, até nas águas calmas de Into My Arms, a canção com que tem fechado os seus concertos pela Europa. Muito provavelmente será assim em Lisboa, no 21.º concerto europeu da The Wild God Tour. Nesta digressão, têm sido tocados quase todos os temas de Wild God, embora As the Waters Cover the Sea só por seis vezes tenha sido ouvida nos palcos neste ano de 2024. Os temas que sobem ao palco percorrem muitos dos seus discos, em doses únicas, incluindo duas canções de Carnage. Veremos do que se fará a lista de Lisboa.

Será possível antecipar que Nick Cave vai insistir em semear as melhores bad seeds deste mundo – de fato negro e gravata, camisa branca, numa noite apocalíptica e cheia de raiva e amor, profeta e vendilhão do templo, crente e cético, num jogo constante de contradições maiores, como aquele que se ouve no arranque de Frogs, o tema com que o concerto deve começar: Ushering in the week he knelt down/ Crushed his brother’s head in with a bone/ It’s my great privilege/ Oh babe, to walk you home (“No início da semana, ajoelhou-se/ Esmagou a cabeça do seu irmão com um osso/ É meu grande privilégio/ Oh querida, levar-te a casa”).

Ele é o pastor que exorciza demónios e vergonhas, um culto em que se sabe ao que se vai e mesmo assim nos surpreende, e a banda que é um bando de amigos acólitos e o coro naquele altar que dança, bate palmas, grita aleluia, faz a festa, é uma festa, uma imensa fé esta, entre as descargas das sementes ruins e a voz que vocifera just breathe, just breathe, como em I Need You, e todos respiramos, bebemos deste sangue e deste cálice. Deus é selvagem. Senhoras e senhores, Nick Cave chega a Lisboa para um encontro com a alegria e o riso.

 

 

Foto © nickcave.com.

Outubro 25, 2024

Músicas para calar as armas

Miguel Marujo

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A capa do disco Passion Sources, coletânea organizada por Peter Gabriel.

 

No Afeganistão, a música foi proibida, e as mulheres nem em casa podem cantar. Os talibãs têm medo da música, e ainda mais da voz das mulheres.

Há uns anos, por causa de uns cartoons, houve quem sublinhasse a superioridade da civilização europeia e ocidental, e há quem continue a grunhir contra a vida de pessoas de outras paragens ao nosso lado. Nessas alturas, procuro exemplos dessa superioridade — e são muitos dizem-nos, e quase nos convencem: o tratamento das mulheres, a perseguição política e religiosa, as ditaduras, a pobreza classista. Mas será assim? Há um filme egípcio, “Al-Massir” (O Destino), que já, em 1997, nos colocava as questões de hoje, de amanhã, a partir do confronto de ideias entre moderados e radicais nos califados andaluzes do… século XII. Já então o confronto de civilizações, com guerras e aparentes superioridades, se desenhava nos céus da Europa.

Também há quem diga que Johann Sebastian Bach é o maior compositor de todos os tempos. Mas vacilo quando ouço Prélude de la Partita pour Violin nº 3 precedido de Pepa Nzac Gnon Ma. Estou a meter no mesmo saco Bach e um tema tradicional gabonês, interpretado por Elugu Ayong?! Sim, estou — deixem-me blasfemar. Na música, descobrimos, desarmados, que Bach desenha uma melodia que se entrelaça na perfeição com os sons da selva africana, vozes, percussões, violoncelo, música, beleza e a dança do povo Fang, do norte do Gabão, derrotando discursos de falsas superioridades civilizacionais. (Ouçam então Lambarena — Bach to Africa, de 1995.)

Arrisquemos nova pauta, antes de retomar a partitura: numa altura em que se democratizou o gosto de viajar, a bagagem não tem lugar para a música — mais ainda quando o streaming já praticamente derrotou o CD. Sobra a nostalgia do vinil. A coisa boa da globalização (e do streaming) é o mundo todo ao virar da esquina na internet.

Deixem-me fazer uma rápida divagação, que não é para mostrar apressados saberes enciclopédicos, mas ajuda a compor o tema — e a desenhar uma geografia contra o ódio. Pode começar-se a viagem com o senegalês filho de pescador Baaba Maal em Call to Prayer ou escutar em silêncio os ventos andinos de um Kyrie da Misa Criolla, tropeçar num casamento klezmer dos Muzsikás, percorrer os desertos sufis com o afegão Mohammad Rahim Khushnawaz ou o paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, visitar os banhos do Istanbul Oriental Ensemble ou cair nos braços de Sheila Chandra e das vozes búlgaras em polifonia com António Zambujo. Mas também ouvir os desejos de paz da palestiniana Haya Zaatry em Rahawan.

Num tempo em que nos impingem que quem é diferente (apenas por ser migrante, refugiado, asilado, estrangeiro) deve ficar algures esquecido no seu canto, ou à porta do muro que levantamos ou escorraçado para longe da Europa, talvez possamos reconhecer que estes sons nos levam antes em peregrinação. O que esta viagem nos desenha não é da superioridade das civilizações. É da superioridade da alteridade, da descoberta do Outro, a vitória da civilização do Amor. Mas isto não é música que muitos queiram para estes dias.

Num tempo em que nos impingem que quem é diferente (apenas por ser migrante, refugiado, asilado, estrangeiro) deve ficar algures esquecido no seu canto, ou à porta do muro que levantamos ou escorraçado para longe da Europa, talvez possamos reconhecer que estes sons nos levam antes em peregrinação.

Elias Chacour, que é cristão, palestiniano, árabe, com cidadania israelita (para contrariar as ideias feitas e as definições fechadas), disse-nos: “A palavra guerra significa em hebraico aproximar-se demasiado um do outro, a ponto de não se conseguir respirar. A paz significa afastar-se um pouco, para que eu possa respirar. Hoje, sufocamos.” Podemos descobrir a música afastados apenas o suficiente para respirarmos. E podemos perceber que o mundo precisa de música, em vez de armas.

 

Dois discos que só aparentemente não falam de paz

 

Quando Baaba Maal, filho de pescador, cantor e violinista senegalês, nos convoca para a oração, a voz elevada a uma transcendência emocionante, no ecrã sucede-se a representação da Última Ceia, momento fundador do cristianismo. É, só aparentemente, uma provocação: um cantor educado na fé muçulmana ilustra a sonoridade do momento em que Jesus se senta à mesa com os seus discípulos, antes da sua morte.

É esta também a provocação maior dos dois discos que aqui trazemos, que incluem este Call to Prayer, de Baaba Maal: Passion Sources é uma coletânea que reúne cantores e músicos de diferentes regiões de África, Médio Oriente e Ásia, compilada por Peter Gabriel (o autor da icónica canção anti-apartheid Biko) para acompanhar o seu álbum Passion, a música que compôs para o filme de Martin Scorsese A Última Tentação de Cristo – outra provocação, que pouco importa para este (con)texto. Um e outro disco são peças notáveis que confluem, inevitavelmente, numa linguagem comum, apesar da dispersão geográfica, que é a da música.

 

 

 

Estes dois álbuns não nos falam, aparentemente, da importância da paz. Só aparentemente, também. Na sua amálgama de origens, da Etiópia ao Paquistão, de Marrocos ao Egito, da Arménia à Guiné, passando pela Índia, Irão, Senegal e Turquia, e na sua diversidade de sonoridades, entre percussões e guitarras, vozes que parecem falar com Deus, Peter Gabriel situa todas estas afinidades na Terra Santa da época de Jesus, pintando uma mensagem de cooperação e sem barreiras que rompe com as diferenças.

“Scorsese tinha pedido um novo tipo de partitura que não fosse nem antiga nem moderna, que não fosse um pastiche, mas que tivesse referências claras à região, tradições e atmosferas, mas que fosse em si mesma uma coisa viva”, explicou Gabriel sobre o seu trabalho de composição. Esta coisa viva cruza Nusrah Fateh Ali Khan, uma voz qawwali espantosa, das mais respeitadas no mundo islâmico, à exuberância rítmica de kongas e djembês dos guineenses Fatala, e termina com uma Song Of Complaint, um tema de origem arménia, que é a adaptação instrumental de The Song Of The Emigrant. Como descreveu Peter Gabriel, “a música é tocada num instrumento de palheta dupla chamado doudouk. Esta é uma versão instrumental de uma canção de dor que descreve a emigração forçada de uma pessoa devido à sua pobreza”.

 

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Capa do disco de Peter Gabriel, Passion (Music for The Last Temptation of Christ)

 

É impossível não ver nesta música uma banda sonora também para o que se passa no Médio Oriente, de Israel ao Território Palestiniano Ocupado, passando pelo Líbano e Irão, canções de dor que pedem a cada nota por uma emergência de paz.

 

Peter GabrielPassion (Music for The Last Temptation of Christ), ed. Real World Records
Vários, Passion Sources, ed. Real World Records
(disponíveis no Spotify e outras plataformas digitais)

— textos originalmente publicados no PontoSJ e no 7Margens, a 18 e 6 de outubro de 2024, respetivamente, e aqui reunidos numa única versão.

 

Setembro 06, 2024

1971, um ano de excecional colheita

Miguel Marujo

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Qual a probabilidade de juntarmos numa qualquer playlist José Mário Branco e Tonicha, Sérgio Godinho e Duo Ouro Negro, José Afonso e Marco Paulo, ou ainda Amália Rodrigues, Bonga, Paco Bandeira, Adriano Correia de Oliveira, Quim Barreiros e Carlos Paredes? A resposta está no título que se deve dar a essa banda sonora: 1971, o ano da revolução antes da revolução.

Esta proposta é fácil de fazer, argumenta Luís de Freitas Branco, autor de A Revolução antes da Revolução (edição Livros Zigurate), uma obra essencial e cativante, apresentada cronologicamente, mês a mês, sobre a importância de discos gravados e editados nesse ano. Em cada capítulo, que é um mês, as histórias multiplicam-se para, a partir de um disco ou de um evento específico, contar, contextualizar e cantar o Portugal da ditadura.

Os meses demoram-se nas páginas, nas quais Freitas Branco pega na música para entrar na sociedade e na política, das conquistas da angolana Riquita como Miss Portugal, deixando a metrópole de fora, para nos fazer chegar aos meandros da censura, da pequenez de um país cinzento, com bufos ao virar de cada esquina; para nos fazer assistir às emissões de uma RTP reflexo de um país, para nos meter na insurreição dos povos das então colónias de mãos dadas com a música, também eles a fazerem uma revolução antes das suas independências.

Freitas Branco socorre-se do escritor José Cardoso Pires, que do Brasil, em julho de 1971, diz que “em certos momentos da História de alguns países, é justamente nos momentos mais duros, mais dramáticos e com menos liberdade de expressão que se consegue, talvez por reação a isso, produzir obras válidas”. Tal e qual esse ano de 1971, com a censura do Estado Novo de Marcelo Caetano a mostrar-se cada vez mais bruta e pouco dada a subtilezas.

A lista de “obras válidas” que justificam a revolução de que fala o autor é extensa — e é suficiente cingirmo-nos aos títulos que alimentam cada um dos capítulos: Traz Outro Amigo Também, de José Afonso (que é de 1970, mas dá o mote para o livro), Movimento Perpétuo, de Carlos Paredes, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, de José Mário Branco, Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho, Blackground, do Duo Ouro Negro, ou Cantigas do Maio, de José Afonso, fechando o círculo.

Nestas páginas, há também o Festival da Canção (e o furacão que era Ary dos Santos), o Festival Vilar de Mouros, que trouxe Elton John e Manfred Mann a uma então desconhecida aldeia minhota por teimosia de um médico, ou o Jazz de Cascais, “o festival que a PIDE não conseguiu prender”, com monstros sagrados do jazz e um vendaval musical e político (Charlie Haden chegou a ser preso por ter dedicado Song for Ché aos movimentos de libertação das colónias).

Pelo meio, há debates constantes sobre a procura da canção portuguesa, entre o cançonetismo, a balada e uma outra coisa nova e entusiasmante, que a imprensa especializada da época antecipa em Zeca, Sérgio e Zé Mário; sobre a música das então colónias que aparecia na Europa sem a mordaça do Estado Novo; sobre a notícia exagerada da morte do rock português, mas que sucumbiria depois aos anos da canção de intervenção; ou sobre o impasse do fado, colado à ditadura, mas também à procura do seu cravo (e temos o retrato de uma Amália opositora, mas que a crítica teimava em não entender), entre o tradicional e a ânsia de arrojo e democracia.

Há ainda uma atenção às palavras que acompanhavam a melodia, e que fizeram chegar a poesia (de nomes maiores da literatura em português do século XX) a muito mais gente, concentrando uma “rebelião em meia dúzia de linhas” – e desassossegando as pessoas. O autor retoma a tensão entre cançonetistas e baladeiros e os outros, notando que a palavra precisava de música, e não bastava a simplicidade dos acordes de baladas. “A supremacia da literatura na canção foi destronada, as transformações culturais reivindicavam uma obra de arte completa, dos pés à cabeça, da melodia aos versos. A reacção surgiu em Paris, a 1500 quilómetros de Portugal, encabeçada pelo produtor José Mário Branco, que se apresentou como a antítese do cinzentismo das baladas, o maestro da cor quente e audácia de Cantigas do Maio, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades e Os Sobreviventes. E o mundo pula e avança.”

É também em Paris que um homem das baladas encontra refúgio, despojado de emprego e salário, perseguido pela PIDE. Francisco Fanhais, padre, faz do púlpito uma tribuna contra a situação. “Alguém ligado à igreja era onde eles menos esperavam que pudesse haver oposição”, recorda o próprio. Saltou para Paris à boleia de José Afonso e seria acolhido por José Mário Branco e Luís Cília [ver entrevista ao 7MARGENS].

 

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É nesta teia intrincada de histórias que se entrelaçam, de nomes que se cruzam, que sobressai o trabalho de pesquisa e investigação de Luís de Freitas Branco, que não se fica por algumas versões mais ou menos conhecidas, antes desvelando um quotidiano nas artes e na política, nos costumes e na música, e resgatando nomes a um profundo esquecimento, de fadistas, cançonetistas, baladeiros — mas também outros músicos que voaram mais alto em termos estéticos, com uma carreira breve (José Almada e Denis Cintra, por exemplo) ou longa, como é o caso de Luís Cília, a merecerem uma revisitação. 1971 é, sobretudo, o ano do “boom de José Mário Branco”, do “disco-renovação de Adriano Correia de Oliveira” e do “disco-revolução de José Afonso”, como resume José Jorge Letria, e de Sérgio Godinho, que ninguém conseguia dizer de onde vinha.

Este é um livro também bem documentado na imagem, com fotografias de músicos, bastidores, concertos e festivais, instantâneos privados, e que nos traz ainda muitas capas de discos quase nada vistos, e raramente ouvidos. Como também aconteceu com as “duas ou três” mulheres do canto de intervenção — onde se fala de Ana Maria Teodósio, Lídia Rita e Rita Olivaes — que o tempo e o machismo não deixaram vingar.

A atenção às histórias leva-nos pelos bastidores da gravação de discos, pela forma como a ditadura se metia no dia-a-dia de todos, com um José Mário Branco em grande sofrimento a sentir-se impotente no exílio de Paris, “não é a vida, nem é a morte”, mas a procurar sempre pontes para a tradição portuguesa. Ou pela inesperada vontade de criar algo diferente, como fizeram Raul Indipwo e Milo MacMahon no seu Duo Ouro Negro, que usaram recolhas folclóricas angolanas do Museu do Dundo. Como assinala Freitas Branco, “nem o inventivo produtor José Mário Branco ousaria utilizar as recolhas de Lopes-Graça e Giacometti numa gravação”.

Cheirava a revolução na música — e no país. Três anos antes de Abril, em Paris, “quatro amigos abraçados”, José Mário Branco, José Afonso, Francisco Fanhais e Carlos “Boris” Correia, “à moda alentejana, um frio de rachar, sobre a gravilha, a arrastar os pés de madrugada, com o técnico de som agachado para captar o instante, em gravação multipista”, apontavam ao regime — e desse registo nasceram os passos de Grândola, Vila Morena. “Era apenas uma canção, um completo tiro no escuro, quem diria, em cheio na ditadura.” Este livro canta a liberdade em todas as linhas e páginas.

