Outubro 25, 2024
Músicas para calar as armas
Miguel Marujo
A capa do disco Passion Sources, coletânea organizada por Peter Gabriel.
No Afeganistão, a música foi proibida, e as mulheres nem em casa podem cantar. Os talibãs têm medo da música, e ainda mais da voz das mulheres.
Há uns anos, por causa de uns cartoons, houve quem sublinhasse a superioridade da civilização europeia e ocidental, e há quem continue a grunhir contra a vida de pessoas de outras paragens ao nosso lado. Nessas alturas, procuro exemplos dessa superioridade — e são muitos dizem-nos, e quase nos convencem: o tratamento das mulheres, a perseguição política e religiosa, as ditaduras, a pobreza classista. Mas será assim? Há um filme egípcio, “Al-Massir” (O Destino), que já, em 1997, nos colocava as questões de hoje, de amanhã, a partir do confronto de ideias entre moderados e radicais nos califados andaluzes do… século XII. Já então o confronto de civilizações, com guerras e aparentes superioridades, se desenhava nos céus da Europa.
Também há quem diga que Johann Sebastian Bach é o maior compositor de todos os tempos. Mas vacilo quando ouço Prélude de la Partita pour Violin nº 3 precedido de Pepa Nzac Gnon Ma. Estou a meter no mesmo saco Bach e um tema tradicional gabonês, interpretado por Elugu Ayong?! Sim, estou — deixem-me blasfemar. Na música, descobrimos, desarmados, que Bach desenha uma melodia que se entrelaça na perfeição com os sons da selva africana, vozes, percussões, violoncelo, música, beleza e a dança do povo Fang, do norte do Gabão, derrotando discursos de falsas superioridades civilizacionais. (Ouçam então Lambarena — Bach to Africa, de 1995.)
Arrisquemos nova pauta, antes de retomar a partitura: numa altura em que se democratizou o gosto de viajar, a bagagem não tem lugar para a música — mais ainda quando o streaming já praticamente derrotou o CD. Sobra a nostalgia do vinil. A coisa boa da globalização (e do streaming) é o mundo todo ao virar da esquina na internet.
Deixem-me fazer uma rápida divagação, que não é para mostrar apressados saberes enciclopédicos, mas ajuda a compor o tema — e a desenhar uma geografia contra o ódio. Pode começar-se a viagem com o senegalês filho de pescador Baaba Maal em Call to Prayer ou escutar em silêncio os ventos andinos de um Kyrie da Misa Criolla, tropeçar num casamento klezmer dos Muzsikás, percorrer os desertos sufis com o afegão Mohammad Rahim Khushnawaz ou o paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, visitar os banhos do Istanbul Oriental Ensemble ou cair nos braços de Sheila Chandra e das vozes búlgaras em polifonia com António Zambujo. Mas também ouvir os desejos de paz da palestiniana Haya Zaatry em Rahawan.
Num tempo em que nos impingem que quem é diferente (apenas por ser migrante, refugiado, asilado, estrangeiro) deve ficar algures esquecido no seu canto, ou à porta do muro que levantamos ou escorraçado para longe da Europa, talvez possamos reconhecer que estes sons nos levam antes em peregrinação. O que esta viagem nos desenha não é da superioridade das civilizações. É da superioridade da alteridade, da descoberta do Outro, a vitória da civilização do Amor. Mas isto não é música que muitos queiram para estes dias.
Num tempo em que nos impingem que quem é diferente (apenas por ser migrante, refugiado, asilado, estrangeiro) deve ficar algures esquecido no seu canto, ou à porta do muro que levantamos ou escorraçado para longe da Europa, talvez possamos reconhecer que estes sons nos levam antes em peregrinação.
Elias Chacour, que é cristão, palestiniano, árabe, com cidadania israelita (para contrariar as ideias feitas e as definições fechadas), disse-nos: “A palavra guerra significa em hebraico aproximar-se demasiado um do outro, a ponto de não se conseguir respirar. A paz significa afastar-se um pouco, para que eu possa respirar. Hoje, sufocamos.” Podemos descobrir a música afastados apenas o suficiente para respirarmos. E podemos perceber que o mundo precisa de música, em vez de armas.
Dois discos que só aparentemente não falam de paz
Quando Baaba Maal, filho de pescador, cantor e violinista senegalês, nos convoca para a oração, a voz elevada a uma transcendência emocionante, no ecrã sucede-se a representação da Última Ceia, momento fundador do cristianismo. É, só aparentemente, uma provocação: um cantor educado na fé muçulmana ilustra a sonoridade do momento em que Jesus se senta à mesa com os seus discípulos, antes da sua morte.
É esta também a provocação maior dos dois discos que aqui trazemos, que incluem este Call to Prayer, de Baaba Maal: Passion Sources é uma coletânea que reúne cantores e músicos de diferentes regiões de África, Médio Oriente e Ásia, compilada por Peter Gabriel (o autor da icónica canção anti-apartheid Biko) para acompanhar o seu álbum Passion, a música que compôs para o filme de Martin Scorsese A Última Tentação de Cristo – outra provocação, que pouco importa para este (con)texto. Um e outro disco são peças notáveis que confluem, inevitavelmente, numa linguagem comum, apesar da dispersão geográfica, que é a da música.
Estes dois álbuns não nos falam, aparentemente, da importância da paz. Só aparentemente, também. Na sua amálgama de origens, da Etiópia ao Paquistão, de Marrocos ao Egito, da Arménia à Guiné, passando pela Índia, Irão, Senegal e Turquia, e na sua diversidade de sonoridades, entre percussões e guitarras, vozes que parecem falar com Deus, Peter Gabriel situa todas estas afinidades na Terra Santa da época de Jesus, pintando uma mensagem de cooperação e sem barreiras que rompe com as diferenças.
“Scorsese tinha pedido um novo tipo de partitura que não fosse nem antiga nem moderna, que não fosse um pastiche, mas que tivesse referências claras à região, tradições e atmosferas, mas que fosse em si mesma uma coisa viva”, explicou Gabriel sobre o seu trabalho de composição. Esta coisa viva cruza Nusrah Fateh Ali Khan, uma voz qawwali espantosa, das mais respeitadas no mundo islâmico, à exuberância rítmica de kongas e djembês dos guineenses Fatala, e termina com uma Song Of Complaint, um tema de origem arménia, que é a adaptação instrumental de The Song Of The Emigrant. Como descreveu Peter Gabriel, “a música é tocada num instrumento de palheta dupla chamado doudouk. Esta é uma versão instrumental de uma canção de dor que descreve a emigração forçada de uma pessoa devido à sua pobreza”.
Capa do disco de Peter Gabriel, Passion (Music for The Last Temptation of Christ)
É impossível não ver nesta música uma banda sonora também para o que se passa no Médio Oriente, de Israel ao Território Palestiniano Ocupado, passando pelo Líbano e Irão, canções de dor que pedem a cada nota por uma emergência de paz.
Peter Gabriel, Passion (Music for The Last Temptation of Christ), ed. Real World Records
Vários, Passion Sources, ed. Real World Records
(disponíveis no Spotify e outras plataformas digitais)
— textos originalmente publicados no PontoSJ e no 7Margens, a 18 e 6 de outubro de 2024, respetivamente, e aqui reunidos numa única versão.