Nick Cave está de regresso à gravação de um álbum com os seus Bad Seeds, depois de Ghosteen (2019). A notícia foi dada pelo próprio, emThe Red Hand Files, o site que alimenta com respostas à correspondência dos seus fãs.Numa carta publicada a 15 de maio, Nick Cave anuncia “algumas semanas de folga” do site por, a partir desse dia, entrar em estúdio e trabalhar “nas músicas do novo disco do Bad Seeds”.
Antecipando que “as músicas estão a soar ótimas”, o compositor, cantor e músico australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não desvela muito mais sobre como vai ser esse disco. Neste intervalo, Nick não tem estado parado: gravou sozinho, numa emissão ao vivo porstreaming, o discoIdiot Prayer(Nick Cave Alone at Alexandra Palace), em plena pandemia (2020), escreveu o libreto para uma ópera de câmara do belga Nicholas Lens,L.I.T.A.N.I.E.S(2020), juntou-se a Warren Ellis, seu companheiro nos Bad Seeds, para gravar um dos grandes álbuns do ano de 2021,Carnage, e acompanhou o mesmo Ellis em três bandas sonoras:La Panthère des neiges(2021),Dahmer — Monster: The Jeffrey Dahmer StoryeBlonde(ambas em 2022); reuniu os seusB-Sides & Rarities Part II (2021), com os Bad Seeds; por fim, escreveu e leuSeven Psalms(2022) num disco tão breve quanto intenso. E ainda teve tempo para uma longa conversa em livro, com o jornalista Seán O’Hagan, cujo título é uma perfeita síntese da vida, obra e música de Nick Cave:Fé, Esperança e Carnificina(ed. Relógio d’Água, 2022). No meio disto tudo, passou por duas vezes no verão do ano passado pelos palcos do Porto e de Lisboa.
Respiremos: este enunciado burocrático quase esconde o caminho que Cave tem feito, nestes anos mais recentes, no qual parece ter pressa em dialogar com Deus. O músico perdeu dois filhos nos últimos anos, e — a partir da morte de Arthur, em 2015, aos 15 anos — a sua criação artística assemelhou-se a uma erupção violenta em que assomam o amor, a dor, a morte e Deus. Se estes eram temas já recorrentes na sua obra, agora Nick Cave sintetiza o que o guia: “Assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está.”
No livroFé, Esperança e Carnificina, o australiano reconhece: “As canções que escrevo hoje em dia tendem a ser canções religiosas no sentido mais lato do termo. Essas canções comportam-se como se Deus existisse. Essencialmente, argumentam a favor da própria crença, pese embora sejam às vezes ambivalentes ou inconsistentes quanto à existência de Deus.”
E que Deus é este, então? Há tempos, na troca de correspondência com os fãs, à pergunta “o que é Deus?”, a resposta foi assertiva: “Deus é amor”, adiantando que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. E demora-se a explicar: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos dessa ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”
O coração partido revela-se de muitos modos. E neste caso salva — como a música, já se sabe. “Para mim, a canção de amor existe, em última análise, para preencher o silêncio entre nós e Deus, para diminuir a distância entre o temporal e o divino.”
Está instalado o debate – e o medo e a incerteza e a ignorância e a excitação. Tudo à vez, e tudo em separado: a inteligência artificial, que já anda cá há bastante tempo, irrompeu no nosso quotidiano como uma ferramenta ao alcance de todos. Já não é da ordem da ficção, já não é uma coisa de filmes (AI – Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, é de 2001), é obra para nos inquietar.
OChatGPTé uma dessas ferramentas mais reconhecíveis, mas nestas coisas logo se multiplicam que nem cogumelos, e para todos os gostos: os imediatamente comestíveis, aqueles que exigem domínio, nas mais variadas áreas. Filmes, canções, entradas de enciclopédia, até livros ou notícias, eventualmente remissões e orações, são passíveis de criação pela chamada inteligência artificial.
Perante este novo mundo, fica a dúvida se será admirável, como descrevia Aldous Huxley em 1932. Antecipa-se a extinção de profissões, uma artificialização da criação. Será assim? Um dos mais estimulantes criadores modernos na música atual, o islandês Ólafur Arnalds, que faz uso abundante de maquinaria e sons eletrónicos, mesmo nas suas produções mais ambientais ou sinfónicas (só para facilitar a leitura), enfrenta a questão, numa conversa no final de um concerto registadona paisagem seca de Hafursey, um inselbergue na Islândia.
Para um compositor que afasta a vontade de se aborrecer a fazer o que faz e ficar amarrado a uma só coisa, a inteligência artificial “começa a tornar-se um problema”. “Já se está a tornar um problema, mas é mais um problema para a indústria do que para mim, enquanto artista.”
Ólafur Arnalds explica aquilo que é a diferença entre cópia e o criador. “A arte não é apenas a música, tem de ter um sentido, tem de ter um propósito. Claro que a inteligência artificial pode copiar a minha música dentro de cinco anos, mas a inteligência artificial não está a tentar dizer-te nada, não tem nenhuma mensagem para ti, é só uma cópia, não há nenhuma originalidade, não há qualquer substância nem nenhum sentido — e isso é o que procuramos na música, é uma ligação humana, do que sentimos através das mensagens e das expressões, do que vivemos, como eu a tocar o piano aqui, é uma ligação entre mim e ti. A inteligência artificial é apenas uma cópia disto tudo.”
(O islandês fala sempre em “AI”, acrónimo para inteligência artificial, sem necessidade de tradução. Até com este artifício, a inteligência artificial parece querer poupar-nos tempo, simplificando…)
Um fã de Nick Cave — e desculpem-me regressar a ele, mas por estes tempos o músico australiano é também um dos mais interessantes a refletir sobre a arte e a criação — propôs-lhe uma letra “à Nick Cave”, feita com recurso aoChatGPT. Para o frontman dos Bad Seeds, esta letra é “uma porcaria”. Cave notou, nesse texto de 17 de janeiro, que “oChatGPTestá apenas na sua infância, mas talvez esse seja o horror emergente da IA — o de que estará sempre na sua infância, pois terá que ir sempre mais longe e essa direção é sempre para frente, sempre mais rápida. Nunca pode ser revertida ou desacelerada, pois move-nos em direção a um futuro utópico, talvez, ou à nossa destruição total. Quem pode dizer qual?” À sua questão, Nick antecipa a resposta: “A julgar por essa música ‘ao estilo de Nick Cave’, não parece bom.” assume: “O apocalipse está a caminho. Essa música é uma porcaria.”
Mais tarde, em março, numa entrevista àNew Yorker, Nick Cave surpreende-se por “haver pessoas inteligentes que acham o ato criativo tão mundano, que pode ser replicado por uma máquina”. “Sinto-me insultado por isso.” Para este artífice da música, os artifícios da criação são outros: “Não há nenhum motivo para se inventar uma tecnologia que possa imitar o ato criativo mais belo e misterioso. Especialmente no que toca a escrever canções. O que há de bom em compor uma canção, é que te diz algo sobre ti que não sabias antes. Não dá para imitar isso.”