 

 

 

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A Revolução antes da Revolução — O ano que mudou a música popular portuguesa
Luís de Freitas Branco
Livros Zigurate, 2024, 300 pp., 18,80€

[Artigo originalmente publicado no 7MARGENS, a 23 de agosto de 2024. Na foto principal © Carlos Gil: chegada de cantores exilados ao Aeroporto de Lisboa, com familiares e amigos. Da esquerda para a direita: José Jorge Letria, Zeca Afonso, Lucília Branco (tia-avó de José Mário Branco), José Mário Branco, Isabel Alves Costa, José Duarte, Sara Monteiro (mãe), Celeste Fernandes Sá e, atrás, Adriano Correia de Oliveira (segundo legenda da página Antifascistas da Resistência); na foto inserida no texto © Livros Zigurate: o autor do livro, Luís de Freitas Branco, que é trineto do compositor Luís de Freitas Branco e bisneto do musicólogo João de Freitas Branco.]

Agosto 26, 2024

Visite o andar-modelo. Há muitos e bons livros para lembrar Abril

Miguel Marujo

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(ilustração de Nuno Saraiva, para o livro 25 de Abril – No Princípio Era o Verbo)

 

 

Abril, livros mil é o cliché óbvio, e até preguiçoso, para o manancial de edições no mercado livreiro português sobre os 50 anos do 25 de Abril ou que, aproveitando a efeméride redonda da Revolução dos Cravos, se inscrevem na história da ditadura do Estado Novo e da democracia nascida em 1974. O 7MARGENS publicou três (primeiras e breves) propostas que li. Abril é sinónimo de diversidade e as férias (que restam) podem ser ocasião para descobrir mais como se fez a democracia que vivemos há cinco décadas. 

 

 

 

25 de Abril — No Princípio era o Verbo. Este livro é uma festa, avisa-nos logo no seu início, e procura “pintar” nas suas páginas essa festa que foi o dia inicial e limpo e tudo o que se lhe seguiu. Com texto de Manuel S. Fonseca, as ilustrações de Nuno Saraiva (cujo traço único criou um estilo muito próprio, desde Filosofia de Alcova, no velhinho O Independente) trazem-nos a algazarra própria de um povo que tirou a mordaça e soltou o verbo, após 48 anos de ditadura.

No primeiro quarto do livro encontramos uma cronologia horária dos acontecimentos que fizeram a mais improvável das revoluções contra a mais esclerosada das ditaduras de então, que ajuda o leitor mais esquecido ou desconhecedor nos detalhes que levaram o 25 de Abril a derrubar o regime. É esse o principal objetivo deste livro: contar-nos as palavras de ordem, as frases livres, as pichagens que encheram paredes de alegria e provocação, os slogans que fizeram caminho numa democracia que dava os primeiros passos.

É, pois, “um livro livre”, como descreve o autor (e editor) Manuel S. Fonseca, com os 50 anos de Abril a serem pretexto para tamanho desopilanço. “Os 50 anos do 25 de Abril de 1974 têm de ser festejados”, defende. Para logo explicar o óbvio (mas que nestes tempos precisa de ser lembrado): “O 25 de Abril foi uma das mais impressionantes algazarras de liberdade, loucura, e inocente destrambelhamento colectivo que o modesto povo português já viveu.” Bela definição, que tem a melhor das melhores traduções nos restantes 3/4 do livro: “Irrompem frases, palavras de ordem, diálogos que hoje precisamos de nos beliscar para acreditar que não foram inventados pelos irmãos Marx, se Karl Marx me perdoa ser assim secularizado”, aponta Fonseca, que faz notar que “a acompanhar este alucinado desatino das palavras”, as ilustrações de Nuno Saraiva recriam “esse Portugal de cabelos desvairadamente compridos, calças boca de sino, soutiens a serem queimados, ainda tão rural, às vezes involuntariamente quase hippie, esse Portugal a pôr a ávida boca na orgia de novos costumes”. E há exemplares deliciosos de tantas belas palavras, que bebem no socialismo, no anarquismo, no reacionarismo, ou apenas na imaginação mais imaginativa: “O socialismo está em construção, visite o andar modelo”; “Abaixo a foice e o martelo, viva o Black and Decker”; “A terra a quem a trabalha, mortos fora dos cemitérios já!”; “Nem mais um soldado para as colónias! Nem mais uma freira para o céu!”

Este é um livro que se revisita uma e outra vez, e a cada palavra e a cada ilustração solta-se a gargalhada e o sorriso, por um país que é livre e que provou que sabe ser feliz. Sempre.

 

 

 

Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975. A historiadora Irene Flunser Pimentel apresenta, com este seu novo livro, “episódios menos conhecidos” do período que percorre o dia da revolução à data que consolida a democracia no país. Não é, diz-nos a autora – reconhecida pelos seus estudos e livros sobre o Estado Novo e a PIDE, a polícia política da ditadura – uma “análise exaustiva” à implantação da democracia, apresentando antes “uma análise pessoal” ao que se passou naquele tempo de 580 dias, optando Irene Flunser Pimentel por destacar o que aconteceu à ex-polícia política e olhar para a ação dos Estados Unidos, da França e da Alemanha.

Este livro estende, no entanto, o seu tempo para lá das datas enunciadas no título, para melhor enquadrar o que se viveu em Portugal, mergulhando nos últimos anos do regime ditatorial e da guerra colonial, com um especial destaque no “Exercício Alcora”, que juntou a ditadura de Lisboa aos regimes racistas e de apartheid da África do Sul e da Rodésia numa “Aliança Contra Rebeliões em África”. E logo por aqui entramos em episódios menos conhecidos daqueles tempos, percebendo como a estratégia militar dura (nomeadamente de Kaúlza de Arriaga, que conduziu a massacres como o de Wiriyamu, em dezembro de 1972) era criticada por responsáveis sul-africanos, por exemplo, por afastar as autoridades portuguesas das populações locais.

Irene Flunser Pimentel debruça-se ainda sobre como as autoridades policiais e de informação dos EUA, França e Alemanha “ajudaram também ao esforço da Guerra Colonial do regime de Salazar e Caetano” e de como, depois do 25 de Abril, os serviços secretos destes três países mantiveram uma “atitude e postura não neutra” nesse “ano e meio português”.

Centrando-se no que aconteceu à ex-polícia política, na ação daqueles três países e na centralidade dos militares no processo revolucionário, a historiadora avalia também a “autonomia do campo político”, deixando de lado um olhar sobre as movimentações populares e resgatando os tais episódios menos conhecidos que a capa do livro regista, no modo rigoroso reconhecido a Irene Pimentel. Obrigatório.

 

 

 

25 de Abril: A transformação nos “media”. Mário Mesquita (1950-2022) é um dos nomes que poderá não dizer muito a novas gerações, até no jornalismo, mas que viu a sua obra (académica e jornalística) ser publicada e estudada com regularidade, tornando-a acessível mesmo aos que desconhecem o seu percurso nos média em Portugal.

É o caso deste livro recente (e póstumo, “uma vontade sucessivamente adiada”) 25 de Abril: A transformação nos media, que traça um panorama amplo sobre o mundo da comunicação social, sinalizando (logo no início) “o papel dos media na consolidação da democracia portuguesa”.

Mesquita estabelece três tempos para o lugar da comunicação social nesta consolidação: 1974-1975, que define de “ideologias”; 1976-1987, que sintetiza em “instituições”; e 1987-1995, com o advento do “mercado”. Cada um destes momentos é dissecado em múltiplos textos, que vão mais fundo na abordagem, recusando a leitura mais simplista ou imediata, apesar dos textos terem sido escritos em momentos diferentes (1984, 1987, 1988, 1989, 1994, 1996, 2004 e 2019 – para se perceber a abrangência) e por motivos diversos. Por exemplo, nos dois primeiros anos quentes da revolução e do PREC, Processo Revolucionário Em Curso, Mesquita sintetiza a comunicação social, de novo em três palavras: “Militantes, porta-vozes e jornalistas”, referindo-se à “tentação do monolitismo ou a ignorância dos limites do poder dos media”. Antecipa-se uma leitura crítica, num tempo em que coexiste uma “experiência original”, a do modelo das democracias políticas com a imprensa estatizada (1976-1983). A leitura do índice é, por si, um excelente resumo (pela acutilância dos títulos) do que se encontra no livro, que também revisita o caso República, como “um incidente crítico” e a recetividade francófona (com a leitura de 100 edições de cinco jornais da imprensa francesa, belga e suíça) à Revolução do 25 de Abril.

Se este é “um livro que faltava” sobre “os media na revolução e a revolução nos media”, como o apresenta Pedro Marques Gomes, por ele passa também o olhar do “anatomista dos media que sonhava com jornais perfeitos”, na definição feliz de Carla Baptista, que nunca se ficou por uma leitura a preto e branco deste universo no seu percurso profissional. As zonas cinzentas também são notícia e, no caso, objeto de estudo por um homem apaixonado pelo jornalismo. O texto final sobre as comemorações dos 30 anos de Abril nas páginas do Jornal de Notícias são disso um exemplo. O título volta a ser um tratado: “Memória e esquecimento na reconfiguração jornalística da Revolução dos Cravos”. O que teria escrito Mário Mesquita sobre os 50 anos, festejados em abril passado, vistos pelos jornais, num tempo em que os saudosos do outro tempo achincalham a democracia, sentados na Assembleia da República? Provavelmente muito do que se lê nestas páginas, que servem de guião para o futuro. Uma leitura essencial.

 

 

 

25 de Abril — No Princípio era o Verbo
Manuel S. Fonseca e Nuno Saraiva
Guerra e Paz, 2024, 188 pp.

Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975. Episódios menos conhecidos
Irene Flunser Pimentel
Temas e Debates, 2024, 471 pp.

25 de Abril: A transformação nos media
Mário Mesquita
Tinta-da-China, 2024, 372 pp.

[artigo originalmente publicado no 7MARGENS, a 23 de julho de 2024]

Julho 07, 2024

Lembra-me um céu aberto, outro fechado. Morreu-nos Fausto

Miguel Marujo

Fausto.jpegFausto Bordalo Dias (1948-2024)

 
Músico, compositor, cantor, talvez maldito, como cantava na “ópera mágica” que nos deixou, Fausto foi o homem que nos levou por um rio acima, para melhor resgatar a música tradicional portuguesa dos mares de mediocridade em que tantas vezes se mete. Fausto foi um génio a cantar o herói anónimo.

 

Fausto Bordalo Dias, que todos nos habituámos a chamar pelo primeiro nome, morreu “de doença prolongada”, na segunda-feira de madrugada, dia 1, sem aviso prévio, porque nunca estamos preparados. Músico, compositor, cantor, talvez maldito, como cantava na “ópera mágica” que nos deixou, Fausto foi o homem que nos levou por um rio acima, para melhor resgatar a música tradicional portuguesa dos mares de mediocridade em que tantas vezes se mete. Fausto foi um génio a cantar o herói anónimo, fez da “fúria dos enganados” e da “razão dos maltratados” uma alquimia de sons e poemas, lembrando miseráveis, penitentes, esquecidos e pobres, o aperto em que estavam todos eles, marinheiros voluntários em infernos malditos infinitos – longe das gestas dos poderosos.

Nascido no mar, a bordo do navio Pátria, em 26 de novembro de 1948, entre Portugal e Angola, também por isso foi sempre o mar que o chamou. Por este rio acima (1982) é uma das obras mais geniais da música portuguesa de sempre, a partir dos relatos de Fernão Mendes Pinto em Peregrinação, que o divertia imenso e era o seu livro de cabeceira. “Em 1979, comecei a compor Por Este Rio Acima. Eu fiz parte da diáspora, os meus pais partiram, isso com certeza que me condicionou, mas não foi um ato consciente, sabe? Eu dei conta de mim a fazer aquilo sem saber porquê.”

Obra-prima, em qualquer parte do mundo, Por Este Rio Acima é o primeiro volume de uma trilogia que nos trouxe o olhar desses muitos que a história teimou em esquecer, e se prolongou por outras viagens com Crónicas da Terra Ardente (1994) e Em Busca das Montanhas Azuis (2011), que foi também o seu último trabalho. Estas viagens trazem morte e dor, escravatura e tortura. “Nas minhas músicas, tentei encontrar o sentido do que a minha Pátria fez, durante os Descobrimentos. Porque me interessava compreendê-lo e adaptar esse sentido aos tempos actuais. Houve quem procurasse apenas glorificar. Eu glorifico o que há para glorificar, mas também conto o outro lado, o da gente que falhou e também matou”, explicava-se em 2011, numa entrevista à Visão.

Em todas as suas obras, as letras são tecidas com uma sabedoria e uma cultura que fazem de cada verso uma paleta de histórias e significados. Em todas as canções, as composições revelam um apurado gosto pela música tradicional, que se cruza com sonoridades africanas, uma e outras sempre reinventadas, e as orquestrações elevam esse gosto a uma polifonia de vozes e instrumentos que fazem destas canções património de todos. Ao ouvir muitas destas composições, é impossível não recordar Sérgio Godinho e José Mário Branco (1942-2019), parceiros e cúmplices de muitas canções, de uns e outros, que se juntaram para Três Cantos(2009), um projeto de palco que ficou registado em disco. Sorte a nossa.

 

Os caminhos de Fausto

 

 

O percurso de Fausto inicia-se em Angola, com os Rebeldes, mas é já em Lisboa que edita o seu primeiro disco, homónimo, que lhe valeu o Prémio Revelação, da Rádio Renascença. No programa Página Um, que passava na emissora católica, o “novato” era um dos “cantautores prediletos”, como sinaliza Luís de Freitas Branco em A Revolução antes da Revolução (Zigurate, 2024). Este musicólogo afirma que “o álbum Fausto apontava um caminho diferente – e porventura mais viável – para o rock português: a integração com a canção de intervenção”. Nem um, nem outro fariam caminho nos caminhos de Fausto: o rock caiu em desuso na sua música e a canção de intervenção foi chama que se esboroou nos finais dos 70, passados os dois primeiros discos em liberdade, Pró que Der e Vier (1974) e Beco sem Saída (1975), e a fundação do GAC – Grupo de Acção Cultural, em sua casa, com José Mário Branco, Tino Flores e Afonso Dias.

A intervenção construiu-se de outro modo, ganhou matizes, fez-se subtil, tornou-se irónica, dispensando a palavra de ordem: desembarcou primeiro em Madrugada dos Trapeiros (1977), que inclui Rosalinda, uma das mais icónicas canções do repertório de Fausto, continuou com Histórias de Viageiros (1979), e já aí o barco saía (para) Por este rio acima. Há 12 álbuns no percurso de cinco décadas de Fausto, e a intervenção fez-se com o tal cantor maldito. A Ópera Mágica do Cantor Maldito (2003) é, porventura, a sua obra menos amada, mas mantém o mesmo olhar para a música e para a palavra, com que Fausto preservou um dos mais belos conjuntos de originais da música portuguesa. Em pleno ano da troika de 2011, Fausto dizia, na referida entrevista, que esta ópera era o seu regresso à canção de protesto e de denúncia, oito anos antes de o FMI e parceiros aterrarem na Portela.

A trilogia das Descobertas foi intercalada por outros discos que merecem a audição: o belíssimo O despertar dos alquimistas (1985, o difícil álbum depois da sua obra maior), Para além das cordilheiras (1987) e A preto e branco (1988), que permitem completar uma história única e muitas vezes subversiva. “Lembra-me um sonho lindo, quase acabado”, canta Fausto, num dos seus mais belos poemas – mas não se acaba a música, o legado maior de Fausto Bordalo Dias. “Lembra-me um céu aberto, outro fechado.” Por todos os rios acima.

 

[artigo originalmente publicado no 7MARGENS, de 1 de julho de 2024]

Junho 14, 2024

Estes textos foram visados pela censura. Além-Mar: a revista suspensa pela ditadura

Miguel Marujo

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O título “Os Missionários e as Pátrias” ficou reduzido a “Os Missionários”. A censura implicava com tudo o que indiciasse um apoio às independências africanas. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

 

Por causa de um texto sobre a visita do Papa Paulo VI a um país de que Salazar não gostava, a Índia, a revista missionária Além-Mar esteve suspensa cinco meses entre 1964-65, tendo depois sido obrigada a sujeitar os seus textos à Censura ditatorial do Estado Novo. Discussões com censores, cartas, cortes absurdos, de tudo a revista e os missionários foram sofrendo. Alusões a independências ou liberdade, textos sobre Luther King ou um “bispo de camisa cinzenta”, frases do Papa ou de bispos que criticavam o poder de uma minoria branca — nada passava no crivo da Censura. Uma história praticamente inédita, aqui contada pelo 7MARGENS a partir dos arquivos da revista, reconstitui o que se passou. 

