Julho 07, 2024
Lembra-me um céu aberto, outro fechado. Morreu-nos Fausto
Miguel Marujo
Fausto Bordalo Dias (1948-2024)
Fausto Bordalo Dias, que todos nos habituámos a chamar pelo primeiro nome, morreu “de doença prolongada”, na segunda-feira de madrugada, dia 1, sem aviso prévio, porque nunca estamos preparados. Músico, compositor, cantor, talvez maldito, como cantava na “ópera mágica” que nos deixou, Fausto foi o homem que nos levou por um rio acima, para melhor resgatar a música tradicional portuguesa dos mares de mediocridade em que tantas vezes se mete. Fausto foi um génio a cantar o herói anónimo, fez da “fúria dos enganados” e da “razão dos maltratados” uma alquimia de sons e poemas, lembrando miseráveis, penitentes, esquecidos e pobres, o aperto em que estavam todos eles, marinheiros voluntários em infernos malditos infinitos – longe das gestas dos poderosos.
Nascido no mar, a bordo do navio Pátria, em 26 de novembro de 1948, entre Portugal e Angola, também por isso foi sempre o mar que o chamou. Por este rio acima (1982) é uma das obras mais geniais da música portuguesa de sempre, a partir dos relatos de Fernão Mendes Pinto em Peregrinação, que o divertia imenso e era o seu livro de cabeceira. “Em 1979, comecei a compor Por Este Rio Acima. Eu fiz parte da diáspora, os meus pais partiram, isso com certeza que me condicionou, mas não foi um ato consciente, sabe? Eu dei conta de mim a fazer aquilo sem saber porquê.”
Obra-prima, em qualquer parte do mundo, Por Este Rio Acima é o primeiro volume de uma trilogia que nos trouxe o olhar desses muitos que a história teimou em esquecer, e se prolongou por outras viagens com Crónicas da Terra Ardente (1994) e Em Busca das Montanhas Azuis (2011), que foi também o seu último trabalho. Estas viagens trazem morte e dor, escravatura e tortura. “Nas minhas músicas, tentei encontrar o sentido do que a minha Pátria fez, durante os Descobrimentos. Porque me interessava compreendê-lo e adaptar esse sentido aos tempos actuais. Houve quem procurasse apenas glorificar. Eu glorifico o que há para glorificar, mas também conto o outro lado, o da gente que falhou e também matou”, explicava-se em 2011, numa entrevista à Visão.
Em todas as suas obras, as letras são tecidas com uma sabedoria e uma cultura que fazem de cada verso uma paleta de histórias e significados. Em todas as canções, as composições revelam um apurado gosto pela música tradicional, que se cruza com sonoridades africanas, uma e outras sempre reinventadas, e as orquestrações elevam esse gosto a uma polifonia de vozes e instrumentos que fazem destas canções património de todos. Ao ouvir muitas destas composições, é impossível não recordar Sérgio Godinho e José Mário Branco (1942-2019), parceiros e cúmplices de muitas canções, de uns e outros, que se juntaram para Três Cantos(2009), um projeto de palco que ficou registado em disco. Sorte a nossa.
Os caminhos de Fausto
O percurso de Fausto inicia-se em Angola, com os Rebeldes, mas é já em Lisboa que edita o seu primeiro disco, homónimo, que lhe valeu o Prémio Revelação, da Rádio Renascença. No programa Página Um, que passava na emissora católica, o “novato” era um dos “cantautores prediletos”, como sinaliza Luís de Freitas Branco em A Revolução antes da Revolução (Zigurate, 2024). Este musicólogo afirma que “o álbum Fausto apontava um caminho diferente – e porventura mais viável – para o rock português: a integração com a canção de intervenção”. Nem um, nem outro fariam caminho nos caminhos de Fausto: o rock caiu em desuso na sua música e a canção de intervenção foi chama que se esboroou nos finais dos 70, passados os dois primeiros discos em liberdade, Pró que Der e Vier (1974) e Beco sem Saída (1975), e a fundação do GAC – Grupo de Acção Cultural, em sua casa, com José Mário Branco, Tino Flores e Afonso Dias.
A intervenção construiu-se de outro modo, ganhou matizes, fez-se subtil, tornou-se irónica, dispensando a palavra de ordem: desembarcou primeiro em Madrugada dos Trapeiros (1977), que inclui Rosalinda, uma das mais icónicas canções do repertório de Fausto, continuou com Histórias de Viageiros (1979), e já aí o barco saía (para) Por este rio acima. Há 12 álbuns no percurso de cinco décadas de Fausto, e a intervenção fez-se com o tal cantor maldito. A Ópera Mágica do Cantor Maldito (2003) é, porventura, a sua obra menos amada, mas mantém o mesmo olhar para a música e para a palavra, com que Fausto preservou um dos mais belos conjuntos de originais da música portuguesa. Em pleno ano da troika de 2011, Fausto dizia, na referida entrevista, que esta ópera era o seu regresso à canção de protesto e de denúncia, oito anos antes de o FMI e parceiros aterrarem na Portela.
A trilogia das Descobertas foi intercalada por outros discos que merecem a audição: o belíssimo O despertar dos alquimistas (1985, o difícil álbum depois da sua obra maior), Para além das cordilheiras (1987) e A preto e branco (1988), que permitem completar uma história única e muitas vezes subversiva. “Lembra-me um sonho lindo, quase acabado”, canta Fausto, num dos seus mais belos poemas – mas não se acaba a música, o legado maior de Fausto Bordalo Dias. “Lembra-me um céu aberto, outro fechado.” Por todos os rios acima.
[artigo originalmente publicado no 7MARGENS, de 1 de julho de 2024]