Num futuro próximo, já ao virar da esquina, o caminho da criação e da criatividade poderá tropeçar em muita fake art ou em mais fake news. Mas nenhuma inteligência artificial substituirá a visceralidade das composições de Ólafur Arnalds ou Nick Cave, e de tantos e tantos outros artífices. Nada mais óbvio, nada mais humano.
O gajo insiste em semear as melhores bad seeds deste mundo — de fato negro, camisa branca, fucking obrigado e uma noite visceral, apocalíptica e cheia de raiva e amor, há contradições maiores, e sobe ao palco à hora certa e logo nos pede que nos preparemos, get ready for love, e nem o alinhamento igual ao da véspera em Málaga, que vamos antecipando no pequeno ecrã, retira uma linha à surpresa de uma interpretação emotiva, que se sente na voz, no humor, nos parabéns à Paula, nos olhos que se emocionam, I need you, 'Cause nothing really matters, I need you, Just breathe, just breathe, no coração que bate, motherfucker, bum-bum-bum, é um tiro e outro e outro, e é sangue que bombeia o coração, sentes o coração bater, pergunta-nos, e há a história que ele nos conta de uma rapariga, como se fosse a primeira vez, e uma e outra vez que ele respira, ao piano, Come sail your ships around me, And burn your bridges down, sempre esta proximidade, abraços e regressos, That she will keep returning, Always and evermore, Into my arms, olhares e ficar a seu lado, I am beside you, I am beside you, Look for me, look for me, esperando sempre o regresso, talvez de um filho pródigo, And it's bringing my baby right back to me, Well there are some things too hard to explain, e depois os olhos marejados, e o obrigado, Lisboa, para sacudir o piano, a tristeza, para logo abrir os braços como o profeta bem acolhido nesta casa, o pastor que exorciza demónios e vergonhas, Tupelo's shame, O God help Tupelo!, um culto em que se sabe ao que se vai e mesmo assim se surpreende, e a banda que é um bando de amigos acólitos e o coro saído daquela igreja que dança, bate palmas, grita aleluia, faz a festa, é uma festa, e é uma fé enorme esta, entre as descargas das sementes ruins e a voz que vocifera just breathe, just breathe, e todos respiramos, bebemos deste sangue e deste cálice.
Não me peçam que saiba descrever com palavras precisas a emoção maior que foi (que é) este concerto de Nick Cave & The Bad Seeds — no seu regresso a Lisboa. Foi o último desta fucking digressão de três meses pela Europa. Nunca sairá da nossa memória. Fucking, Nick, bem nos divertimos.
A mensagem é curta e grossa: “For fuck’s sake, enough of the God and Jesus bullshit!” – a tradução pode ser suavizada, ou carregada nas tintas. Dada a ira do leitor de Nick Cave, o tom será mais o calão forte que a interjeição zangada. “Caramba! Chega desta treta de Deus e Jesus!” (traduzamos assim).
O cantor, músico e compositor australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não responde logo a Jason, de Londres. À pergunta irada, Nick Cave junta outras questões, feitas por Lorraine, de Berlim, Alemanha: “Quais são os seus pensamentos sobre a liberdade de expressão? Acha que é um direito?” – e é por aí que ele vai na sua resposta, a dissertar sobre a liberdade de expressão…
Já aqui falámos sobre este site de conversa que Nick Cave criou e alimenta: em The Red Hand Files, o australiano responde a questões dos seus fãs e leitores, e estas vão das mais prosaicas sobre a música e os discos, até às que aprofundam questões complexas e filosóficas.
A 9 de junho, Sue, de Paris, França, perguntou-lhe: “Na tua opinião, o que é Deus?” – tema recorrente, já se sabe, na discografia e na correspondência de Nick Cave. A resposta do australiano é assertiva: “Deus é amor”, e explica que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. A explicação é demorada: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos da ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”
Talvez valha a pena recordar, neste ponto, que muito recentemente, em maio, Nick Cave perdeu mais um filho, Jethro, de 31 anos, depois de em 2015 ter morrido, com 15 anos, Arthur — e esta primeira morte marcou de forma indelével os trabalhos do músico nos últimos anos.
Com esta reflexão sobre Deus, Cave disserta sobre o bem e o mal, e no fundo está a revelar as inquietações de um pai que perdeu dois filhos. “Não há um problema do mal. Há apenas um problema do bem. Por que é que um mundo tantas vezes cruel insiste em ser belo, em ser bom? Por que é que é preciso uma devastação para o mundo revelar a sua verdadeira natureza espiritual? Não sei a resposta para isto, mas sei que existe um tipo de potencialidade para além do trauma. Suspeito que o trauma seja o fogo purificador através do qual realmente encontramos o bem do mundo.”
Na resposta aos seus fãs, Nick Cave confessa-se — com uma oração, descobrimos nós. “Todos os dias eu rezo para o silêncio. Eu rezo a todos eles. Todos eles que não estão aqui. Nesse vazio, eu despejo todo o meu desejo, desejo e necessidade, e com o tempo essa ausência torna-se potente, viva e ativada com uma promessa. Essa promessa que fica dentro do silêncio é beleza o suficiente. Esta promessa, neste momento, já é espanto suficiente. Esta promessa, agora mesmo, é Deus suficiente. Esta promessa, agora, é o máximo que podemos suportar.”
A liberdade de criar
Esta carta a Sue terá levado o londrino Jason a dizer que estava farto das “tretas” sobre Deus e Jesus. (Num jornal português, também por causa disto, um crítico de música desdenhou de um dos discos mais recentes de Nick.) E a resposta serve-se com diplomacia: Cave começa por falar da liberdade de expressão — e sendo ele autor, pode dizer-se que ele nos fala sobre a liberdade de criação.
Assumindo que os seres humanos são “criaturas subtis e caóticas, cheias de ambiguidades e contradições”, “total e necessariamente diferentes uns dos outros”, apesar de reduzidos a categorias “arbitrárias de identidade”, como são a raça, a religião ou o género, Nick Cave defende ainda a “amálgama” de que é feito cada indivíduo. “Cada um de nós é um amálgama de tudo o que amamos, perdemos e aprendemos, os nossos sucessos e fracassos pessoais, os nossos arrependimentos particulares e as nossas alegrias singulares – e parte dessa singularidade é o que pensamos de maneiras diferentes.”
Nick Cave defende que a liberdade de expressão “é uma conquista social ou cultural, algo que nós, como comunidade, podemos usar para animar, encorajar e liberar a alma do nosso mundo, desde que tenhamos a sorte de viver numa sociedade que permita tal coisa”. Trata-se de uma questão que ajuda a aferir da qualidade de uma democracia – das sociedades. “Poder falar livremente não é apenas um benefício para si mesmo, fazendo com que nos sintamos menos sozinhos, é também um barómetro da saúde da nossa sociedade, assim como a intolerância a ideias opostas indica uma fraqueza ou falta de confiança em seus próprios pensamentos e as ideias da nossa sociedade”, argumenta.