 

 

Martin Luther King foi morto nos Estados Unidos a 4 de abril de 1968. O pastor batista e ativista americano pelos direitos humanos, em particular da população negra, caiu mas não foi derrotado. “Morto mas não vencido” titulou a revista Além-Mar, dos Missionários Combonianos, nesse ano de 1968. O crivo do lápis azul censor não deixou que fossem publicadas palavras, fotos e mensagens de e sobre Luther King. “Cortado”, lê-se no carimbo em cada uma das três páginas que foram visadas pela Censura. O texto seria para sair no n.º 5 da revista, de maio de 1968, e deu entrada na censura em 18/4/68. Num envelope onde se guardam as provas dessas três páginas, alguém escreveu: “Morte de Luther King – um artigo que não pôde ser publicado…”

Não é de espantar: a ditadura do Estado Novo, regime que mantinha uma guerra contra movimentos que exigiam a independência dos seus países e territórios de África, nunca poderia autorizar que uma revista vertesse palavras de justiça e de dignidade. “O negro precisa de convencer o homem branco que pretende a justiça para ambos; tanto para ele como para o homem branco”, disse Luther King num dos seus sermões, reproduzido de um livro publicado por cá em 1966, Força para Amar (numa edição esgotadíssima da Livraria Morais Editora). Os responsáveis da revista comboniana replicaram estas e outras palavras do reverendo americano, mas a censura não foi de modas: um corte total, sem contemplações.

Na redação da Além-Mar, em Lisboa, há uma gaveta grande de arquivo onde se guardam muitos dos textos cortados a azul. Até 1964, as publicações católicas escapavam ao crivo dos censores. Mas, em 1964, um texto que não agradou ao regime levou à suspensão da revista. O volume que mantém em arquivo os exemplares publicados no ano de 1964 termina em novembro, o de 1965 é retomado em maio. Pelo meio, há cinco meses – de dezembro de 64 a abril de 65 – em que a revista está suspensa, depois da publicação de um artigo sobre o Congresso Eucarístico Internacional, na Índia.

 

Suspensão noticiada no Brasil

 

A notícia da suspensão da revista é dada no Brasil, pelo jornal O Globo, a 16 de novembro de 1964: “O Governo do primeiro-ministro Oliveira Salazar suspendeu, ontem, por tempo indeterminado a revista católica Além-Mar e confiscou sua edição de Novembro, proibindo-lhe a circulação, por haver publicado um artigo sobre o Congresso Eucarístico Internacional, que será instalado no fim do mês em Bombaim.”

 

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A notícia da suspensão da revista não chegou aos seus assinantes, mas foi dada no Brasil,
no dia seguinte à decisão da Censura. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

É por causa do texto sobre a viagem do Papa Paulo VI à Índia que a revista passa a ter de sujeitar os seus trabalhos aos homens do lápis azul. Três anos antes, as tropas da Índia tinham ocupado Goa, Damão e Diu, então colónias portuguesas naquele país. E o ditador não gostou de ver o Papa visitar a Índia, ignorando os protestos de Portugal.

O autor de “Um Congresso para a Índia – Na União Indiana”, Fábio Pimentel, ignora os acontecimentos de dezembro de 1961 e, apesar de fazer um retrato crítico da Índia, “a terra dos esqueletos ambulantes, dos desnutridos, das crianças atacadas de kwashiorkor”, atreve-se a dizer que o Governo de Nova Deli se esforçava por melhorar a situação social da sua população: “O grande problema (…) é o drama da fome. (…) Em Calecute, (…) todos os dias de manhã os bombeiros passam a recolher os que durante a noite faleceram por falta de um punhado de arroz. Não se exagere, porém, pois lentamente o governo está a debelar o flagelo. Embora a população tenha aumentado, em dez anos [de independência], de 361 para 438 milhões de habitantes, o rendimento individual, a alimentação em calorias e a idade média subiram consideravelmente.”

Mais: o articulista sublinha uma preferência pelo regime indiano, num “desafio” entre China e Índia, que “continua afinal mais vivo que nunca”: “A China não desiste de tentar atrair a si o mundo em desenvolvimento. Religiosamente, porém, é mais provável e preferível que seja a União Indiana a ganhar a batalha. A constituição que Nehru forjou é iminentemente favorável à liberdade religiosa. Ele mesmo afirmou um dia: ‘A ideia de um estado inteiramente hindu é totalmente ultrapassada.’ Isto é um factor muito positivo. Outro motivo de esperança é que em todos os estados de que o país se compõe a hierarquia católica está firmemente organizada, contando 50 dioceses, na maior parte administradas por Bispos indianos. Mas o Congresso de Bombaim, organizado sob o signo do Concílio, não alimenta menos as nossas esperanças. Eu creio que ele fará soar finalmente a hora da evangelização da Índia e da Ásia. Os obstáculos (a que não pude referir-me) são muitos mas a escolha de João XXIII não poderá deixar de ser um gesto providencial.”

 

As desculpas do provincial e a censura prévia

 

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Carta do padre Ramiro Loureiro da Cruz, provincial dos Missionários Combonianos:
o gesto de contrição não comoveu as autoridades do regime. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

Parágrafos como aqueles levaram o Governo de Salazar a impor o silêncio à revista. O superior provincial do Instituto Missionário dos Filhos do Sagrado Coração de Jesus, conhecidos por combonianos, tinha admitido a possibilidade de um “exame prévio” à publicação, para evitar a suspensão da revista, mas de nada valeram os seus ofícios junto das autoridades. A 9 de novembro de 1964, o padre Ramiro Loureiro da Cruz envia uma longa carta ao subsecretário da Presidência do Conselho, Paulo Rodrigues, onde expõe a suspensão da revista, ocorrida a 5 de novembro, assumindo logo que “o autor do artigo [“Um Congresso para a Índia”] foi infeliz na maneira de apresentar este acontecimento da Igreja, não tendo em conta os sentimentos do nosso povo em relação àquele país que tanto nos fez e faz sofrer” e pedindo “imensa desculpa pela grande mágoa que o citado artigo causou”. Apesar da contrição, Loureiro da Cruz afirma: “Cumpre-me todavia garantir-lhe que ele não foi publicado com más intenções da nossa parte.”

O provincial insiste em sublinhar a importância da Além-Mar para os combonianos. “A decisão tomada com a nossa revista vem prejudicar vitalmente o nosso Instituto que se destina unicamente à obra das Missões Católicas nas Províncias Ultramarinas e que tem nesta publicação mensal o seu meio de contacto com os seus amigos e benfeitores de quem recebe as esmolas para poder sustentar os seus alunos portugueses, futuros Missionários do Ultramar, não tendo nós alguma outra fonte de subsídios.” Antes de apontar dois caminhos para o regresso imediato da revista, Ramiro Loureiro da Cruz insiste nas desculpas junto de Paulo Rodrigues: “Profundamente penalizado por termos causado este lamentável contratempo, peço humildemente a V.ª Ex.cia se digne autorizar que a Revista do nosso Instituto continue a sua publicação, até para evitar confusão e desorientamento entre os seus 6.000 assinantes que com certeza ficariam surpreendidos por não receberem regularmente os seus exemplares.”

Na carta, Loureiro da Cruz indica ainda: “para evitar, no futuro, desgostos análogos [ao do texto publicado], já substituí o corpo redactorial da Revista dando-lhe novo director e novo redactor e declaro-me absolutamente disposto a acatar quaisquer disposições que os Serviços da Censura hajam por bem indicar-me inclusivamente a censura prévia que até preferiria”. De pouco valem estes gestos do superior dos combonianos. Não há nos arquivos nenhuma resposta do subsecretário de Estado da Presidência do Conselho.

Num breve texto disponibilizado no site do Parlamento, José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues, que foi deputado na Assembleia Nacional, é descrito, no seu “perfil político-ideológico” como “católico militante”, “membro da Ação Católica: Presidente geral da Juventude Universitária Católica e Vice-presidente nacional da Juventude Católica Portuguesa; [e] membro das Conferências de S. Vicente de Paula, ficando sempre ligado à obra”. Nem este perfil ajudou. A suspensão mantém-se por mais cinco longos meses.

 

Depois da suspensão, a censura

 

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A censura podia atingir títulos, frases, textos inteiros ou fotografias. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

A partir desse maio de 1965, começa a aventura quotidiana de enviar os textos à censura e de discutir os cortes com os funcionários do lápis azul. “Às vezes deixavam passar na primeira prova e cortavam na segunda, outras cortavam só por causa do título ou porque se falava em países pouco gratos ao regime português”, recordava em fevereiro de 2001, ao jornal Público, um antigo jornalista da Além-Mar, Rogério Nunes. Mas nem só de razões políticas se faziam as objeções dos censores. Textos ou frases que atentassem contra a moral e os bons costumes também eram riscados pelo grosso lápis azul dos zeladores.

O regresso da publicação faz-se sem se mencionar explicitamente a suspensão. No editorial, sob o título “O Novo ‘Além-Mar’”, o articulista inicia o texto com uma breve história: “Um jovem dizia-me há dias: «Já tenho saudades de «Além-Mar».» Após longos meses de letargo «Além-Mar» apresenta-se de novo em público. Este primeiro número abrange forçosamente um longo espaço de tempo.” E segue por aí fora, apontando que, “durante estes meses «Além-Mar» robusteceu-se, (…) mas também tomou consciência de si mesmo. Definiu o seu rumo.” E nesse rumo adivinha-se a continuação da subtil abertura a temas e áreas sensíveis para a ditadura. “«Além-Mar» como órgão de expressão missionária, no desejo único de melhor servir Cristo e a Igreja, quer tomar um lugar bem determinado no grande «Diálogo» entre a Igreja e o Mundo, diálogo que foi reaberto e reforçado por Paulo VI e pelo Concílio em hora feliz oportuna qual suspirada resposta a uma exigência de intercomunicação leal, aberta e confiante. Agora é preciso continuá-lo e alimentá-lo.” E este diálogo passa pelo contacto com as pessoas e os povos da África negra, insiste o editorialista, nomeadamente fazendo sentir “os problemas que os afligem, os pensamentos que os preocupam, as aspirações que querem concretizar. Eles são nossos irmãos, irmãos mais pobres. (…) Afinal têm um ser «ser humano» igual ao nosso, filhos do mesmo Deus a quem ousamos chamar Pai (Pai-Nosso: de nós e deles).”

O ano de 1965 é, dizem-nos os documentos guardados no arquivo comboniano, um ano de vigilância apertada aos textos da Além-Mar. A mudança do corpo redatorial não atenua a abertura da revista a temas sensíveis para o regime. Só a ida ao “exame prévio” da Censura travava a publicação desses textos.

Um artigo crítico da eventual islamização do Sudão, de junho, em que se reproduz um editorial do jornal sudanês em língua árabe, Al-Sahafa, que ataca o Papa, é cortado nesses parágrafos. Depois o corte é levantado. Noutros casos, é “mantido o corte”, como o título de um artigo sobre “Os missionários e as pátrias”, que fica só “Os missionários”. Ou um outro texto breve, que cita Paulo VI na encíclica Ecclesiam Suam. “É necessário que nós nos identifiquemos, até certo ponto, com as formas de vida daqueles a quem desejamos levar a mensagem de Cristo. É necessário, ainda antes de falar, auscultar a voz e mesmo o coração do homem, compreendê-lo e, na medida do possível, respeitá-lo…” Não passou. E apesar de um pedido para rever este corte, o censor não quis saber: “Mantém-se o corte”. Outro texto sobre “o que foi escrito pelos intelectuais africanos nas vésperas do Concílio Vaticano II” é também ele todo riscado. Três páginas que se guardam numa gaveta do arquivo da Além-Mar. “Mantém-se o corte”, repete-se.

 

Um governo zangado com o Papa

 

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Paulo VI fala de liberdade e independência? Corte-se a frase do Papa. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

O Papa Paulo VI é também visado, como já se viu. A notícia da presença de dois bispos de Angola em Kampala (Uganda), por ocasião da visita papal, em 1969, é também cortada. “Contrariamente ao que chegou a ser difundido pela Imprensa, dois bispos da África Portuguesa deslocaram-se ao Uganda por ocasião da visita de Paulo VI”, escreve a Além-Mar, que entrevista Altino Ribeiro Santana. “Cremos que as suas palavras ajudarão a desfazer alguns equívocos.” Nova revisão da Censura: “s/ efeito o corte”.

A atenção a Paulo VI vem de trás, como se viu, por causa da Índia. Depois de levantada a suspensão da revista, em 1965, para o número de agosto, há uma pequena notícia sobre a entrega de credenciais do novo embaixador da Zâmbia ao Papa que é, toda ela, cortada. As palavras de Paulo VI eram impossíveis de passar: “Aproveitamos desta ocasião para dar, mais uma vez, as nossas melhores felicitações à África, o grande continente que está ingressando na liberdade e na independência (…).”

O Governo do Estado Novo continuava zangado com o Vaticano, apesar de se afirmar “como defensor da Igreja Católica”, como recordou o historiador João Miguel Almeida, num texto no 7MARGENS. Estávamos ainda longe da ferida reaberta por Paulo VI ao receber, a 1 de julho de 1970, os três líderes dos movimentos de libertação das então colónias portuguesas – Amílcar Cabral, do PAIGC, Agostinho Neto, do MPLA, e Marcelino dos Santos, pela Frelimo –, mas a política portuguesa de ocupação de territórios africanos colidia com o que a Santa Sé ia afirmando, provocando "incómodo e crispação” ao governo de Salazar.

“A encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, fora publicada em Portugal com a referência ao direito de autodeterminação dos povos cortado. A ida de Paulo VI à ONU fora considerada um acontecimento “horrível” por Salazar e a deslocação do Papa à Índia fora qualificada por Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, como um “agravo”, por causa da anexação de Goa pelo Estado indiano. No entanto, a hábil diplomacia portuguesa conseguira varrer as sombras da imagem das relações entre Portugal e o Vaticano, explorando a visita de Paulo VI a Fátima em 1967. A chegada de Marcelo Caetano ao poder pareceu anunciar uma melhoria nas relações entre o Estado Novo e a Santa Sé, como fim do exílio de dez anos do bispo do Porto, em 1969”, sintetizou João Miguel Almeida. Em vão. A Censura também aperta nestes anos.

Paulo VI é um dos nomes que mais engulhos causava ao regime, por causa dos ventos que sopravam no Vaticano. E por várias vezes a Além-Mar tinha cortes dos coronéis da Censura nas notícias que dava sobre o Papa. O jornalista César Príncipe, que em 1979 publicou Os Segredos da Censura (Editorial Caminho, 2.ª edição, 1994, entretanto reeditado pela Afrontamento), revelava nessa obra que “milhares de nomes (nacionais e internacionais) constavam dos ficheiros do ostracismo oficial”. Na nomeação de uma ínfima parte dessa lista, César Príncipe identificava “a viúva de Luther King”, Coretta King, mas também vários dignitários da Igreja, “fosse o bispo de Cádis, a hierarquia da Rodésia, do Brasil e do Peru, fosse Paulo VI, em Roma, Bombaim, Hong-Kong ou Kampala”. “O contencioso entre o Estado [português] e a Igreja (mau grado a Concordata e os Acordos Missionários) ia enrolando, na curva descendente do fascismo, em bola de neve ácida: padres e católicos presos, desterrados, torturados e «suicidados», templos «escutados» ou assaltados por polícias e cães, acções empreendidas em defesa da «civilização cristã»”, resumiu César Príncipe.

 

Os cortes das palavras dos bispos da Rodésia

 

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Os bispos da então Rodésia (hoje Zimbabué), críticos do regime da minoria branca,
também não passaram no crivo zeloso dos censores. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

Os bispos da Rodésia também são um alvo a cortar, como tinha notado Príncipe. A Além-Mar coleciona vários exemplos de artigos sobre este país – que é hoje o Zimbabué e que, de 1965 a 1979, foi um Estado não reconhecido, liderado por uma clique de colonos brancos, sob o governo de Ian Smith – que foram alvo de censura, na reprodução de textos do episcopado rodesiano.

Em 1966, por exemplo, o artigo “O problema da Rodésia”, no qual se dá nota da posição dos bispos católicos, é cortado. Um outro, de novembro desse ano, é autorizado com cortes. Uma única frase é extirpada ao artigo: “Não podemos deixar de dizer que o «apartheid», moralmente considerado, é caminho errado, porque «contrário [à] Lei divina», como afirmaram há pouco os Bispos do país.”

Em 1970, há dois artigos com sortes distintas. “Rodésia: de novo a Igreja diz não” é “autorizado com cortes”. Um outro, “Rodésia: «crise de consciência»” é cortado. Começou por ser “Autorizado com cortes”, como se lê no carimbo posto na página, com uma nota manuscrita: “Válidos os cortes a vermelho”. Depois é tudo cortado com lápis azul e carimbos. Num deles lê-se: “Suspenso”. Um só parágrafo descrevia o que era este texto, e deixava adivinhar o corte da Censura: “Gastou-se muita tinta para traçar as dimensões do regime racista de Ian Smith: uma minoria branca (230.000) que domina e subjuga uma minoria negra (mais de 4 milhões). Mas nenhuma tomada de posição foi tão convincente, tão firme e tão clara como a dos bispos rodesianos, que condenaram por mais de uma vez a segregação governativa.”

Em 1972, o artigo “Rodésia – Acordo ou traição” é enviado à Censura em 20 de janeiro, e recebe a autorização de publicação com o corte do último parágrafo: “E, ao fim e ao cabo, quem perderá a partida neste jogo de interesses serão os cinco milhões de negros subjugados, uma vez mais, pelos 250 000 brancos muito ciosos da sua soberania.” Outro artigo merece também substantivos cortes. Em “Rodésia – A Igreja local condena o Acordo anglo-rodesiano”, a “carta pastoral do presidente da Conferência Episcopal da Rodésia e bispo de Umtali, Mons[enhor] Daniel R. Lamont” leva duas grandes talhadas, que vale a pena reproduzir.

“[As duas partes] Em vez de exprimirem um tratamento uniforme de justiça e uma preocupação imparcial pelo bem comum, as propostas reflectem o modo de pensar da minoria que governa e a sua preocupação em assegurar a atual posição de privilégio. E confia-se que a população africana, pouco consultada sobre a matéria, se conforme com aquelas pequenas concessões que os seus amos europeus lhes outorgam… (…)

Além do mais, a escandalosa e injusta distribuição da terra – que historicamente foi fonte contínua de descontentamento onde quer que se tenha imposto – continua ainda a ser essencialmente a mesma, enquanto se podiam ter tentado esforços generosos e iniciativas para a rectificar. Numa palavra: esperar que toda uma população, que ultrapassa os que governam numa proporção de 20 para 1, se sinta satisfeita com uma condição de vida que lhe concede apenas uma existência marginal na vida social, económica, política e cultural do seu país, e a que por razão da sua raça se nega a possibilidade do desenvolvimento integral, é simplesmente multiplicar o descontentamento e provocar o último desastre. Como é possível admitir-se que um povo, com um mínimo sentido de justiça, feche os olhos perante tais iniquidades? Como é possível exigir-se razoavelmente a seres humanos que permaneçam especificamente cidadãos de segunda categoria na sua própria terra? Como é possível que homens e mulheres cristãos se mostrem insensíveis às humilhações que, em nome de uma superioridade racial, se infligem aos seus irmãos?…”

Num país que se dizia defensor da Igreja, a voz de bispos como os da Rodésia não tinha lugar. Afinal, um Estado que segregava a população negra das suas então colónias não podia deixar que fosse publicado um artigo que poderia ser visto como falando, a papel químico, da realidade de Angola, Guiné ou Moçambique, por exemplo. Bastava fazer corta e cola e era Portugal o alvo da crítica.

 

Vigilância constante aos artigos da revista

 

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O editorial do primeiro número depois da suspensão: a paragem forçada não era referida explicitamente, apenas de forma velada. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

A vigilância não abrandaria, ao longo dos anos. A 7 de julho de 1969, o diretor dos Serviços de Censura, escreve ao diretor da revista questionando o facto de não terem sido atendidos todos os cortes que os censores tinham imposto: “Verificando-se pela leitura das 1ª e 2ª colunas da págª 5 do N.º 7 dessa revista, relativo ao mês corrente, que não foram inteiramente cumpridos os cortes efectuados por estes serviços na respectiva prova, solicito a V. Exª que se digne informar-nos do que se lhe oferecer acerca do assunto”.

O padre Carlos Neves Sobrinho responde na volta do correio, a 8 de julho. Os cortes “foram realmente e rigorosamente respeitados”, argumenta. “Apenas tive conhecimento dos cortes, desloquei-me pessoalmente à Sede desses Serviços e solicitei uma audiência do Sr. Director. Fui recebido por um Senhor Oficial a quem expliquei a minha estranheza por tais cortes, tendo obtido o levantamento de alguns deles.” E como prova do que diz, o diretor da revista junta uma fotocópia da “prova censurada da página em causa, onde claramente se podem ler os “Sem efeito” escritos à mão pelo Sr. Oficial que me atendeu na vez do Sr. Director e cujo nome ignoro”.

A Censura recua outras vezes. Um texto de quatro páginas, sobre os dez anos da independência da Guiné-Conacri, escrito pelo comboniano Nazareno Contran, para a edição de maio de 1969, que deu entrada nos serviços a 12 de abril desse ano, é cortado. Depois vem a revisão de um oficial, em nome do diretor: “Autorizado, mas o título do artigo e as gravuras devem ser submetidas a censura prévia”, e assina “Lx. 26-4-969. Pelo director, J Chaves”.

Outras vezes os cortes são quase milimétricos, em breves frases, mas bem cirúrgicos naquilo que se quer esconder dos leitores da revista. Num texto sobre a fome, para o número de março de 1969, o censor mandou retirar duas frases: “Foi este o caso da colonização. Com o colonialismo, chegou a fome aos países do Terceiro Mundo porque os seus recursos foram explorados vergonhosamente por alguns poucos.” E parte de uma outra:“ (…) contra a opressão que há quatro séculos e meio sofrem, desde que começou a colonização, o domínio das potências europeias.”

 

Os leitores escrevem, os censores cortam

 

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“Os leitores escrevem”, como diz o título da secção, mas a revista não pode publicar,
manda a Censura. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

Os responsáveis da Além-Mar questionam muitas vezes os censores sobre os cortes feitos, e insistem no seu levantamento, com mais ou menos sucesso. A 9 de novembro de 1971, o diretor da revista, Carlos Neves Sobrinho, escreve ao “Dr. Geraldes Cardoso, Diretor-geral da Informação”, para protestar por cortes na secção de cartas dos leitores. “Com grande surpresa minha, as duas provas em causa regressaram com duas cartas e duas respostas cortadas. Além disso, uma terceira carta sofreu um corte nos últimos períodos. Não me conformei com os cortes, por os julgar fruto de demasiada severidade da parte do oficial censor, e tentei falar com o Sr. Director dos Serviços de Censura, mas não consegui.” Sem sucesso, os cortes mantiveram-se, por isso Carlos Neves Sobrinho recorria hierarquicamente. “Sinceramente, no momento de entrar em vigor a nova Lei de Imprensa recentemente aprovada pela Assembleia Nacional, parece-me que os cortes feitos à nossa revista revelam um rigorismo exagerado.”

Uma das cartas cortadas era sobre essa nova lei de Imprensa, com um leitor do Funchal, não identificado, a agoirar que a mesma “não garante mais liberdade de expressão de pensamento que a Censura”, pelo que ia deixar de assinar jornais e revistas. E a outra era de um padre de Chaves, a partir de um testemunho de uma senhora que tinha estado em Moçambique, que se queixava que andaria a financiar padres missionários italianos “que coadjuvavam a campanha contra Portugal”. “Se julgando auxiliar as Missões Católicas entre infiéis estou a auxiliar inimigos do meu País, desde já faço marcha atrás e começo a recusar todo o meu auxílio material e moral a tão nefastos agentes da Civilização Cristã!”, indignava-se o padre Adolfo Augusto Magalhães Júnior. A resposta do articulista da Além-Mar a um e outro foi dura. Foi tudo cortado. Não consta do arquivo da revista qualquer resposta de Geraldes Cardoso, diretor-geral da Informação, a interceder pela sua publicação, mas nenhuma destas cartas de leitores foi publicada no número de dezembro de 1971.

Outra leitora que viu a sua carta cortada foi Maria do Rosário Neves Ferro, de Lisboa, que curiosamente surge num outro espólio, o dos “Documentos Felicidade Alves” (disponibilizado pela Casa Comum, da Fundação Mário Soares), com uma carta de maio de 1970, dirigida a Nuno Teotónio Pereira, a solicitar “a junção da sua assinatura ao abaixo assinado dirigido ao Ministro do Interior para a libertação do Padre Felicidade Alves”.

À Além-Mar, Maria do Rosário Neves Ferro dá conta que tomou conhecimento “com grande alegria” de uma “Mensagem do Conselho de Presbíteros da Beira”, assinada em primeiro lugar pelo bispo de Nampula. “Dela me fica uma impressão de amor a Nosso Senhor e aos irmãos, que me fez ter mais esperança de novo. Porque no vosso jornal ainda não vi a mínima referência a este documento, permito-me transcrever algumas partes para reflexão dos leitores.” Não passou, nem uma linha.

 

No estertor da ditadura

 

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O artigo sobre “o bispo da camisa cinzenta” também não resistiu ao lápis azul
e ao carimbo vermelho da Censura. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

O número de abril de 1974 ainda sai visado pela Censura. Nesse n.º 195, do Ano XIX de publicação, o editorial tem sinalizados “cortes apenas a vermelho”: “Há também quem expulse os missionários sob a acusação de colonialismo religioso e cultural ou de interferências nos negócios políticos da nação” – é a frase proibida no estertor da ditadura, numa referência à expulsão, decretada pelo regime, de nove missionários combonianos e do então bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto.

A Além-Mar não foi a única publicação católica a ter de ir ao “exame prévio” da Censura. A Voz Portucalense, criada a 1 de janeiro de 1970, também passou pelo mesmo calvário, em que “as instruções superiores para os agentes da ação censória manifestavam especial atenção a temas como a paz, a justiça social, aspetos da moral comportamental, a violência, a ação governativa, a ação da justiça e mesmo aspetos do universo internacional”. Tal e qual o jornal da diocese do Porto, a revista missionária comboniana via o mais inócuo dos seus textos cortados ou enxertados.

Num artigo a sair no número de abril de 1972, que deu “entrada na censura em 6/3/72”, “Impressões de uma visita às missões dos Capuchinhos em Angola”, há uma frase cortada, na quarta página: “Para subir é preciso passar pelo posto de controlo dos soldados de guarda à zona da barragem.” E mais abaixo, outra: “Pouco antes de Viana, a uns dez quilómetros da capital, deparamos com uma longa coluna militar que vai para o Norte substituir outros militares na zonas mais ameaçadas pelo terrorismo.” O censor evitava referências à guerra. “Autorizado com cortes”.

No ano de 1968, um texto que relata uma visita a D. José Dalvit, um comboniano que é bispo de S. Mateus, uma “pequenina cidade perdida no Estado do Espírito Santo”, no Brasil, é cortado de alto a baixo. O texto de duas páginas não aparenta ter particulares pecados contra a ditadura, mas o carimbo do censor é taxativo: “Cortado”. Título do texto: “O bispo da camisa cinzenta”. O autor, o padre Domingos Andriollo, confessa no final do artigo que não o mostrou antes ao bispo. “Quero que ALÉM-MAR lhe traga esta surpresa”. A censura não deixou.

 

[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 7 de maio de 2024]

Maio 31, 2024

As esquerdas à procura dos seus caminhos

Miguel Marujo

Operários numa obra no México. Foto © Tomas Castelazo, www.tomascastelazo.com / Wikimedia Commons.

Operários numa obra no México. Foto © Tomas Castelazo/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0.

 

 

A esquerda portuguesa e europeia vive numa encruzilhada, com muitos a insistirem numa certidão de óbito. E talvez, neste caso, parafraseando Mark Twain, a notícia da sua morte seja manifestamente exagerada. Por isso, vale a pena mergulhar nessa encruzilhada a partir desta Breve História Mundial da Esquerda, de Shlomo Sand, historiador israelita nascido na Áustria, para aprofundar as causas que apontam para essa eventual crise, depois de experiências reformistas falhadas — como a Terceira Via, que juntou Bill Clinton, na América, e Tony Blair, no Reino Unido — ou as novas causas identitárias, como as de género e sobre o clima.

 

A capa da edição portuguesa do livro de Shlomo Sand.

A capa da edição portuguesa do livro de Shlomo Sand. Foto: Livros Zigurate.


Shlomo Sand oferece ele próprio a sua história pessoal para nos situar de forma desapaixonada na forma como a esquerda evoluiu na história, situando-se muito na noção de igualdade. A “matriz original de todas as esquerdas” é a igualdade, e de como essas esquerdas podem sobreviver a um “tempo marcado pelo individualismo e por reivindicações identitárias”, na feliz síntese que nos traz o seu livro em português. Sand nasceu numa família de judeus polacos sobreviventes do Holocausto e bebeu no pai comunista, avesso a rabis, uma atitude política de esquerda, até se desiludir no início da década de 1970 – que é como quem diz, depois da então União Soviética esmagar a Primavera de Praga, em 1968 –, e cortar os laços com o movimento comunista, sem voltar a reaproximar-se. “Todavia, continuo a pensar como um homem de esquerda: uma parte das falhas e, talvez, da qualidade do que escrevo conduz-me às minhas posições iniciais, a que não estou disposto a renunciar. Apesar de todas as decepções geradas, pelos desvios e fracassos das lutas sociais do século XX, continua a existir um abismo entre o universo e valores que anima a esquerda, em toda a sua diversidade, e aquele que alimenta todas as direitas” – apresenta-se o historiador, de forma clara.  

Escrito durante a pandemia, que não foi só uma “questão sanitária”, mas também “socioeconómica”, este livro é quase impiedoso na forma como vai sublinhando as deceções e fracassos das esquerdas no mundo – somos sempre mais críticos com os nossos pares. “A esquerda perdeu a sua força mobilizadora e abriu espaço ao populismo”, argumentava Shlomo Sand em entrevista ao Público, quando do lançamento do seu livro. A decomposição da esquerda enfraqueceu uma visão do mundo de progresso, no qual a igualdade agoniza, quando a esquerda começou pela ideia de igualdade.

O historiador, que se diz pessimista, sem ser fatalista, recusa a repetição da História, preferindo antes a ideia de que esta “fabrica fenómenos sempre desconhecidos e inesperados”. Deixando de lado grandes certezas, numa conclusão melancólica do livro, Sand prevê um possível caminho para as esquerdas, sem saber exatamente como se concretizará. “Quando os assalariados «de cima» se derem conta de que o seu futuro depende dos assalariados «de baixo», em particular dos mais novos, e quando estes últimos estiverem cansados do culto inútil prestado aos ídolos populistas, poderão emergir estratégias que levem a uma política diferente, reformista ou revolucionária. Infelizmente, ainda não é esse o caso.” Até lá, argumenta, a “exausta esquerda” pode resistir como o “vergado Galileu”, que depois de ter renegado as suas teses sobre o movimento da Terra à volta do Sol, perante o tribunal da Inquisição, acrescentou: “E, no entanto, ela move-se!”

 

Na cabeça de quem está na política

A atenção à atualidade é uma das mais-valias das edições da Livros Zigurate, que se impôs rapidamente num mercado saturado, com uma imagem de marca distintiva, no grafismo dos livros, mas também nos temas que marcam os tempos de hoje, ultrapassando a mera espuma dos dias. Para lá da superficialidade das matérias lidas apressadamente num jornal ou na internet, há quem procure deixar uma reflexão, e isso passa por estas páginas – e pelas páginas de cada um dos livros já publicados pela editora de Carlos Vaz Marques. 