Percebe-se porque é que Cave começa por falar sobre a liberdade de expressão, contra “a intolerância a ideias opostas”. Para melhor dizer que falar de Deus e de Jesus, para ele, só é possível numa comunidade na qual se pode falar livremente. E o músico situa Jesus como alguém que viveu num tempo em que falar era arriscado: “Jesus percorria a terra expressando o que eram, na época, ideias consideradas perigosas e heréticas.” Por isso, argumenta, Jesus “foi seguido por um círculo nervoso de escribas e saduceus a resmungarem, cujo objetivo era apanhá-lo – expor não apenas as Suas ideias perigosas, mas desnudar e perseguir a sua singularidade”.
Sabemo-lo, “eles tiveram sucesso, e Cristo foi cancelado na Cruz”, descreve Nick, usando uma curiosa formulação adequada a estes tempos ditos de “cancelamentos”. As ideias de Jesus eram “impossíveis e perigosas – amar o inimigo, amar os pobres, perdoar os outros – [e] eram aterrorizantes, inconcebíveis e proibidas na Sua época, mas tornaram-se, com o tempo, as melhores ideias que sustentam a sociedade em que muitos de nós temos a sorte suficiente para viver hoje. Vale a pena lembrar isto.”
Este discurso, também político, é aquilo que permite a Cave voltar à questão da tolerância necessária para viver em comunidade. “Acho que devemos ter cuidado com as nossas suposições sobre quais as ideias que achamos certas e quais as ideias que achamos erradas, e o que fazemos com essas ideias, porque é a ideia aterrorizante – a ideia chocante, ofensiva e única – que exatamente pode salvar o mundo.”
[artigo originalmente no 7Margens, em 26 de junho de 2002; a primeira imagem é Der Gaukler (c. 1502), de Hieronymus Bosch, reproduzida a partir do site de Nick Cave; a segunda imagem é The Love of God, detalhe (c.1861–1869), de Georgiana Houghton, também reproduzida do mesmo site.]
* - É um mistério de vida na hora da morte. Não é claro o ano de nascimento de Anita: o Público toma como boa a data de 1959, que a Wikipedia refere como "c. 1959", já o siteThe Quietus, disponível num dos links deste post, começou por apontar 1962, mas corrigiu para 1959, com "62 anos", atribuindo a informação a fonte da editora. Para o jornal britânico The Guardian, o mistério é sintetizado numa frase sobre esta natural de Melbourne: "No cause of death was given, and her age – believed to have been in her early 60s – could not be immediately confirmed."
De surpresa, Nick Cave trouxe-nos mais um disco, por estes dias, Carnage, assinado a meias com Warren Ellis, seu parceiro nos Bad Seeds e companheiro de muitas bandas sonoras. Com o mundo fechado em si mesmo, por conta de uma pandemia, uma digressão (que passaria por Lisboa) cancelada e a raiva de não poder subir a um palco, o australiano já se tinha apresentado em 2020 alone ao piano e escrito o libreto para uma quase-ópera de um compositor belga.
Carnage é como que uma terceira parte daqueles dois trabalhos, todos eles marcados por estes tempos de pandemia, como assumiu o próprio Nick Cave. Quando anunciou em dezembro que os concertos no Reino Unido e na Europa estavam cancelados, o músico explicou-se no seu site em que mantém correspondência com os fãs que, sem a digressão, o melhor mesmo era gravar um disco. “Time to make a record”, e fechou a conversa.
“Fazer Carnage foi um processo acelerado de intensa criatividade”, contou por sua vez Warren Ellis, o companheiro que é cada vez mais a mão que guia Cave, seja nos Bad Seeds, nos discos e em palco, seja na forma como as suas orquestrações arrumam no tom certo as canções de Nick.
E que canções, estas. Nick Cave descreveu o álbum como “um registo brutal, mas muito bonito, aninhado numa catástrofe comunitária”. “We won't get to anywhere, darling/ Anytime this year/ We won't get to anywhere, darling/ Unless I dream you there”, e a partir de Albuquerque revisitamos este longo ano de confinamentos. Mas estas são canções cheias de fé dentro, que é como quem diz cheias de dúvidas e incertezas, e comoventes. Mesmo um descrente pode ouvir nestas palavras e sons um qualquer deus.
Naquele que é o primeiro disco de canções de Cave e Ellis, prolongando a colaboração a dois na escrita para cinema e no trabalho coletivo dos Bad Seeds, a criatividade posta nesta carnificina foi intensa: “As oito músicas estavam lá de uma forma ou de outra nos primeiros dois dias e meio”, disse Warren. E isso reflete-se em composições que ora nos aconchegam, ora nos desacomodam. “People ask me how I’ve changed/ I say it is a singular road/ And the lavender has stained my skin/ And made me strange”, revela-nos em Lavender Fiels, uma bela canção que musicalmente, sobretudo nos coros, nos remete para as composições religiosas da comunidade ecuménica de Taizé, que Cave e Ellis nunca terão ouvido na vida. “We don’t ask who/ We don’t ask why/ There is a kingdom in the sky”, ouve-se ainda.
As polifonias vocais de Hand of God ou White Elephant embebidas na matéria orgânica sonora que Ellis tece em torno das letras de Cave recusam sempre uma grandiloquência desnecessária, comovendo antes o mais empedernido dos corações. Como aqueles versos que nos fecham o álbum, em Balcony Man: “And this morning is amazing and so are you/ This morning is amazing and so are you/ This morning is amazing and so are you/ In the morning sun.” Infinitamente simples.
Este tríptico da pandemia iniciou-se em 2020, o ano em que o australiano se sentou sozinho ao piano, registado em Idiot Prayer, para nos trazer 22 orações muito pessoais, desde o londrino Alexandra Palace para todo o mundo, numa transmissão em streaming, e em que se dedicou também à escrita de 12 litanias a convite do compositor neoclássico belga Nicholas Lens.
Nick Cave teve de ir pesquisar o significado de litania, apesar de ter aceitado prontamente a proposta para escrever uma ópera para Lens, para quem já tinha feito um anterior libreto, Shell Shock, sobre os horrores da I Guerra Mundial.
“A primeira coisa que fiz, depois de desligar o telefone, foi pesquisar: ‘O que é uma ladainha?’ E aprendi que uma litania era ‘uma série de preces religiosas’ e percebi que, durante toda a minha vida, escrevi litanias”, contou.
Uma improvável paixão de Cristo
Não é de agora que a religiosidade e a espiritualidade impregnam a música de Nick Cave, e de uma forma mais explícita (e assumida pelo músico) no seu percurso mais recente, marcado pela morte de um dos seus filhos em 2016. Skeleton Tree e Ghosteen são marcas indeléveis dessa jornada entre o desespero e a graça.