Talvez o atual líder do PS, Pedro Nuno Santos, possa encontrar nesta Breve História Mundial da Esquerda uma leitura fundamental que o ajude a moldar a atuação política dos socialistas portugueses, no quadro de ascensão do populismo de uma extrema-direita que entrou em peso na Assembleia da República. Ou então beber naquilo que tem sido a sua preocupação primeira com uma Europa subjugada a uma “lógica monetarista” e que precisa de ser reformada nas suas políticas económicas.

 

Na cabeça de Pedro Nuno

Na cabeça de Pedro Nuno, de Ana Sá Lopes. Foto © Livros Zigurate.


Em Na Cabeça de Pedro Nuno, outra edição da Zigurate, lançada a tempo das eleições legislativas de março deste ano, a jornalista do Público Ana Sá Lopes traça esse permanente “esquerdismo”, lembrando a defesa intransigente de uma “nova social-democracia”, na qual o Estado é um mecanismo de redistribuição de rendimento e de proteção social, aliado ao desenvolvimento e à inovação socioeconómica. Sem a melancolia de Shlomo Sand, o socialista português aponta a questão da igualdade como chave.

Esta biografia de Pedro Nuno Santos completa-se também no confronto com outras duas biografias de políticos à direita lançadas em simultâneo (Na Cabeça de Montenegro e Na Cabeça de Ventura, também da Zigurate), que mais do que terem ajudado um eventual eleitor indeciso, proporcionam um retrato do muito que descreve o historiador israelita sobre o estado atual da arte da política do mundo – a esquerda, sim, mas também a direita. Se Ventura é descascado no seu primário populismo e radicalismo inconsequente, por Vítor Matos, jornalista do Expresso, o sensaborão inevitável-derrotado-até-à-última-vitória líder do PSD é descrito, na prosa de Miguel Santos Carrapatoso, jornalista do Observador, como alguém que “não era suposto ter chegado aqui”. Já se sabe: a esquerda espera que a Terra continue a mover-se.

 

Breve História Mundial da Esquerda, de Shlomo Sand
(trad. Carlos Vaz Marques, a partir da tradução francesa, do hebraico, de Michel Bilis)
Livros Zigurate, 2023
268 pp., 21,20€

Na Cabeça de Pedro Nuno, de Ana Sá Lopes
Livros Zigurate, 2023
160 pp., 14,80€

Na Cabeça de Montenegro, de Miguel Santos Carrapatoso
Livros Zigurate, 2023
200 pp., 14,80€

Na Cabeça de Ventura, de Vítor Matos
Livros Zigurate, 2023
192 pp., 14,80€

[artigo originalmente publicado no 7MARGENS, em 19 de maio de 2024]

Maio 09, 2024

O 25 de Abril chegou por pancadas na parede. O diário na prisão de Conceição Moita

Miguel Marujo

O 7MARGENS leu pela primeira vez pastas do arquivo pessoal de Maria da Conceição Moita, que estava presa em Caxias no dia em que a ditadura caiu. A libertação para esta professora e muitos opositores ao Estado Novo demoraria ainda a chegar: só aconteceu pouco depois das zero horas de dia 27 de abril. Eis um relato desses 141 dias.

 

Caxias Libertação.jpeg

 

 

Com pancadas na parede, a notícia correu as celas. “Às 21.15 – o lado E. [esquerdo] informa de que houve um golpe militar e que foi derrubado o Governo de Marcelo Caetano”, escreve Maria da Conceição Moita, detida na cela 56, juntamente com Fátima e Helena.

O dia, aquele dia 25 de abril, uma quinta-feira, que era o sexto dia de “greve às visitas” e o segundo de “corte de recreios” tinha sido estranho: “Às 17.10m – os G.N.R. são substituídos por uma força de choque – têm capacete e estão especialmente armados. Na auto-estrada o movimento de automóveis é muito pouco. Às 18.30 – um automóvel na auto-estrada pára em frente da cadeia e buzina insistentemente. As camaradas da [cela] 54, no fim do carro desaparecer, comunicam-nos que perceberam que o carro comunicou uma mensagem da qual só perceberam as duas últimas palavras – derrubado e coragem. Comunicamos isto à sala 3 e 4 pela parede.”

Há outros dois detalhes no bloco-notas de Conceição Moita, que ajudam a perceber que algo de diferente se passava naquele dia 25: “Não tivemos jornal. As camaradas da ARA não tiveram julgamento, hoje.”

Conceição escreverá, eventualmente depois, num calendário que mantém na prisão de Caxias, no dia 26: “Libertação!” – a palavra que temia estar longe, chegava ao fim de mais de quatro meses e meio de prisão e tortura às mãos da PIDE/DGS, a temível polícia do Estado Novo, responsável pela censura, prisão e morte de muitos que se opuseram à ditadura de Salazar e Caetano. O 25 de Abril (para estes presos políticos) chegou por pancadas na parede, e apenas um dia depois. Foi uma “dupla libertação”, repetiria depois, muitas vezes.

Estes documentos, sem data, integram uma parte do espólio pessoal de Maria da Conceição Moita – antiga professora e ativista, que morreu em 30 de março de 2021 –, deixado à guarda do Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade Católica, e que o 7MARGENS consultou em primeira mão (oito de 14 pastas). Não é possível aferir quando foi escrito o bloco-notas, um “quase-diário”. Aparentemente terá sido já depois do tempo da prisão, a partir de outras notas e folhas manuscritas com calendários dos meses em que esteve detida, também incluídos no espólio, e que (apesar de também não estarem datados) serão desse tempo de cadeia.

 

Três folhas, cinco meses

 

Os calendários com o registo dos dias da prisão, incluídos no espólio pessoal consultado pelo 7MARGENS. Direitos reservados, reprodução proibida.

 

Os calendários são três folhas desenhadas à mão e cobrem os cinco meses da prisão, de dezembro a abril. No espólio há uma pequena folha, assinada por Ernestina Moita, a mãe de Xexão (como era chamada por familiares e amigos), onde consta que entregou “uns papelinhos com apontamentos de aniversários” para a filha. E lá estão os aniversários, mas também visitas, pequenos acontecimentos do quotidiano, idas à PIDE.

Conceição Moita sempre testemunhou os seus dias na cadeia, não omitindo o que sofreu às mãos dos esbirros da polícia política da ditadura: oito dias e oito noites sem dormir, uma violenta bofetada que lhe valeu uma queda desamparada seguida de violentos espasmos descontrolados, um dia inteiro na posição de estátua, sem se poder mexer, a centímetros de uma parede a que não se podia encostar. “Estava à beira da demência, do esgotamento físico e psicológico. Sentia um cansaço até ao fundo da alma”, contou à jornalista Joana Pereira Bastos, no livro Os Últimos Presos do Estado Novo Tortura e Desespero em vésperas do 25 de Abril (Oficina do Livro, abril de 2013, 1.ª edição).

No calendário de dezembro, os dias de tortura estão assinalados apenas com uma mancha vermelha que preenche aquelas longas horas consecutivas: de 6 a 13 de dezembro, todos os quadrados estão pintados, com duas únicas indicações. “Prisão”, no dia 6 (que coincide com um aniversário de uma amiga) e “Entrada na cadeia”, no dia 13. Esta mancha vermelha volta a repetir-se de 19 a 21 de dezembro de 1973 e de 2 a 4 de janeiro de 1974. Qualquer legenda seria desnecessária.

O uso dos calendários vai-se tornando mais intenso: há os aniversários e notas de visitas, que só mais tarde passam a ser mais descritivas. Em dezembro, Conceição Moita assinala três visitas, nos dias 17, 26 e 31, numerando apenas as mesmas: 1.ª, 2.ª e 3.ª – um registo que manterá em janeiro. A 5 do primeiro mês de 1974, Xexão escreve: “Licença para ler a Bíblia.” No dia 9, marca um risco vermelho no quadrado e escreve que recebe “licença para ler livros de índ.[ole] profissional”. No dia 11 anota: “Poema ao poeta.” A 12 escreve: “Companhia da Zé, Luísa, Fátima.” No dia 21 regista a “operação da Fátima” e a 22 o “1.º dia de jornal”.

Em fevereiro, o calendário de Conceição é cada vez mais preenchido – e aos pequenos episódios do dia-a-dia, juntam-se notas da luta dos presos. “Li ‘Um sorriso ao pé da escada’ do H.[enry] Miller”, abre o dia 1, e dia 2 traz o regresso da companheira de cela: “Chegada da Fátima do hospital”. No dia 4, “manif.[estação] MPLA” e no 5 “princípio greve de fome”, que termina a 12, no dia em que assinala também “fim do isolamento”.

Há uma aparente contradição neste registo, uma vez que, um mês antes, Conceição já tinha registado a “companhia” de outras três mulheres, não sendo claro se se trata de um novo período de isolamento. Nos testemunhos públicos, como aquele que deu ao projeto Mulheres de Abril, Conceição afirmou ter estado isolada um “mês e meio”, o que permite pensar que este é um segundo isolamento a que foi sujeita, eventualmente por causa de estar a fazer greve de fome. No dia seguinte, 13 de fevereiro, tem a “1.ª visita lá em baixo” e, no dia 14, as companheiras Fátima e Zé são “notificadas”.

 

Levantamento de rancho

 

Maria da Conceição Moita, Xexão, em 2007. Foto: Direitos reservados

Maria da Conceição Moita, Xexão, em 2007. Foto: Direitos reservados.

 

No espólio arquivado de Conceição Moita, há uma lista de carros, com matrículas, e em muitos a referência à cor do veículo. No cabeçalho, a indicação “F. Pide” – que talvez signifique “funcionários da Pide”. No arquivo de Xexão, detida aos 36 anos, e que festejará os 37 presa, consta ainda o desenho de dois mapas das celas, com os nomes de (muitos) presos, no que parece ser um exercício posterior de memória.

Há também notas que se encontram em três longas e finas tiras de papel, densamente escritas em letra pequenina, com diferentes tipos de letra, e que fazem a “cronologia dos acontecimentos na GF [greve de fome]”, do “Lado esquerdo” da cadeia. Percebe-se por estas notas que diferentes formas de luta vão sendo ponderadas, de “levantamentos de rancho” a greves às visitas, às horas de recreio ou as greves de fome.

Já o bloco-notas, que terá sido escrito depois do tempo da prisão, eventualmente a partir de tiras de papel como aquelas, inicia-se a 4 de fevereiro: “Manifestação às janelas, pelas 23h. Dia do MPLA”, numa referência ao Movimento Popular de Libertação de Angola, uma organização independentista que lutava pela libertação do jugo colonial português. Também o dia 5 é mais detalhado: “Início da G.F. [greve de fome] Motivo: camarada em regime normal voltar a isolamento e ser submetido a interrogatórios.” De fevereiro, só tem mais esta entrada: “11 de fevereiro – Fim da G.F. às 22 horas. Greve de visitas das celas em regime normal até dia 16 inclusive”.

Estas notas voltam a encher-se de registos a partir do final de março, dando conta de um “levantamento de rancho ao jantar”, no dia 26, “como protesto pelo castigo a 2 camaradas do lado esquerdo que subiram aos muros do recreio”. De 27 de março a 1 de abril, os presos fazem “greve aos recreios em solidariedade com os camaradas castigados”. Alguns presos fazem greve de fome, nestes dias, e há uma “discussão às janelas sobre o problema de fundo em causa – o isolamento entre celas”.

O “problema do isolamento” é levado ao diretor da prisão de Caxias no dia 28 de março, que “concorda” que “o problema das mulheres a cumprir pena nesta cadeia é particularmente grave” e diz aos presos para fazerem “uma exposição”, que segue no dia seguinte para o diretor-geral de Segurança, o pide dos pides. Na carta, assinada por Maria Helena Vidal, Maria de Fátima Pereira Bastos e Maria da Conceição Moita, as reclusas entendem ser seu dever “chamar a atenção dos responsáveis” para a situação de más condições da cadeia, “manifestar quanto a achamos inaceitável e pede a sua urgente revisão”, pedindo ainda, “como princípio de resolução do problema, a existência de recreios conjuntos para os reclusos e reclusas em regime normal”, e que isto “tenha início o mais brevemente possível”. O diretor fez orelhas moucas – e as três signatárias continuam presas em Caxias a 25 de abril.

 

Um abecedário de pancadas na parede

 

Richter Frank-Jurgen, CC BY-SA 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0>, via Wikimedia Commons

Jorge Sampaio, que tinha sido um dos líderes da crise académica de 1962 e seria, já na democracia, líder do PS e Presidente da República, foi o advogado de Conceição Moita. Foto © Richter Frank-Jurgen, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons.

 

 

O isolamento era quebrado por pancadas nas paredes, como contou Conceição Moita ao projeto Mulheres de Abril. “Na cadeia aprendi a comunicar com as camaradas das celas do lado. Do meu lado direito, uma camarada fazia uns batimentos na parede que eram sempre os mesmos. Pus a hipótese mais lógica de cada pancada ser uma letra. Recorrendo ao papel higiénico e a um bâton que tinha dentro do bolso do casaco, fiz um abecedário para me orientar. Ela dizia-me sempre “olá”. Quando respondi “olá”, ficou contentíssima. Passámos a comunicar durante todo o tempo.”

No arquivo de Conceição, numa das tiras de papel, está escrito esse código de comunicação através das paredes da prisão de Caxias. “Para transmissões de parede de extrema conspiratividade, foi fixado um novo código. Deve ser precedido, após o sinal de início de comunicação, de 2 pancadas seguidas repetidas por 3 vezes. O código de letras é como se segue: 1. R, 2. S, 3. O, 4. M, 5. A, 6. I, 7. D, 8. E, 9. C, 10. T, 11. H, 12. P, 13. F, 14. B, 15. G, 16. L, 17. U, 18. J, 19. V, 20. ?, 21. H, 22. X, 23. Q, 24. 25. Z, 26. A, 27. S, 28. R, 29. O.” Não há erro de transcrição: as últimas quatro letras repetidas são para enganar os agentes da PIDE, como se esclarece logo: “Estes são ‘duplos’ das letras já representadas por outros nºs e para usar em subst.[ituição] para despistar os ‘escutas’ da Pide.”

Os dias na prisão de Conceição Moita sucedem-se ao ritmo das pancadas nas paredes e de conversas possíveis às janelas, ocupando-se os reclusos e reclusas de intensos debates sobre as formas de luta contra as condições de detenção e isolamento. A 23 de fevereiro, mais de dois meses e meio depois da ordem de prisão, a professora recebe a “1.ª visita” do seu advogado, Jorge Sampaio, que tinha sido um dos líderes da crise académica de 1962 e seria, já na democracia, líder do PS e Presidente da República. Conceição coloca duas setas, ao lado do registo da visita: “Leitura da acusação” e “conversa “particular” com o Jorge”. As aspas podem indicar que haveria alguém mais na sala a ouvir a conversa.

Nos dias seguintes, que coincidem com o Carnaval, há vários registos no calendário, com uma primeira visita da mãe “lá em baixo”, a 25 de fevereiro, o mesmo dia em que recebe a “1.ª carta do Luís”, o irmão que também estava preso em Caxias. Dois dias depois, Conceição recebe “licença para escrever ao Luís”. No mesmo dia escreve que leu Rainhas Cláudias ao Domingo, de Virgílio Martinho. A 28 de fevereiro anota: “Fui notificada. Cortei o cabelo no barbeiro. [Visita de] Toina e Rosário.”

De 5 a 10 de abril, nas vésperas da Páscoa, há uma intensa (quanto possível) troca de propostas entre celas e salas onde estão detidos homens e mulheres. No bloco-notas, Conceição escreve dez detalhadas páginas com as propostas dos diferentes reclusos e reclusas para um “caderno reivindicativo” a apresentar ao diretor da cadeia. “Todas as celas fazem uma carta colectiva ao Director pedindo um convívio entre os presos no Domingo de Páscoa”, que será a 14 de abril, acrescenta Conceição. O “lado esquerdo” das celas propõe ainda uma greve de fome “a partir do dia 15 para a conquista do caderno reivindicativo”. Há quem rejeite a proposta. A sala 1 diz que “é prematura e não recorre a etapas de luta intermédia”.

 

Seis pontos de reivindicações

 

Pasquale Paolo Cardo from Finale Ligure (Savona), Italy, CC BY 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/2.0>, via Wikimedia Commons

Cravos disparados de um morteiro, num mural atribuído a Banksy, aludindo à Revolução dos Cravos de 1974, na Travessa do Judeu, em Lisboa (2017, já desaparecido). Foto © Pasquale Paolo Cardo, de Finale Ligure (Savona), Itália, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons.

 

O caderno reivindicativo destes homens e mulheres presos em Caxias divide-se em seis pontos: portas das celas abertas; recreios em conjunto; visitas em comum de duas horas, uma vez por mês; filhos menores do lado dos pais presos na visita; entrada de todos os jornais e revistas; visitas e correspondência com amigos e todos os familiares (para além do 3.º grau). A 9 de abril, o diretor da cadeia não tem ainda uma resposta para dar e, aos presos da cela 4, diz que “os múltiplos pedidos e exigências provocariam a não concessão destas coisas”.

No dia 6, Conceição é levada de novo à Rua António Maria Cardoso, no Chiado, em Lisboa. No calendário, escreve: “Fui à Pide. O Santos Costa queria que eu reconhecesse fotografias.” Na véspera tinha feito 37 anos, mas no calendário não há nada. A 7 de abril, há uma manifestação dos presos às “janelas”, e a 15 de abril os pontos reivindicativos dos detidos seguem por carta para o diretor-geral de Segurança, de novo assinada por estas três Marias, como regista no bloco-notas. “Considerando que nada do que acima se expõe excede um mínimo aceitável de condições prisionais, pedimos que os pontos focados sejam urgentemente atendidos.” Silva Pais volta a ignorar a carta – e só a liberdade faz caducar as exigências dos presos.

A noite de 25 e o dia de 26 são vividos na angústia de saber quem tinha feito o golpe. Setores ultradireitistas ameaçavam o governo de Marcelo Caetano, por o acharem fraco, daí o receio dos detidos. “Em algumas celas, instalou-se a discussão entre os presos que já só pensavam em fazer as malas e os que, com medo, achavam que o melhor era barricarem-se e tentarem, por todas vias, proteger-se”, descreve Joana Pereira Bastos, em Os Últimos Presos do Estado Novo. No seu bloco-notas, Conceição escreve que “às 8 horas da manhã uma força de para-quedistas toma posição diante da cadeia”. E acrescenta: “Chove. Está uma manhã de mistério. O silêncio é total.”

Uma hora depois, nota, um “grupo de advogados”, “pessoas da CDE” (Comissão Democrática Eleitoral, formada pela oposição democrática ao Estado Novo, em Portugal) e jornalistas “estão diante da cadeia”. E gritam: “Estamos aqui todos! Vão ser libertados!” Na estrada, uma força de fuzileiros navais posiciona-se. “Por volta das 10h, esse grupo de pessoas entra pelos portões da cadeia e gritam-nos que está tudo controlado e que vamos ser todos libertados.”

A espera será ainda longa. “Pouco depois abrem-nos as portas. Saímos para o corredor. Todas as portas estão abertas e oficiais percorrem os corredores com um ar sorridente e amável. Recomendam calma. Um oficial explica um bocadinho como as coisas se passaram. Descemos. Lá fora, já estava a Sala 1D. Muitos fotógrafos e jornalistas. Abraços e reconhecimentos.”

Como a libertação de os presos políticos – cuja amnistia tinha sido anunciada pelo capitão Vítor Alves – não era pacífica no seio do Movimento das Forças Armadas, por resistências do general Spínola, que não queria libertar prisioneiros que tivessem ligações às organizações de luta armada, como a ARA, a LUAR e as Brigadas Revolucionárias (às quais estava ligada Conceição), no forte de Caxias o dia 26 foi passando sem que houvesse ordem para libertar.

“Perto das 11 horas dizem-nos que a nossa liberdade não é coisa fácil – recomendam calma e que voltemos de novo para as celas… Ordeiramente e calmamente. Subimos. Vamos visitar o Lado E.”, escreve Conceição Moita. E regista as suas últimas notas desse dia, neste quase-diário: “A Fátima e eu tentamos escondermo-nos na Sala 1E, mas somos descobertas. Voltamos às celas. Arrumamos as coisas. Às 15.30 dão-nos o jornal. A 5.ª edição do Século de 25 de Abril. Às 16h, a rádio transmite um comunicado dizendo que os presos políticos serão libertados dentro da maior brevidade possível.” A brevidade chegaria só às 00h30 de dia 27. A liberdade estava finalmente a passar por ali. “Libertação!”, escreveu Conceição no seu calendário, 141 dias depois de receber ordem de prisão.

 

 

Um arquivo para investigações futuras

Tiras de papel com notas em letra muito pequena, depositadas no arquivo de Conceição Moita. Direitos reservados, reprodução proibida.

Tiras de papel com notas em letra pequena, depositadas no arquivo de Conceição Moita. Direitos reservados, reprodução proibida.

 

O Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa recebeu recentemente espólios pessoais de Maria da Conceição Moita e de Luís Moita, seu irmão, “figuras marcantes do catolicismo português e com destacada atuação cívica desde os anos de 1960”, como descreve o investigador Nuno Estêvão Ferreira, do CEHR, ao 7MARGENS.

“Os papéis pessoais que mantiveram consigo foram doados por familiares ao CEHR”, disse, acrescentando que “o pressuposto destas doações assenta na manutenção em boas condições de depósito e, após a sua organização do ponto de vista arquivístico, na sua disponibilização junto dos investigadores e da comunidade em geral”.

Nuno Estêvão Ferreira recorda que o CEHR possui entre as suas áreas de trabalho a salvaguarda e a valorização do património documental de cariz religioso, sublinhando a importância da promoção de arquivos. “Enquanto unidade de investigação no campo da História, a promoção de arquivos é vital por dois motivos principais: metodologia de trabalho, dado que o peso que os repositórios de fontes de diferentes proveniências assumem no labor historiográfico; responsabilidade perante a comunidade, porque a transmissão da memória é um elemento vital para estabelecer vínculos entre gerações.”

É esta “preservação e a promoção do património documental” qu é realizada no CEHR, “por intermédio da sensibilização de responsáveis de organizações religiosas para a importância de manterem em boas condições os seus arquivos correntes e históricos, como elemento fulcral para demonstrarem os termos da sua atuação e legado à sociedade. Mas o CEHR também disponibiliza recursos para depósito, organização e disponibilização junto da comunidade de espólios pessoais de figuras provenientes de organizações religiosas”, sintetiza o investigador.

No caso de Luís Moita, este antigo professor cedeu o seu arquivo ao Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra, mantendo consigo alguma documentação, que foi entretanto doada ao CEHR. O espólio de Conceição Moita integra um total de 14 pastas, das quais o 7MARGENS consultou já oito.

 

[artigos originalmente publicados no 7MARGENS, em 22 de abril de 2024, nos 50 anos do 25 de Abril; a foto principal é uma captura de imagem de uma reportagem da RTP, no momento da libertação de Maria da Conceição Moita e restantes presos]

Março 29, 2024

Sentar com o outro à mesa

Miguel Marujo

 

the-old-oak.jpegO Pub The Old Oak: retrato de uma cidade mineira deprimida, com o desemprego a ocupar os dias dos seus habitantes e a especulação imobiliária a invadir as suas casas. Foto: Direitos reservados.

 

 

Anda por aí um livro que nos convida a sentar à mesa, a partir dos textos bíblicos. A Mesa de Deus (de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, Quetzal Editores) é, segundo escreve José Tolentino Mendonça, no prefácio, uma oportunidade para “entrar na Bíblia pela porta da cozinha”. “É um argumento mais sério do que se possa supor. E também mais espiritual.”

Façamos a vontade ao poeta e cardeal, que sintetiza o livro com uma bela definição: “Um livro de espiritualidade bíblica, um compêndio de exegese, uma refeição da Palavra.” Entremos então pela cozinha, saboreando as palavras, olhando uns e outros, neste caso, com as falas e os gestos de dois filmes, muito diferentes no tempo e no modo, que fazem da mesa um ponto de encontro entre iguais e diferentes, de aceitação do outro.

A Festa de Babette (1987) é a história de uma mulher francesa, fugida do seu país, que encontra refúgio numa remota comunidade nórdica, na casa de duas mulheres solteiras, anos depois da morte do pai delas, um homem que tinha fundado uma seita religiosa puritana, e onde o prazer era uma palavra proibida.

Aproximando-se o centenário do nascimento do pastor, Babette recebe a notícia de que ganhou a lotaria, no valor de 10 mil francos, e oferece-se para preparar o jantar de celebração dessa data, “um autêntico jantar francês”. Herdeiras da austeridade do pai, as filhas apenas tinham planeado servir “uma comida modesta” e uma chávena de café e não aceitam a oferta. “Nunca oferecemos outra coisa”, argumentam. Acabam por aceitar o pedido “do coração” daquela mulher francesa, que as ajudava a servir e a cuidar dos velhos da aldeia.

Perante a chegada da mercadoria com os ingredientes (quase exóticos, para aquelas paragens e bocas, como codornizes e tartaruga, ou vinho) para o jantar, as filhas do pastor convocam a comunidade para lhes contar que não pretendiam fazer nada de mal e que só queriam agradar a Babette. “Agora estamos expostos a forças perigosas, talvez forças do mal. Nem lhes posso contar o que nos dará para comer e beber.” O medo instala-se entre os crentes. “O que nos vai acontecer? Senhor, concedei-nos a vossa misericórdia.” E ali estabelecem um pacto, de que não dirão uma só palavra sobre o que comerem e beberem. “Será como se não tivéssemos o sentido do paladar.”

 

Festa de Babette.jpgA Festa de Babette: “Será como se não tivéssemos o sentido do paladar”, diz uma das personagens.
Foto: Direitos reservados.

 

À mesa, a descoberta de sabores, aromas e sensações desconhecidas é um acontecimento, que em nada põe em causa a sua fé. Afinal, aquele jantar é um ato de amor fraterno, como exultou também o Papa Francisco, que incluiu este filme de Gabriel Axel entre os seus favoritos, e que o leva mesmo a citá-lo na encíclica Amoris Laetitia: “As alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito recordar a cena feliz do filme A Festa de Babette, quando a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce e consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas. Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado, que transborda para o outro e se torna fecundo nele.” (nº 129)

A fecundidade daquela refeição é a fecundidade que encontramos num filme bem distinto — e muito atual. O Pub The Old Oak (2023), de Ken Loach, traça o retrato de uma cidade mineira deprimida, com o desemprego a ocupar os dias dos seus habitantes e a especulação imobiliária a invadir as suas casas. O filme arranca com a chegada de refugiados sírios a essa cidade na costa do Nordeste da Inglaterra — e sente-se a hostilidade de parte da comunidade. Há tensão e um forte discurso xenófobo e, logo ali, sente-se que o tema divide amigos, vizinhos e conhecidos.

O pub do título é o lugar que resta numa terra onde tudo desapareceu. Mas até The Old Oak sofre das agruras do tempo e da escassez de clientes, o que não impede o seu proprietário de tentar ajudar os que mais precisam, recebendo a ajuda dos refugiados sírios. Estes sentem-se agradecidos pelo acolhimento na cidade, apesar da hostilidade com que são tratados, e querem retribuir preparando refeições (também cozinhados seus) para quem não tem de comer. Um gesto que comove, e que faz aproximar estranhos, apesar de, como desabafa uma das personagens, ser “a esperança que causa tanta dor”.

Um e outro filme sentam-nos à mesa com o estrangeiro, com a diferença, nos pratos e nos paladares, confrontando aquelas gentes com as certezas muito arrumadas das suas vidas, seja a aldeia austera e puritana da dinamarquesa Jutlândia, seja a comunidade de desempregados e pobres da Inglaterra. Um e outro filme fazem da mesa espaço de partilha, que remove desconfianças e tensões. Talvez seja mesmo pelo estômago que devemos começar, fazendo da refeição da Palavra o tempo certo para o acolhimento.

 

Foto de <a href="https://unsplash.com/pt-br/@roby54?utm_content=creditCopyText&utm_medium=referral&utm_source=unsplash">Roberto Patti</a> na <a href="https://unsplash.com/pt-br/fotografias/nozes-marrons-ao-lado-de-frutas-de-roma-a-bordo-weravkagvgE?utm_content=creditCopyText&utm_medium=referral&utm_source=unsplash">Unsplash</a>

“Entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que se possa supor”, defende Tolentino Mendonça. Foto de Roberto Patti na Unsplash.

[artigo originalmente publicado no PontoSJ, no dia 15 de março de 2024]

Março 04, 2024

Este espelho é pouco meigo. E gostamos disso

Miguel Marujo

Cara-de-Espelho-em-concerto-no-Theatro-Circo-em-Br

 

Entre o fadistão e o corridinho, até nesta música há lugar para o filho da mãe, que aqui se chama Dr. Coisinho, e a letra é contrassenha para sorrisos e uma música que renova a linguagem da intervenção. Cara de Espelho é o novo projeto, que se estreou em disco em janeiro e, em palco, no sábado, 24 de fevereiro, em Braga, na bela sala do Theatro Circo, reunindo alguns dos nomes mais importantes da música portuguesa. Seguiu-se Loulé, agora apresenta-se em Lisboa e depois será a vez do Porto.

Cara de Espelho, nome também do disco, é antes de mais um manifesto, nestes tempos de populismos e extremismos à direita, sem medo de jogar com as palavras e as metáforas, onde se reconhecem atores e políticas que ameaçam direitos e liberdades. Sem medos. Corridinho Português canta o óbvio: “Separando o africano do cigano/ Do chinês, do indiano, ucraniano,/  muçulmano, do romeno ou tirolês/ Como vês/ Sobra muito, muito pouco português, ó pá// Separando o cristão do taoista,/ do judeu do islamita, do ateu ou do budista,/ do baptista mirandês/ Como vês/ Sobra muito, muito pouco português, ó pá”.

Sobra muito do que é isto tudo, os portugueses ao espelho, genuínos, como se canta em Genuinamente, “O bacalhau tão soberano/ Afinal vem da Noruega/ Nem batata, nem azeite/ São de origem cá da terra/ E quem canta o nosso hino/ Será que já viu o nome/ Alemão que o compôs/ Ou que o galo de Barcelos/ Um galego inventou/ Reformula então bem isso”. Não há “português de bem” que não fique de orelhas a arder.

Esta música que é de intervenção nas palavras, também se faz no som, com sabores bebidos na pop, na tradição popular e com pitadas do Brasil e das Áfricas, numa reinvenção que nada deve a saudosismos. Não é de espantar: este supergrupo junta gente que esteve nos Gaiteiros de Lisboa, em A Naifa e Señoritas, Deolinda, Ornatos Violeta e Humanos, experiências e projetos que, na medida justa, contribuíram para algumas belas páginas da música portuguesa.

As canções nascem da pena de Pedro da Silva Martins, também na guitarra, o autor do hino da geração lixada pela troika, que foi Parva que sou, dos Deolinda (2011), e logo se percebe de onde vem a verve cáustica e humorada, irónica e crítica, de cada uma das 12 canções do disco (e dos novos temas levados ao palco). Juntam-se o saber e a voz dos instrumentos criados por Carlos Guerreiro, o baixo de Nuno Prata, as guitarras de Luís J. Martins, as percussões de Sérgio Nascimento (a quem se deve a ideia de um grupo assim), e Maria Antónia Mendes, na voz, ela que é das vocalistas que melhor trata a língua portuguesa.

Em palco, o álbum ganha outra solidez (e o que vimos em Braga foi a estreia absoluta ao vivo), com a banda a ensaiar-se em cinco novos temas (D de denúncia, Roda do crédito, Já vou, O que esta gente quer?, e Aldeia fantasma) que mantêm a língua afiada e as canções sintonizadas numa paleta de soluções musicais criativas e, simultaneamente, tão próximas de quem ouve. Um reflexo feliz. “Nós somos os Cara de Espelho e estamos aqui para vos refletir. Sempre”, como atirou Maria Antónia para o público.

Maria Antónia ganha o palco e o público sem maneirismos desnecessários, nem apresentações a mais, tudo no tempo e modo certos, para saciar um público que talvez anseie por quem cante contra ventureiros de falsas ilusões e ódios exacerbados ou que ouve ali, em primeira mão, dignos herdeiros da melhor música de intervenção (sem pudor da palavra) de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto ou Adriano Correia de Oliveira, entre outros.