Também em L.I.T.A.N.I.E.S., o álbum que a Deutsche Grammophon editou dias antes do Natal de 2020, as palavras de Cave transportam a música de Lens por uma improvável paixão de Cristo, minimal e contida de palavras e frases que se repetem como numa ladainha, por vezes hipnótica, quase sempre melancólica.
“Eu estava confinado, a minha digressão mundial tinha sido cancelada e sentia uma estranha inquietação, tanto apocalíptica quanto monótona. Nicholas ligou-me e perguntou se eu poderia escrever doze litanias. Eu concordei alegremente.”
O registo é menos operático e a composição de Nicholas Lens remete-nos antes para música de câmara, onde a tensão das cordas, sopros, teclados e percussões com as vozes tinge o silêncio destes tempos de pandemia. Este é um álbum que não esconde os dias em que nasceu: o confinamento de Lens em Bruxelas, o silêncio que se ouvia na capital belga, cruzaram-se com uma experiência de Nicholas no Japão, onde ouviu um conjunto zen que conseguiu “transformar uma tristeza vaga e avassaladora numa promessa calorosa”.
Para gravar o disco, por causa do distanciamento físico exigido, Nicholas Lens rodeou-se de um pequeno ensemble de câmara (viola, violino, violoncelo, clarinete, fagote, flauta, saxofone, percussão e teclados), músicos também eles confinados, cada um em sua casa, e das vozes da sua filha, Clara-Lane Lens, da sua própria (assinando com o seu nome, Nicholas L. Noorenbergh), da soprano Claron McFadden e da do tenor Denzil Delaere.
Esta paixão abre com Litany of Divine Absence, com o piano a marcar o compasso e uma voz sussurrada que pergunta Where are You?, a criatura a questionar o Criador, “onde estás?”, como uma criança perdida no escuro, ou um filho de Deus cheio de dúvidas no Monte das Oliveiras.
Por algum motivo, o libreto começa com a Litany of Divine Absence e termina com a Litany of Divine Presence(“I see you”, canta a voz). E neste caminho há lugar à transformação, também pelo amor, outro tema omnipresente na escrita do australiano: “And I’ll watch you die and I’ll save you/ Am full of language, but do not speak/ I am holding you and I need you/ I am holding you and I need you/ I need you”.
É Nick Cave que nos diz, por estes dias, em mais uma das suas cartas aos fãs, na qual fala sobre o cristianismo, que “atos de compaixão, bondade e perdão podem acender [o] espírito de bondade dentro de cada um e no mundo”. Tal como em L.I.T.A.N.I.E.S., onde nos conduz entre o desespero e a graça, Cave aponta para a redenção que também ele procura. “Pequenos atos de amor que se estendem e trazem socorro a esse espírito animado, o Cristo suplicante, tão necessitado de reabilitação.”
L.I.T.A.N.I.E.S. vive essa experiência e pede que nos deixemos levar nesse mesmo conflito. Se durante toda a sua vida, Nick Cave escreveu litanias, vale então a pena perscrutar Idiot Prayer, o tal registo do australiano a solo (“alone at Alexandra Palace”, diz-nos em subtítulo a capa do disco de 2020), que despe de artifícios 22 das suas canções e poemas e nos apresenta o seu universo em voz e piano. E onde encontramos uma resposta para estes dias de pandemia: é o mistério, a incerteza e o conflito que alimentam a fé de cada um (e fé é duvidar sempre). Como em todas estas litanias e orações.
O álbum Carnage foi editado a 25 de fevereiro. Dois dias antes, tinha publicado no jornal 7Margens um texto sobre as duas obras anteriores de Nick Cave, Idiot Prayer e L.I.T.A.N.I.E.S., quando afinal havia novo álbum ao virar da esquina. Ao ouvir Carnage, com Warren Ellis, ouvi-o logo como uma terceira parte do que seria aquele texto se tivesse sido escrito dois dias depois. Assim, mantendo a estrutura desse texto original, acrescentei agora algumas notas sobre o novo disco. Fotos de Joel Ryan e Cat Stevens.
É a centésima carta – e o próprio Nick Cave assinala o facto e agradece aos leitores, aos que leem e perguntam, que lhe dirigem todo o tipo de questões desde setembro de 2018. Das mais desconcertantes ou bizarras, íntimas e poéticas, às mais banais e quotidianas. É, pois, a carta n.º 100, divulgada sexta-feira, 5 de junho de 2020, na era da pandemia.
O músico australiano, radicado no Reino Unido responde sempre de forma desassombrada e próxima. “A minha forma de manter o meu passado no seu lugar é escrever sobre ele”, escreveu uma vez. E assim acontece em The Red Hand Files, o sítio de correspondência de que se fala.
É num corpo de letra courier, uma fonte tipográfica que imita a batida de uma máquina de escrever, que Nick Cave escreve estas cartas de resposta aos fãs que lhe perguntam sobre a sua criação, a poesia ou a música, a sua vida, a morte do filho (um tema recorrente este) ou a sua fé, como o espanto de Maria Madalena e Maria diante do túmulo.
Entre os sonhos de que não se lembra, o anúncio do último álbum ou o adiamento da sua digressão por causa da pandemia da covid-19, nada parece ficar de fora destas epístolas, que retomam os temas que percorrem também o seu longo percurso criativo de 40 anos, onde o amor, a morte, o sexo e a religião se cruzam de forma quase omnipresente.
Cada uma destas cartas tem sempre a mesma assinatura de despedida, “Love, Nick”. Como esta carta n.º 100, enviada por Hajalti, a partir da Islândia: “Hoje, a minha pergunta é pessoal: se você tivesse um anel de ouro que o seu filho herdaria um dia, o que gravaria dentro do anel? (Atualmente, estou a fazer um anel que quero que o meu filho tenha depois do meu dia [da morte]).”
A resposta serve para o anel como para os seus seguidores, os que subscrevem estas cartas. No interior do anel, Nick Cave gravaria uma frase, revela: “I am beside you.” “Estou ao teu lado.”
“Como estrangeiros flutuando num espaço profundo”
É como um gesto de amor aquele que o escritor de canções aqui ensaia, num ritmo mais ou menos semanal. Em setembro de 2018, a primeira questão de todas foi colocada pelo polaco Jakub, e relaciona de forma direta o luto com o processo criativo. Jakub recorda-lhe que em One More Time with Feeling [vídeo acima reproduzido], o documentário que acompanhou as sessões de gravação do álbum Skeleton Tree (2016), Nick admitia que tinha perdido o controlo sobre a escrita durante algum tempo e pergunta-lhe se estaria a mudar como compositor. O cantor australiano admite que sim, que durante “um ano foi difícil descobrir como escrever” – tudo tinha desmoronado, o centro da sua vida e da vida de Susie, a mulher, tinha morrido. Susie e Nick sentiam-se “uma espécie de estrangeiros flutuando num espaço profundo”.
“A boa notícia”, respondeu Cave a Jakub, é que em 2017 sentiu-se “intensamente ligado” à escrita. E acrescentou: “Algo definitivamente mudou e escrevi muitas coisas novas. Não posso dizer-te o alívio que foi. Eu estou a escrever muito mais e é algo forte e focado, na minha opinião.” Algumas destas composições — e poemas, como um que o compositor divulgou numa das cartas — dariam origem a Ghosteen, o último álbum lançado por Nick Cave (2019).
O desmoronamento na vida de Nick Cave não foi apenas o da perda física de um dos seus filhos. Aquilo que está no centro da sua vida é ainda, “no caso de um artista”, “um sentimento de espanto”. “Talvez seja o mesmo para todos”, confessa o músico. “As pessoas criativas em geral têm uma propensão aguda para a maravilha. Um grande trauma pode roubar-nos isso, a capacidade de ficar impressionado com as coisas. Tudo perde o brilho.”
“Mudar, crescer e confundir”
Ouvindo Skeleton Tree, composto durante o seu tempo de dor, sabemos que há um espanto permanente em cada uma das suas canções, um sobressalto indizível e um arrebatamento por uma polifonia de afetos. O brilho está lá. Nick Cave revê-se nas palavras de S, uma fã que lhe escreveu de Londres, em outubro de 2018, na terceira carta, sobre o processo criativo, de que é sempre algo que se vê de forma imperfeita ou apenas pelo canto do olho.
“Eu gosto muito da sua descrição do processo criativo: ver algo imperfeito ou pelo canto do olho. É isso mesmo. Uma boa ideia de música nunca se aproxima de ti, nunca te olha nos olhos, nunca se anuncia – pelo menos não na minha experiência. Ideias líricas são tão ilusórias quanto pirilampos: eles são espíritos que voam entre as árvores. No momento em que lhes dás atenção, eles foram-se.”
Na carta n.º 99 é sobre a identidade que Cave discorre. Questionado por Max, de Hamburgo (Alemanha), sobre o que “procura pessoalmente num artista”, e interpelado por Eleanora, de Bruxelas (Bélgica), sobre se a identidade de cada um “é uma manta de retalhos de desejos, escolhas, afiliação, excentricidade”, que habitam em nós “em conflito” e de forma incoerente, Nick Cave garante que “sempre” sentiu “o horror de ser encaixotado por uma identidade e uma opinião inflexível, pois essa lealdade a uma única persona pode ser a própria morte da criatividade”.
Defendendo que o melhor será “a capacidade de abraçar ideias contraditórias ao mesmo tempo”, o músico aponta que, “para um artista, particularmente um compositor, essa capacidade de estar aberto a influenciar, descartar a persona, nos dá a liberdade de nos expressar de maneiras contrastantes”. E conclui: “Quando penso nos artistas que tiveram o maior impacto em mim, esta identidade flutuante e desordenada, e a necessidade de se reinventar, é comum à maioria deles. Acho que é isso que procuro num artista – a capacidade de mudar, crescer e confundir.”
Otis, Nosferatu e o feitiço
Nick Cave vai além do que lhe perguntam, dá notícias do que está a fazer ou do que poderá acontecer, parece deixar cair a armadura de quem desafia a natureza quando sobe a um palco. Em 2018, na segunda carta, Jenn, da cidade americana de Boston, pergunta-lhe se tem animais em casa. Dois cães, responde ele: “Um cão lunático gentil de olhos tristes e com cancro chamado Otis e um pequeno salsicha psicótico chamado Nosferatu, cujo único grande empreendimento na vida é morder-me.”
Antes de falar dos cães, Cave começa por dar uma novidade. “Enquanto escrevo isto, estou sentado num estúdio com Warren na Califórnia a trabalhar no novo disco.” E desvela um pouco do que está a acontecer: “É uma coisa estranha e maravilhosa e muito diferente do que aconteceu antes. Estamos sob o seu feitiço.” Seria o feitiço que andaria agora em digressão, não fosse a pandemia.
Foi esse feitiço que se desvendou em outubro de 2019, como tinha antecipado Cave numa outra carta divulgada neste site, dias antes. Parecia combinado: o britânico Joe perguntou-lhe diretamente: “Quando podemos esperar um novo álbum?” – e a resposta surgiu acompanhada de uma foto de Nick sentado com Warren Ellis: “Podes esperar um novo álbum na próxima semana”, dizia, referindo-se a 4 de outubro. E a seguir mostrava a capa de Ghosteen.
“Uma certa santidade nessa amizade…”
Em tempos em que as mediações tradicionais são postas em causa todos os dias, através das redes sociais – com atores e atrizes, músicos, modelos, um sem mundo de famosos e antes intocáveis a interagirem com os seus admiradores e detratores, Nick Cave surpreende-se com a reação que o site teve logo no primeiro instante. “Tenho sido inundado com perguntas. A adesão a The Red Hand Files apanhou-me completamente desprevenido. Por isso, muito obrigado a todas e a todos.”
O australiano sempre foi um magnífico contador de histórias, como provam também as suas canções (e os romances a que já deu vida) ou as prosas breves deste site. Como quando Irina, de Londres, questiona se no “bloco-notas cheio de palavras” de Nick grava peças do seu subconsciente e atreve-se a perguntar como serão os sonhos e como influenciam eles a escrita do australiano.
A resposta é desconcertante: “Assassinos cruéis sequestraram o Warren. Os sequestradores enviaram-me uma lista de exigências. Eu tive que escrever uma carta de volta concordando com essas exigências. A carta que eu estava a compor tinha exatamente o mesmo formato de uma edição do Red Hand Files, com a mesma fonte cambria de vermelho sangue, o mesmo fundo de cor creme. O problema era que eu estava a ter um problema técnico em formatar a carta. As letras continuaram a lutar. A fonte continuou a mudar. O pequeno logotipo da mão vermelha não ficava de pé. O tempo estava a esgotar-se. E eu acordei, a tremer.” Era um sonho, bem se vê, mas pelo sim pelo não Nick telefonou a Warren. “Parece-me que ele está bem.”
Warren Ellis, que foi o responsável pela direção musical de Skeleton Tree e Ghosteen, começou a colaborar com Nick Cave na gravação de Murder Ballads, e desde então tem ganho preponderância na definição do som do australiano e da sua banda. E tornou-se um amigo, concorda Cave, em resposta a vários fãs que o questionaram sobre… Ellis. “Há uma certa santidade nessa amizade, na medida em que ela atravessou todos os tipos de problemas nos últimos vinte e poucos anos, mas permanece resiliente como sempre. A nível profissional, desenvolvemos um estilo de composição baseado quase exclusivamente num tipo de intuição e improvisação espiritual que, como diz Henry Miller, parece calmo, alegre e imprudente.”