Se cada canção é o reflexo das virtudes ou defeitos, das fraquezas, dos pequenos ou grandes poderes, dos tiques, dos vícios, disto que é ser cidadão ou, no sentido lato, do que é ser humano, como é apresentado este projeto, gostamos de nos olhar ao espelho.

 

 

 

Próximos concertos:
4 e 5 de março, segunda e terça: Lisboa – Teatro Maria Matos
16 de março, sábado: Porto – Casa da Música

[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 1 de março de 2024; foto © Adriano Ferreira Borges/Theatro Circo]

Março 01, 2024

A tragédia do autocarro que é a tragédia de dois povos

Miguel Marujo

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Um dia na vida de um pai à procura do filho que seguia num autocarro que sofreu um acidente é uma síntese aparentemente banal de uma história trágica e pessoal. Seria o caso de Um Dia na Vida de Abed Salama, não fosse Abed um palestiniano residente na Cisjordânia, Palestina. À tragédia pessoal de Abed, do seu filho Milad, da sua família e de todos os que têm filhos e familiares naquele autocarro, junta-se uma tragédia maior: a de viverem num território esquartejado por um muro e postos de controlo, entrincheirados ao sabor de bilhetes de identidade que definem por onde circularem, que escolas frequentarem e a que hospitais recorrerem. 

Um Dia na Vida de Abed Salama – Anatomia de uma Tragédia em Jerusalém é uma notável reportagem – da autoria do jornalista americano Nathan Thrall – vertida em livro e que nos leva a percorrer as ruas de angústia, num dia de fevereiro de 2012, de uma forte tempestade, com muita chuva, por entre “um labirinto de obstáculos físicos, emocionais e burocráticos”, na síntese certeira da contracapa do livro. 

Abed está do lado do muro em que todas as coisas se complicam, em que percorrer escassas centenas de metros é um calvário moderno de ódio, racismo ou de fria burocracia a condicionar a vida de todos: na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, no amor e no divórcio. 

Este livro atual, publicado nos inícios de outubro do ano passado (em simultâneo nos EUA e em Portugal) ganhou uma maior acuidade com os ataques do Hamas a 7 de outubro de 2023, lançando para o abismo dois povos vizinhos e inimigos, numa espiral que parece longe de qualquer fim, e mais ainda de qualquer centelha de paz. 

Os dias do livro são os dias das intifadas, a primeira e a segunda, quando os jovens palestinianos lançaram mão de pedras para lutar contra a presença israelita cada vez mais asfixiante nos territórios ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. 

Nisso, o relato de Nathan Thrall é de uma secura extraordinária: por entre a trágica história particular de Abed, o jornalista americano tece com paciência e muita informação aquilo que é um conflito de décadas. Vai à História para nos dar as histórias do quotidiano de milhões de palestinianos, que vivem uma tragédia coletiva que se repete, num ciclo obsceno de violência. Em abril de 1948, recorda Thrall  ao contar-nos a vida de pessoas que vão surgindo naquele dia do acidente –Milad“bombardearam as casas palestinianas e os mercados da Baixa. Haifa sucumbiu em apenas um dia”. Através da rádio e de altifalantes, foram dadas instruções para uma evacuação imediata. Parece-se demasiado com as notícias daquelas semanas de outubro e novembro de 2023, e que se prolongam por 2024.

O destino de Milad continua suspenso, ao longo de páginas em que se narra a história do seu pai, da família de Abed, de como as terras dos Salama foram sendo ocupadas para ali se instalarem colonos israelitas, de como o jovem Abed amava Ghazi mas casou com Haifa e Asmahan, de como foi militante da Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP), a ala marxista-leninista da Organização para a Libertação da Palestina (OLP)  e estas siglas parecem-nos viver numa cápsula do tempo já distante.

Nathan Thrall traça nestas páginas os caminhos sinuosos que vão marcando a vida do povo palestiniano e dos seus vizinhos israelitas, entre a breve esperança dos Acordos de Oslo, o rápido desencanto de uma cada vez mais intensa ocupação, e as circunstâncias das vidas que lutam todos os dias. Também por causa do seu ativismo Abed será preso e torturado, e passa por Naqab, uma prisão onde se amontoam “jornalistas, advogados, médicos, professores, estudantes, sindicalistas, líderes da sociedade civil, defensores da não-violência, membros de grupos de diálogo entre Israel e OLP, que eram ilegais”, num retrato de como todo um país luta contra o opressor. Com pedras na mão, ou bombas, com diálogo ou com a não-violência: todos são metidos no mesmo saco.

Já o pequeno Milad, 5 anos, sonhava com aquela viagem a um parque temático nos arredores de Jerusalém, e implorou aos pais para poder ir na visita. Os pais de Milad acederam, como outros, reticentes à última hora, por causa da tempestade daquela manhã que assustava muito.

A chuva que não parava de cair, não lavou a memória da tragédia. Kayed divorciou-se de Nansy, culpando-a pela morte de Salaah. Todas aquelas famílias ficaram destruídas, enquanto iam e vinham entre os hospitais de Ramalah e Jerusalém, à procura de notícias dos seus filhos. Esta é também a história de Radwan, o motorista do autocarro escolar que ficou com a vida destroçada, ou de Huda, Nader, Eldad, Salem, Dubi, e todos os que convergiram naquela estrada nas proximidades de Jaba – médicos, técnicos de emergência, bombeiros, militares, ou apenas curiosos.

A morte daquelas crianças e professores chocou de frente com o ódio instalado: houve jovens israelitas, miúdos, que espalharam pelas redes sociais comentários de alegria e sarcasmo, celebrando a morte de dez palestinianos, quase todos crianças pequenas. “É só um autocarro cheio de palestinianos. Nada de especial. É pena que não tenham morrido mais.” Este livro é uma ferida aberta. Obrigatório para entender a tragédia de dois povos.

 

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Um Dia na Vida de Abed Salama – Anatomia de uma Tragédia em Jerusalém
de Nathan Thrall (tradução de Sara Veiga)

Livros Zigurate
outubro de 2023
208 págs

 

Artigo originalmente publicado no 7Margens, a 25 de fevereiro de 2024. Foto de Abed Salama a segurar um retrato do filho Milad, de Ihab Jadallah / Nathan Thrall, in People's World.

Fevereiro 28, 2024

A interrupção voluntária do diálogo

Miguel Marujo

Em dezembro de 2006 (!!!), eu, a Ana Berta Sousa, o José Manuel Pureza​, a Marta Parada​ e a Paula Abreu​ escrevemos este texto no jornal Público. Hoje, quase 20 anos depois, recupero-o, porque há sempre setores de uma certa Igreja (sempre os mesmos, e sempre ligados a determinados partidos) prontos a atirar-nos para trás, ignorando o que a lei da interrupção voluntária da gravidez trouxe em termos de saúde, nomeadamente, na diminuição do número de abortos, e de mortes de mulheres. E ignorando a defesa da vida.

 

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"Somos católicos e assistimos, inquietos e perplexos, à reiteração de uma lógica de confronto crispado por parte de sectores da Igreja Católica — incluindo os nossos bispos — no debate suscitado pelo referendo sobre a despenalização do aborto. Frustrando as melhores expectativas criadas pelas declarações equilibradas de D. José Policarpo, a interrupção voluntária do diálogo volta a ser a linha oficial. E o radicalismo vai ao ponto de interrogar a legitimidade ao Estado democrático para legislar nesta matéria. É um mau serviço que se presta à causa de uma Igreja aberta ao mundo.

A verdade é que a despenalização do aborto não opõe crentes a não crentes. Nem adeptos da vida a adeptos da morte. Não é contraditório afirmarmo-nos convictamente «pela vida» e sermos simultaneamente favoráveis à despenalização do aborto. Porque sendo um mal, não desejável por ninguém, o recurso ao aborto não pode também ser encarado como algo simplesmente leviano e fácil. As situações em que essa alternativa se coloca são sempre dilemáticas, com um confronto intensíssimo entre valores, direitos, impossibilidades e constrangimentos, vários e poderosos, especialmente para as mulheres. Ora, mesmo quando, para quem é crente, a resposta concreta a um tal dilema possa ser tida como um pecado, manda a estima pelo pluralismo que se repudie por inteiro qualquer tutela criminal sobre juízos morais particulares, por ser contrária ao que há de mais essencial numa sociedade democrática.

Por isso, não nos revemos no carácter categórico e absoluto com que alguns defendem a vida nesta questão, dela desdenhando em situações concretas de todos os dias: a pobreza extrema é tolerada como "inevitável", a pena de morte "eventualmente aceitável", o racismo e a xenofobia é discurso vertido até nos altares. A Igreja Católica insiste em dar razões para ser vista como bem mais afirmativa "nesta" defesa da vida do que nos combates por outras políticas da vida como as do emprego, do ambiente, da habitação ou da segurança social. Além de que, no caso do aborto, a defesa da vida deve sempre ser formulada no plural. Estão em questão as vidas de pelo menos três pessoas e não apenas a de uma. Por isso, quando procuramos — como recomenda um raciocínio moral coerente mas simultaneamente atento à vida concreta das pessoas — estabelecer uma hierarquia de valores e de princípios, ela nem sempre é fácil ou mesmo clara e não será, seguramente, única e universal. Nem o argumento de que a vida do feto é a mais vulnerável e indefesa das que se jogam na possibilidade de uma interrupção voluntária da gravidez pode ser invocado de forma categórica e sem quaisquer dúvidas.

É de mulheres e de homens que se trata neste debate. E também aqui, o esvaziamento do discurso de muitos católicos e sectores da Igreja relativamente aos sujeitos envolvidos nos dilemas de uma gravidez omite a recorrente posição de isolamento, fragilidade ou subalternização das mulheres, para quem o problema poderá ser absoluto e incontornável, e reproduz a distância que sustenta a sobranceria e condescendência moral de muitos homens (mesmo que pais). A invocação do direito da mulher a decidir sobre o seu corpo é um argumento que, bramido isoladamente, corre o risco de reproduzir de uma outra forma a tradicional atitude de desresponsabilização de grande parte dos homens perante as dificuldades com que se confrontam as mulheres na maternidade e no cuidado de uma nova vida. A defesa da autonomia da mulher, da sua plena liberdade e adultez é indiscutível e será sempre tanto mais legítima e forte quanto reconhecer e atribuir ao homem os deveres e os direitos que ele tem na paternidade. Ignorá-lo é mais uma vez descarregar apenas sobre os ombros das mulheres a dramática responsabilidade de decidir sobre o que é verdadeiramente difícil. A Igreja tem, neste aspecto particular, uma responsabilidade maior. As suas preocupações fundamentais com a família exigem uma reflexão igualmente apurada sobre as responsabilidades conjuntas de mulheres e homens na concepção e cuidado da vida.

Infelizmente, pelas piores razões, o discurso oficial da Igreja está muito fragilizado para a defesa de abordagens à vida sexual e familiar que acautelem o recurso ao aborto. A moral sexual oficial da Igreja — e, em concreto, em matéria de contracepção — fecha todas as alternativas salvo a da castidade sacrificial. É um discurso que não contribui, de modo algum, para a defesa de uma intervenção prioritariamente preventiva, em que ao Estado fosse exigível um sistemático e eficaz serviço de aconselhamento e assistência no domínio do planeamento familiar e da vida sexual. Pelo contrário, o fechamento dos mais altos responsáveis da Igreja a uma discussão mais séria e aberta sobre a vivência concreta da sexualidade denuncia um persistente autismo, que ignora a sensibilidade, a experiência, o pensamento e a vida das mulheres e dos homens de hoje.

Em síntese, o recurso ao aborto é sempre, em última análise, motivo de um grave dilema moral. E é nessas circunstâncias de extrema dificuldade que achamos ter mais sentido a confiança dos cristãos na capacidade de discernimento de todos os seres humanos, em consciência, sobre os caminhos da vida em abundância querida por Deus para todos e para todas. Optar por uma reiteração de princípios universais, como o do respeito fundamental pela vida, confundindo-os com normas e regras de ordenação concreta das vidas é, além do mais, optar por uma posição paternalista, de imposição e vigilância normativas, e suspeitar de uma postura fraternal, de confiança e solidariedade, com os que, de forma autónoma, procuram discernir as opções mais justas. Partir para este debate com a certeza de que a despenalização do aborto é porta aberta para a sua banalização é abdicar de acreditar nas pessoas, em todas as pessoas, e na sua capacidade de fazer juízos morais difíceis. Não é essa abdicação que se espera de homens e mulheres de fé."

Ana Berta Sousa, José Manuel Pureza, Marta Parada, Miguel Marujo e Paula Abreu
[artigo originalmente publicado no Público, em 21 de dezembro de 2006; foto © Agnès Varda — Portugal, Póvoa de Varzim, 1956 (Sophia Loren Poster)] 

 

Fevereiro 17, 2024

Em defesa da vida. Porque se calam os bispos contra o Chega?

Miguel Marujo

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Este texto podia ir beber a um outro, de Henrique Raposo, no Expresso (8/1/24), no qual, quase para começo de conversa, o cronista nos dizia que um católico não podia votar no Chega “porque um católico no Chega é como um bloquista na especulação imobiliária: é uma contradição nos termos”. E explicava-se: “A obsessão nacionalista com os “portugueses de bem” ou com o “Portugal invadido” é a direta negação do bom samaritano e do Pentecostes, é a negação do discurso universal e humanista do Evangelho. O Evangelho está construído contra a imanência do sangue, contra o tribalismo, contra os totens de classe e de nação fechada. Acolher e integrar o estrangeiro é a essência do catolicismo, que é uma ponte entre classes e etnias; o catolicismo não é um muro, muito menos um castelo para defender numa lógica de seita de puros fechada ao mundo.”

Podia lançar mão de mais umas quantas palavras deste cronista, que já em 2019 tinha afirmado categoricamente, então na Rádio Renascença, ​“nem um voto cristão no Chega”, mas tenho antes que lamentar que estes textos não tenham suscitado qualquer adesão imediata dos membros da Conferência Episcopal Portuguesa, ao contrário de outros temas, sobre os quais os senhores bispos estão sempre muito prontos a dizer coisas.

O que a CEP ou os diferentes bispos diocesanos têm a dizer sobre o voto são formulações vagas sobre a necessidade de escolher quem defende “valores cristãos e evangélicos” (ignorando o atropelo evangélico que são muitas das ideias e propostas do Chega) ou “em defesa da vida” (levando a equívocos sérios, em que se apela ao voto num partido que defende o contrário da vida).

Sejamos claros: um partido que assenta a sua mensagem política no ódio e na divisão, que odeia o Outro e ataca os outros em função da sua pele e da sua origem, que defende a pena de morte ou a castração química, numa clara violação da defesa intransigente da vida, incluindo aos que falham gravemente, sem possibilidade de perdão, é um partido profundamente anti-evangélico, à luz da Bíblia e de qualquer texto essencial da Igreja Católica. E, no entanto, os bispos calam-se e não levantam a sua voz contra o apoio de católicos ao Chega. Pior: calam-se, perante a invocação sistemática, hipócrita e falsa que Ventura faz de Deus, da Bíblia ou da Igreja.

“A adesão ao populismo de muitos católicos privilegiados que compõem o sector fariseu”, como bem nota Raposo, devia ser combatida com discernimento e clareza pelos bispos (e padres e religiosas e religiosos). E não é.

Aliás, há maus exemplos que vêm de dentro, com setores ultraconservadores ditos católicos a insistirem que a defesa da vida se faz com posições como a “vida por nascer”, a “rejeição [da] eutanásia”; a “liberdade de educação”; a “oposição [à] ideologia de género”; a “proibição [de] barrigas de aluguer”; e o “combate à prostituição”.

Uma mistura de alhos com demasiados bugalhos para, mais uma vez, não ajudar a discernir, antes confundir. Como se a defesa das escolas católicas fosse primordial perante o ataque racista ao imigrante, que foge da guerra e da pobreza e apenas procura o nosso país para trabalhar e ter uma vida melhor – apesar de invisíveis. Como se alinhar na mentira desbragada de casas de banho únicas nas escolas (já agora: ninguém do Chega usa casas de banho nos comboios?) fosse mais importante que retirar apoios a quem quase nada tem (é disso que se trata, por exemplo, no rendimento social de inserção).