Como soará a voz de Deus
Uma portuguesa, Rute, pergunta-lhe de Lisboa como soará a voz de Deus. Talvez seja parecida com a do australiano, sugeriu a leitora. “Espero que a voz de Deus seja algo que não é estrondosa, autoritária e masculina. Imagina que boa surpresa seria”, respondeu Nick, que disse esperar que não seja como a dele, ou de Tom Waits, nem mesmo de Morgan Freeman, o ator americano que apresentou a série Deus.
Lembrando-se de como há refrães que surgem da polifonia de várias vozes, Cave diz que pode ser essa a voz. “Talvez a voz de Deus seja a combinação de uma coleção de biliões de almas, uma assembleia dos que já partiram falando como um só, sem rancor, dominação ou divisão”, ou “um grande chamamento, em várias camadas, e que chega talvez como a voz determinada e pequena de uma criança. Sem género, pura e descomplicada, que diz ‘procura-Me, estou aqui’.”
Há uma espiritualidade que atravessa a música e a poesia de Nick Cave, já se sabe. Quando questionado sobre Deus – por um ateu, por exemplo, que lhe pede que explique a sua fé –, o australiano prolonga a resposta para lá do óbvio. “Há décadas que ando às voltas da ideia de Deus. Tem sido um lento arrastar pela periferia de Sua Majestade, com a caneta na mão, tentando escrever ao Deus vivo. Às vezes, acho que quase consigo. Quanto mais me torno disposto a abrir a minha mente para o desconhecido, a minha imaginação para o impossível e o meu coração para a noção do divino, mais Deus se torna aparente. Acho que temos aquilo que estamos dispostos a acreditar e que a nossa experiência do mundo se estende exatamente aos limites de nosso interesse e credibilidade. Estou interessado na ideia de possibilidade e incerteza. A possibilidade, pela sua própria natureza, estende-se além dos factos prováveis, e a incerteza impulsiona-nos para a frente. Eu tento encontrar o mundo com uma mente aberta e curiosa, insistindo em nada mais do que a liberdade do olhar para lá do que achamos que sabemos.”
E perante outra questão, sobre se Deus existe, a resposta dada é aquela que ouvimos nas suas canções. “Eu não tenho nenhuma evidência, mas não tenho a certeza de que essa seja a pergunta certa. Para mim, a questão é o que significa acreditar.” E acrescenta: “Acho impossível não acreditar, ou pelo menos não estar envolvido na procura disso, o que de certa forma é a mesma coisa. A minha vida é dominada pela noção de Deus, seja a Sua presença ou ausência. Eu sou um crente – na presença de Deus e na Sua ausência. Acredito na procura em si, mais do que no resultado dessa procura. Como extensão dessa crença, as minhas músicas são perguntas, raramente respostas.”
“Vemos joaninhas em todos os lugares”
Foi com um primeiro texto em que falou explicitamente da morte do filho que estes Red Hand Files se projetaram no espaço mediático. A americana Cynthia conta-lhe que experimentou a morte do pai, da irmã e de seu primeiro amor nos últimos anos e que sente que, “de algum modo, mantém a comunicação com eles através de sonhos”. E Nick e Susie vivem o mesmo?, pergunta-lhe então.
“Sinto a presença do meu filho, por todo o lado”, diz-lhe Nick Cave. “Parece-me que se amamos, sofremos. É esse o pacto. O amor e o luto estarão para sempre ligados”, escreve o músico. “O luto é o lembrete terrível das profundezas do nosso amor e, tal como este, não é negociável.”
A dor, conta-nos ainda, “ocupa o núcleo do nosso ser e estende-se dos nossos dedos até aos limites do universo. Dentro dessa volta existem todo o tipo de loucuras: fantasmas, espíritos, sonhos, tudo o que na nossa angústia desejarmos existir.”
A morte regressa vezes sem conta – a do filho. Como noutra carta em que lhe perguntam se acredita em sinais. A resposta é uma quase parábola.
“Dois dias depois de o nosso filho ter morrido, Susie e eu fomos à falésia onde ele caiu”, contou. “Quando Arthur era criança, ele falava de joaninhas e besouros. Ele amava-os, desenhava-os e identificava-se com eles. Falava constantemente sobre eles. E enquanto nos sentávamos ali, uma joaninha pousou na mão de Susie. Nós dois vimos, mas não dissemos nada, porque, embora reconhecêssemos o triste significado disto, não estávamos prontos a menosprezar a enormidade da tragédia com alguma exibição sentimental de um pensamento mágico. Mas éramos novos nisto do luto. Não tínhamos consciência dos apetites particulares da dor. Quando voltámos para casa, e eu estava a abrir a porta da nossa casa, outra joaninha pousou na minha mão. Desde então, Susie e eu vemos joaninhas em todos os lugares. Quando Warren e eu estávamos a trabalhar no último álbum, uma praga de joaninhas entrou no estúdio. Não sei o que pensar deste fenómeno, mas cada vez que vejo uma joaninha, recebo uma espécie de choque de que talvez algo esteja em jogo no mundo que está para lá da minha compreensão, mesmo que seja, com toda a probabilidade, apenas a estação das joaninhas.”
De tudo isto, Nick Cave responde com dúvidas que sempre o apoquentam. “Se eu acredito em sinais? Bem, prefiro dizer que assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está. E suspeito que é onde sempre esteve.”
Pediram-me para escolher 10 álbuns que influenciaram o meu gosto musical. Um álbum por dia, 10 dias consecutivos. Pediram-me sem ordem cronológica, sem explicações, sem críticas, apenas as capas de álbuns. Mas não consigo deixar de contar um pouco da (minha) história de cada um deles. E à boleia acrescentar outras influências que nasceram daqui.
Nick Cave and The Bad Seeds: The Good Son
Foi num filme que o ouvi, quando o rapaz no palco se entrega a The Carny, ainda não conhecíamos esta canção, e pensa para si que só “mais uma canção e acabou, mas não lhes vou falar de uma rapariga, não lhes vou falar”, mas ao microfone diz o contrário: “Vou falar-vos de uma rapariga” – e a banda começa a tocar.
É Nick Cave and The Bad Seeds num palco em Berlim, no filme Der Himmel über Berlin/As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, a tocarem The Carny e From Her To Eternity. E é por causa desta cena que fui à procura deste australiano, que se mostrou ao mundo nos Birthday Party, que há muito vive no Reino Unido.
Descobri Your Funeral… My Trial (1986), fui até From Her To Eternity (o primeiro álbum, de 1984), mas é com The Good Son (1990) que tudo mais fez sentido: é neste disco que inicia uma inflexão, depois da visceralidade dos cinco primeiros discos, para um lirismo hipnotizante que o foi acompanhando, com mais ou menos intensidade, com mais ou menos arroubos carnais.
Podia nomear ainda Murder Ballads (1996) ou The Boatman's Call (1997), outros marcos na construção do meu gosto pessoal, até às três últimas obras-primas (Push The Sky Away, Skeleton Tree e Ghosteen), mas foi com The Good Son que percebi que Nick Cave era verdadeiramente um filho pródigo.
É um assombro que espanta Nick Cave, aquele em que Maria Madalena e Maria permanecem junto à sepultura. Para o músico australiano, este é provavelmente o seu momento preferido da Bíblia. Jesus tinha sido retirado da cruz, o seu corpo depositado num túmulo novo, mandado talhar na rocha, e uma pesada pedra rolou para fazer a porta da sepultura. Os doze discípulos fugiram, só Maria Madalena e “a outra Maria” ali ficaram diante do túmulo.
Em Mateus 27, 61 (e não 51, como aponta Nick, numa provável gralha), sintetiza-se esse instante. “Maria de Madalena e a outra Maria permaneceram em frente à sepultura.”
“Eu acho que esta frase única e assombrada é provavelmente o meu momento favorito da Bíblia”, comenta Nick Cave, no seu site The Red Hand Files que já vai nas 90 atualizações, onde o músico, cantor e compositor se dedica a responder a perguntas de leitores sobre o seu processo criativo, a poesia que lê ou a música que ouve e faz, a sua vida e os animais lá de casa, a morte do filho adolescente e a sua fé e espiritualidade ou os sonhos de que não se lembra, e sobre temas que assombram as canções e a sua escrita, como o amor e a morte, o sexo e a religião, muitas vezes a religião.
É o próprio quem o reconhece, também a propósito da pandemia que se espalha pelo mundo. Radicado na Grã-Bretanha, Nick Cave regista-o, modesta e ironicamente, num dos mais recentes textos: “Os Red Hand Files sempre foram um espaço no qual eu pude oferecer noções existenciais duvidosas, meditações religiosas, conselhos infundados, senilidades milenares e aborrecimentos gerais, e, ao mesmo tempo, espero estender um pouco de bondade e compaixão humanas. No entanto, esse tipo de ruminações veio de uma época mais privilegiada e feliz, quando tínhamos oxigénio para refletir e tocar. As coisas mudaram, estamos diante de um inimigo comum — imparcial, insensível e de uma magnitude incomensurável — e não é mais o tempo de abstrações. Agora é a hora de ser cauteloso com as nossas palavras e as nossas opiniões.”
Dias antes tinha publicado, também neste site, o anúncio do adiamento da sua digressão europeia, que se iniciaria em 19 de abril em Lisboa — como tantas outras atividades que foram suspensas, canceladas ou adiadas em cidades cada vez mais desertas. “Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades”, descreveu agora o Papa Francisco. Estas trevas “apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares”.
Quando da morte do filho de 16 anos, o processo criativo de Nick Cave ficou suspenso. Talvez agora como então, o australiano sofra com isto. “As pessoas criativas em geral têm uma propensão aguda para a maravilha. Um grande trauma pode roubar-nos isso, a capacidade de ficar impressionado com as coisas. Tudo perde o brilho”, sintetizou.
Antes destas sombras, Nick Cave preferia o brilho de Maria Madalena, defronte do túmulo. Afinal, aquela mulher foi “mal julgada pela história e a sua importância fundamental na história cristã minada pelo patriarcado religioso”. Mas ele vê nela um papel central nos textos evangélicos. “Maria Madalena continua a ser o núcleo subversivo em torno do qual a história do Evangelho gira.”
Para Cave, “Maria Madalena é o símbolo mais comovente do amor verdadeiro e resiliente, tanto terrestre quanto espiritual. Ela ‘permanece’ na entrada da sepultura, a principal testemunha entre dois eventos monumentais — a crucificação e a ressurreição — que se imprimiram na história e moldaram não apenas o pensamento ocidental, mas também a essência do que somos, gostemos ou não disso”.
“Maria Madalena, para sempre parada na porta do túmulo numa vigília fiel, contemplando para lá da história, está embutida no nosso subconsciente. Ela é o verdadeiro ícone do luto feminino — complexo, elementar, paciente, empático e cheio de tristeza, e uma manifestação de amor físico e transcendente — o verdadeiro herói humano da história cristã”, conclui.
Agora que a pandemia de covid-19 levou Nick Cave a adiar a sua digressão europeia, é com as palavras que o australiano continua presente — e com a música de qualquer um dos seus álbuns. Uma amiga sua comparou este “nosso novo mundo” a um “navio fantasma” — “e talvez ela esteja certa”, admitiu. “Recentemente, ela perdeu alguém querido e reconhece agudamente o sentimento premonitório de um mundo prestes a ser destruído — e que precisaremos nos recompor novamente, não apenas pessoalmente, mas socialmente.” Com o espanto daquela mulher defronte do túmulo, a contemplar para lá da história.
[texto ligeiramente adaptado de uma publicação original no Sete Margens, de 30 de março de 2020; foto: a personagem de Maria Madalena, interpretada por Monica Bellucci, no filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson]
Deixemo-nos enfeitiçar: Nick Cave e os seus Bad Seeds apresentaram-nos esta quinta-feira à noite um espírito que voa por entre angústias, medos, esperanças, a paz e a morte a espreitar a cada palavra. O DN ouviu a estreia mundial do seu 16.º álbum de estúdio, no canal do YouTube da banda — e as primeiras impressões são estas, escritas ao correr dos sons.
Este é um disco que pede tempo: vive muito das palavras, como sempre viveu a música do australiano, mas Ghosteen (assim se chama o disco, que se poderia traduzir livremente por "Adolescente fantasma") é musicalmente menos áspero e visceral que qualquer uma das suas obras anteriores. Estão lá os poemas para isso, muitas vezes mais ditos que cantados (num registo em que é impossível não comparar com a referência que é Leonard Cohen).
Ghosteen segue-se a esse luto que foi o brilhante Skeleton Tree, editado há três anos, em setembro de 2016, depois da morte do filho adolescente Arthur, que tinha morrido no ano anterior, aos 15 anos. O nome deste álbum sugere também uma relação com essa morte. "I am beside you, you are beside me, look for me", ouve-se nos versos finais de Ghosteen Speaks. Depois da raiva contida do disco anterior, este novo trabalho parece representar um processo de apaziguamento. "Peace will come, a time will come for us", canta-nos Nick Cave logo a abrir em Spinning Song. "Estou a teu lado, estás a meu lado."