É assustador ver como os bispos se calam perante o desmando diário de falsidades, insultos e incêndios ateados por aquele partido, e sem merecer uma palavra de condenação, vivo repúdio, genuína repulsa por parte dos católicos, muitos dos quais ditos praticantes, e que batem tanto no peito. São autênticos vendilhões do templo, como bem descreve Raposo: “É por isso que o mais bíblico dos papas recentes, Francisco, causa tanto desconforto. Então não está no centro do evangelho a ideia de misericórdia para aqueles que estão nas margens? Está. Então porque é que causa tanta celeuma a empatia de Francisco para com os recasados, com os homossexuais, com os trans, com mães solteiras, etc, etc. etc.? Um católico que vota no Chega é um traidor do Evangelho.” Ámen.

 

Declaração de interesses: trabalho, conjunturalmente, como assessor de comunicação no atual Governo. Não me retira qualquer legitimidade, mas também por isso me socorri de alguém insuspeito como Henrique Raposo.
[Texto originalmente publicado no Sete Margens, a 14 de fevereiro de 2024; foto do Santuário de Fátima, na missa convocada pelos bispos por intenção das vítimas de abusos sexuais, em Fátima]

Fevereiro 16, 2024

Os extremismos são pasto dos fundamentalismos — religiosos e seculares

Miguel Marujo

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Duas notícias publicadas no mesmo dia, 10 de dezembro de 2023, na página inicial do 7MARGENS mostram cabalmente como os extremos continuam a tocar-se, esmagando a possibilidade de um caminho radical para um secularismo e uma laicidade que sejam completamente vividos, sem extremismos. Numa das notícias, o Presidente francês era criticado e atacado por todos – da extremíssima-direita à esquerda – por ter acolhido no Palácio do Eliseu uma cerimónia do Hanukkah, ouvindo o que nunca Maomé terá dito do toucinho. Na outra notícia, o óbvio pedido por um lorde de separação entre a Igreja oficial do reino e a coroa do Reino Unido recebido com sarcasmo e um liminar “não” a qualquer discussão séria.

A excessiva invisibilidade da religião na laïcité da República Francesa abre a porta à torrente de críticas a Emmanuel Macron. O jornal Muslim Times notou a contradição, em tempo de conflito aberto entre Israel e o Hamas: o uso da abaya (um vestido longo, usado por muçulmanas) foi proibido nas escolas francesas, com o [então] ministro da Educação [agora primeiro-ministro] francês a afirmar, sem qualquer nuance, que “a laicidade é a liberdade de emancipar-se através da escola”. Antes, Gabriel Attal tinha dito que ir à escola vestindo uma abaya era “um gesto religioso destinado a testar a resistência da República sobre o santuário secular que deveria ser a escola”. Este secularismo, acusa o jornal publicado no Reino Unido, só não é aparentemente posto em causa quando Macron assiste à missa com o Papa Francisco em Marselha ou acende “uma vela religiosa” no Eliseu — “tudo isto não é muito coerente”. Ou mesmo nada.

No Reino Unido, uma proposta do lorde liberal-democrata Paul Scriven para “desestabilizar a Igreja da Inglaterra” foi acolhida com protestos dos seus pares na Câmara dos Lordes, a câmara alta do Parlamento britânico. Esta lei pretende separar oficialmente a Igreja e o Estado, no país onde o monarca é o chefe da Igreja. Scriven disse o óbvio, para quem vive num país como Portugal: “Numa sociedade moderna, pluralista e secular, é um privilégio religioso bastante arcaico e injustificável” ter uma instituição religiosa “implantada no coração da nossa constituição, no coração da organização e gestão do Estado”. “A separação entre a Igreja da Inglaterra e o Estado já deveria ter sido feita há muito tempo.” Pois já.

O caminho é óbvio: nem tanto ao secularismo, nem tanto à religião. Em Portugal, com a Liberdade Religiosa a ser celebrada nos espaços do Parlamento, sublinha-se o equilíbrio que alguns insistem em desequilibrar: a laicidade do Estado e o secularismo da sociedade não são postos em causa por apoios do Estado a eventos religiosos, nem a religião se vive enfiada na sacristia ou fica fechada no espaço dos cultos.

É óbvio que alguns poucos insistem em apropriar-se da religiosidade no espaço da política, invocando Jesus em debates políticos, quando a sua prática partidária e pública exclui o outro e ataca o pobre, o refugiado, o migrante, o asilado, o homossexual ou o transsexual. Se uma Igreja, como a católica, deve evitar colar-se a partidos, quaisquer que sejam, também deve ser clara e profética: apontando que estes que agora invocam Deus são vendilhões do templo, e apenas procuram o oportunismo do voto. (Sim, falo do Chega, que devia ser denunciado pelos bispos católicos, como fizeram de forma clara os bispos da Baviera, Alemanha, em relação aos neonazis da AfD.)

E também é óbvio que há outros que invocam uma espécie de neutralidade “enverhoxhista” (lembrando o antigo ditador albanês que consagrou o ateísmo como “religião” de estado), como se a liberdade de expressão religiosa estivesse diminuída no espaço público.

A conclusão é necessária. Se a França laica e secular convivesse saudavelmente com as religiões, não berrava contra uma cerimónia religiosa no Eliseu, porque haveria pluralidade. (Assim, houve apenas um aproveitamento político de apoiantes de uma causa próxima da guerra.) Todos diferentes, e todos iguais — e esse caminho é o que o Reino Unido também devia seguir, recusando uma igreja oficial e oficializando antes a separação entre a Igreja e o Estado. Os extremismos são pasto dos fundamentalismos. Os religiosos e os seculares.

 

[artigo revisto a partir do original publicado no Sete Margens, em 13 de dezembro de 2023]

 

Janeiro 22, 2024

As prendas proibitivas de governantes: o fato árabe, o alaúde, o drone, os relógios e as joias

Miguel Marujo

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Em Goa, Índia, em janeiro de 2017, António Costa recebeu o prémio da diáspora. Por se tratar de uma distinção pessoal, este prémio não está incluído nas ofertas que o primeiro-ministro tem à guarda do Estado. 

 

Um fato árabe, várias gravatas de marca e uma mola de gravata, botões de punho, relógios e joias. O leitor não se engane: não abrimos nenhum armário e gavetas de um qualquer príncipe saudita. Trata-se apenas de uma pequena amostra das prendas que foram recebidas por membros do Governo e que estão guardadas num cofre do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).

Estes presentes guardados naquele cofre - e noutros locais dos diferentes ministérios - são o lado visível da resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2016, que descodificada se traduz no "código de conduta do governo" (e saltou de novo para a ordem do dia com a sua alegada violação pelo ministro Vieira da Silva no "caso Raríssimas"), no qual se "esclarece em que condições e até que valores os membros do Governo ou dos respetivos gabinetes podem aceitar ofertas ou convites de entidades privadas".

Como gato escaldado de água fria tem medo, o Governo resolveu arrefecer eventuais suspeitas na aceitação de ofertas - depois de serem conhecidas as viagens pagas pela Galp, ao Euro de futebol, a três secretários de Estado - com a aprovação deste código a 8 de setembro de 2016.

No artigo 10.º, que se refere a "convites ou benefícios similares", refere-se que "os membros do Governo abstêm-se de aceitar, a qualquer título, convites de pessoas singulares e coletivas privadas, nacionais ou estrangeiras, e de pessoas coletivas públicas estrangeiras, para assistência a eventos sociais, institucionais ou culturais, ou outros benefícios similares, que possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções".

Quem diz convites, também diz bens. No artigo 8.º repete-se quase textualmente a mesma fórmula, reportando-se a ofertas "de bens, consumíveis ou duradouros, que possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções". E logo aí se diz que "entende-se que existe um condicionamento da imparcialidade e da integridade do exercício de funções quando haja aceitação de bens de valor estimado igual ou superior a 150 euros", valor idêntico para os convites.

Há exceções de prendas que podem ser aceites, admitidas pela lei. Mas esses bens acabam confiados ao Estado. "Todas as ofertas" superiores a 150 euros, "que constituam ou possam ser interpretadas, pela sua recusa, como uma quebra de respeito interinstitucional, designadamente no âmbito das relações entre Estados, devem ser aceites em nome do Estado".

Manda a educação e a diplomacia que não se recusem estas prendas, mas o seu destino (neste pouco mais de um ano de aplicação do código) é o depósito num cofre ou num armário, com usos pontuais: a exposição numa vitrina num átrio de edifícios ministeriais; uma ou outra peça decorativa em gabinetes.

No edifício da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), um simples armário de escritório guarda os 30 artigos oferecidos (até 27 de outubro) aos membros do governo integrados na PCM "ou a quem esta presta apoio", como o gabinete do primeiro-ministro. A maior parte destas prendas foram dadas a António Costa. E há de tudo: um alaúde dourado que Marrocos entregou numa caixa; um serviço de jantar para 12 pessoas, oferecido pela República da Colômbia; um cubo forrado a azulejo, com o título "Comunidade das Bandeiras", da autoria de João Henrique, dado pelo Brasil; há peças decorativas de cerâmica de Sargadelos de Dom Quixote e Sancho Pança, que o reino de Espanha ofereceu a António Costa; mas também há um faqueiro Cutipol para quatro pessoas que a Câmara Municipal de Guimarães deu ao primeiro-ministro, do modelo Goa Blue Gold.

O reino do Qatar tem uma predileção especial por relógios: ofereceu vários de marcas luxuosas aos membros do gabinete de Costa, enquanto para o primeiro-ministro ofertou uma caixa com um relógio de secretária. Estão guardados nas respetivas caixas no armário do edifício da Gomes Teixeira.

Uma escultura de figura humana de madeira preta, de artesanato moçambicano, decora o gabinete da ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, a quem foi oferecida pela República de Moçambique. Um tabuleiro de xadrez ofertado pela República do Paraguai a António Costa já esteve exposto na entrada do edifício da Presidência do Conselho de Ministros.

As ofertas utilitárias não têm, por enquanto, utilidade - há um telemóvel enfiado no armário. Só no caso do drone Phantom 3 Advanced já foi atribuído um destino: a Polícia Marítima vai recebê-lo em breve, para auxiliar na sua tarefa de fiscalização e policiamento. As duas prendas têm origem chinesa.

No caso de bens perecíveis, são encaminhados para instituições de solidariedade social. O Centro Social Paroquial São Francisco de Paula, em Lisboa, nas proximidades do Palácio das Necessidades, recebeu um cabaz de Natal que o consulado honorário de Portugal em Palm Coast, na Florida, ofereceu ao secretário de Estado das Comunidades Portuguesas.

Os embaixadores em Lisboa gostam de oferecer gravatas: o ministro Augusto Santos Silva recebeu uma Hermès do representante do Koweit (que também deu idênticas peças ao secretário de Estado da Internacionalização e ao chefe do Protocolo) e uma outra Salvatore Ferragamo do representante diplomático italiano.

Sir Ban Yas, do Abu Dhabi, surge identificado no registo de ofertas consultado pelo DN no MNE como o ofertante do fato árabe (uma túnica) ao ministro dos Negócios Estrangeiros. Percebe-se que esteja arrumado sem que se lhe dê uso. Também guardados estão os botões de punho e a mola de gravata Cartier que o ministro dos Negócios Estrangeiros do Azerbaijão ofertou ao seu homólogo português. Como na Presidência do Conselho de Ministros, no cofre do Instituto Diplomático, há ainda peças de escultura e estatuetas, quadros, jarras e jarrões.

Num futuro, estas peças poderão fazer parte do espólio de um eventual museu diplomático, mas por enquanto a ideia está no papel.

Para já, não é possível ver ao vivo estas ofertas, que por vezes parecem ter uma carga política. Numa altura em que as relações entre Lisboa e Luanda conhecem momentos tensos, o governo angolano ofereceu a Santos Silva uma estatueta de madeira do rei Ekuikui II, "símbolo da bravura e da coragem contra a ocupação colonial portuguesa". Subtilezas da diplomacia, só redimidas com a oferta de uma árvore à secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação.

 

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, a 25 de dezembro de 2017; na foto, relógio Maserati oferecido pelo Qatar, do arquivo Global Imagens]

Dezembro 18, 2023

E se celebrássemos o Natal como neste funeral?

Miguel Marujo

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As imagens que nos chegaram da Igreja de St. Mary of the Rosary, em Nenagh, Irlanda, deste dia 8 de dezembro, merecem que as guardemos: há aquelas de Nick Cave sentado ao piano, com a companhia de outros músicos, a cantar A Rainy Night in Soho, há um outro momento em que Glen Hansard e Lisa O’Neill interpretam Fairytale of New York, entre sorrisos e danças na plateia. E palmas, muitas palmas, num e noutro momento.

 

 

O funeral de Shane MacGowan, que morreu no dia 30 de novembro, foi uma festa, emotiva, como se ouve no piano e na voz de Nick Cave, e uma verdadeira celebração da vida, quando se vê a alegria de quem chora um dos seus na mais bela canção de Natal que é Fairytale of New York. Este funeral do vocalista da banda irlandesa The Pogues, que tinha nascido no dia de Natal de 1957, só podia ser assim: a vida celebrada pela música e pela dança. Um bonito tempo de Advento.

 

 

Já sabemos como é: este tempo que antecipa o Natal leva-nos a uma correria por entre as luzes, compras, jantares, fogareiros de castanhas, demasiados carros e a inevitável chuva. E em cada esquina, cada canto, cada loja, tropeçamos numa torrente de canções de Natal, debitadas muitas vezes em decibéis desproporcionados.

O mais difícil no Advento é conseguir escapar a All I Want For Christmas is You, a canção de Mariah Carey que nos apanha desprevenidos na rádio ou no shopping – e há concursos pela net a ver quem está mais tempo sem ouvir este tema de 1994. No meu concurso pessoal junto outra canção, já de 1984, Last Christmas, dos Wham!, e aqueles versos iniciais que me fazem sair do sítio onde estou: Last Christmas I gave you my heart/ But the very next day you gave it away/ This year, to save me from tears

Desculpem-me os fãs, mas para nos safarmos de lágrimas, este ano, podemos mesmo recuperar o exemplo do funeral de MacGowan e alinhar em escolhas menos óbvias para uma playlist que fuja a Mariah ou aos Wham!.

 

 

Podemos começar por recuperar os Pogues e dançar com Fairytale of New York. E para ouvirmos os clássicos de Natal, como Silent Night, Amazing Grace, o Holy Night, Let it Snow ou Jingle Bells, e tantos outros, o melhor cartão-de-visita é a irreverência de Sufjan Stevens, que em tempos publicou duas caixas com cinco discos, cada uma, e cerca de 100 canções, nas quais o americano ofereceu ao mundo o que já tinha dado aos seus familiares e amigos. Cansado de prendas sem sentido, fez o que sabe melhor: gravou temas de Natal em produções caseiras com que presenteou os seus e em 2006 e 2012 reuniu os discos para quem quisesse ouvir (é possível fazê-lo nos serviços de streaming). Como escreveu então a BBC, Sufjan Stevens tornou o Natal ainda melhor, entre polifonias e sussurros, no meio de explosões de alegria ou de um tempo melancólico, em que o tradicional encontra a mais estranha das excentricidades, como definiu um crítico.

Também o Vince Guaraldi Trio pegou nos clássicos e tocou-os como sabe tão bem em A Charlie Brown Christmas (1965). Sem excentricidades, mas também sem reverências, os Peanuts são conduzidos pelos ritmos do jazz num álbum que é uma pérola de Natal, recuperada em vinil nos anos mais recentes.

 

 

Regressando à pop, procuremos outra pérola: A Very Special Christmas (de 1987) propõe-nos sonoridades que vão do rock ao rap, trazendo-nos leituras mais ou menos reverenciais, como Santa Baby, um fascinante exercício pop de Madonna, os Run D.M.C. a dispararem Christmas in Hollis, os U2 a despacharem Christmas (Baby Please Come Home) ou Bruce Springsteen e a sua E Street Band a desejarem Merry Christmas Baby.

Se a música salva, o Natal não tem de ser um funeral de má música. Shane deixou-nos um belo testemunho, com Fairytale of New York, e com a alegria das suas cerimónias fúnebres.

 

[artigo originalmente publicado no Ponto SJ, em 15 de dezembro de 2023]