Não há um single óbvio — talvez Waiting for You, o terceiro tema da primeira parte (o disco surge dividido em duas metades) — e a própria estrutura deste duplo álbum traduz essa vontade de apontar um outro caminho, mesmo que seja claro que este é um disco novo de Nick e as suas ervas daninhas. Trata-se de oito canções na primeira parte e duas longas composições ligadas por um poema lido no segundo disco. "As canções do primeiro álbum são as crianças, as músicas do segundo álbum são os seus pais e Ghosteen é um espírito migratório", como explicou o australiano, radicado no Reino Unido, ao antecipar na semana passada o lançamento desta quinta à noite,
O disco pede de facto mais tempo de audição, mas não nos lembramos de Nick Cave cantar como canta neste disco, a voz sofrida mas percorrendo agudos que não suspeitávamos, as teclas de Warren Ellis a acomodarem as palavras. Em Waiting for You, Nick diz-nos que "sometimes it's better not to say anything at all". Felizmente, falha essa promessa. Há mais a dizer. "We would never admit defeat", canta logo depois em Night Raid, num exercício de declamação que abre a porta a coros - de vozes masculinas e femininas, que vão pintando os poemas ao longo dos dois discos, como em Sun Forest ou Leviathan.
Esta composição remete para Leviatã, o monstro marinho bíblico que atormenta Jó, um homem que sofre todas as provas (e provações) de Deus. As percussões de Leviathan, discretas, pontuam versos de uma dor tangível de um pai que perdeu o filho: "Love my baby and my baby loves me."
Na segunda parte, no tema que dá nome ao álbum, Nick Cave introduz uma nota de esperança, ao notar que "este mundo é lindo" e levando o espírito migratório a dançar, dançar e dançar por entre todas as coisas belas.
Em Hollywood, o tema com que encerra o disco, a morte parece pairar, como as estrelas que vivem apressadas na cidade dos sonhos e das ilusões. "And I know my time will come onde day soon", diz-nos Cave, 62 anos. E completa, num círculo que se fecha, como os espíritos que migram: "It's a long way to find peace of mind and I'm just waiting now for my time to come, for peace to come."
Antes ainda há Fireflies, um poema que já conhecíamos de Red Hand Files, o site onde Nick Cave conversa com os seus fãs e onde anunciou este disco. Foi aí, através dessas cartas que, há um ano, o australiano revelou que estava a trabalhar neste Ghosteen, afirmando que era "uma coisa estranha e maravilhosa e muito diferente do que aconteceu antes". E completava: "Estamos sob o seu feitiço." Também nós.
[texto originalmente publicado no DN, em 4 de outubro de 2019, na própria noite em que o disco foi lançado, com o título Nick Cave lançou-nos um feitiço. Já ouvimos "Ghosteen" ]
Tome nota: às 22.00 da próxima terça-feira, dia 3 de outubro, Nick Cave apresenta ao mundo o seu novo disco com os Bad Seeds, Ghosteen, um duplo álbum que apresenta oito canções na primeira parte e duas longas composições ligadas por uma peça falada (spoken word) no segundo disco.
Já em setembro do ano passado, Nick Cave antecipava esta novidade, numa carta dirigida a uma fã americana: "Enquanto escrevo isto, estou sentado num estúdio com Warren na Califórnia a trabalhar no novo disco. É uma coisa estranha e maravilhosa e muito diferente do que aconteceu antes. Estamos sob o seu feitiço."
É esse feitiço que se vai desvelar na próxima semana, antecipou o músico, numa outra carta divulgada nesta segunda-feira, no site onde mantém um diálogo com fãs, The Red Hand Files. O britânico Joe perguntou diretamente ao australiano: "Quando podemos esperar um novo álbum?" - e a resposta surgiu ontem, acompanhada de uma foto de Nick sentado com Warren Ellis: "Podes esperar um novo álbum na próxima semana." Pouco depois divulgava a capa de Ghosteen.
O nome do disco pode remeter para a morte do seu filho Arthur, em julho de 2015. Segundo Nick, "as canções do primeiro álbum são as crianças, as músicas do segundo álbum são os seus pais e Ghosteen é um espírito migratório".
O disco foi gravado em 2018 e no início de 2019, segundo informação hoje disponibilizada no siteoficial, nos estúdios de Woodshed em Malibu e Nightbird em Los Angeles (EUA), Retreat em Brighton (Reino Unido) e Candybomber em Berlim (Alemanha). E foi misturado por Nick Cave, Warren Ellis, Lance Powell e Andrew Dominik em Conway, em Los Angeles.
Para além do YouTube, o novo disco poderá ser ouvido em audições especiais num conjunto de várias cidades - mas Portugal fica de fora. A mais próxima é em Madrid e Barcelona, em Espanha, e o roteiro europeu inclui ainda Amesterdão, Estocolmo, Copenhaga, Oslo, Milão, Bolonha, Nápoles, Lovaina, Gent, Antuérpia, Helsínquia, Londres, Nottingham, Bristol e Brighton.
No dia 4, sexta-feira, Ghosteen fica disponível nas plataformas digitais, mas as edições em vinil e CD só chegam às lojas a 8 de novembro.
É num corpo de letra courier, uma fonte tipográfica que imita a batida de uma máquina de escrever (e que replicamos neste post), que Nick Cave escreve as cartas de resposta aos fãs que lhe deixam perguntas sobre a sua criação, a poesia ou a música, a sua vida, a morte do filho e a sua fé ou os sonhos de que não se lembra — retomando os temas que percorrem o seu longo percurso criativo de 40 anos, em que o amor, a morte, o sexo e a religião se cruzam de forma quase omnipresente.
Cada uma destas cartas tem sempre com a mesma assinatura de despedida, “love, Nick”. E é um gesto de amor aquele que o escritor de canções australiano, radicado na Grã-Bretanha, nos apresenta em The Red Hand Files, o site que já vai em 11* capítulos, com uma atualização regular, e que nos desvela os segredos de Nick Cave em ficheiros nada secretos — e desconcertantes, como também é Nick.
Depois do lançamento do seu álbum Skeleton Tree, em 2016, cuja gravação ficou marcada pela morte de Arthur, no verão de 2015, Nick Cave arrumou a cabeça e expiou o luto também numa digressão que, ao longo de 2017 e 2018, o levou aos palcos da América, Oceânia e Europa. E escrevendo, escrevendo muito.
A primeira questão de todas, escolhida por Nick, foi colocada pelo polaco Jakub, e e relaciona diretamente o luto com o processo criativo. Jakub recorda-lhe que em One More Time with Feeling, o documentário que acompanhou as sessões de gravação de Skeleton Tree, Nick admitia que tinha perdido o controlo sobre a escrita durante algum tempo e pergunta-lhe se estaria mudar como compositor. O cantor australiano admite que sim, que durante “um ano foi difícil descobrir como escrever” — tudo tinha desmoronado, o centro da sua vida e da vida de Susie, a mulher, tinha morrido. Susie e Nick sentiam-se “uma espécie de estrangeiros flutuando num espaço profundo”.
“A boa notícia”, respondeu Cave a Jakub, “é que no ano passado senti-me intensamente ligado à minha escrita”. E acrescentou: “Algo definitivamente mudou e escrevi muitas coisas novas. Não posso dizer-te o alívio que foi. Eu estou a escrever muito mais e é algo forte e focado, na minha opinião.”
O desmoronamento na vida de Nick Cave não foi apenas o da perda física de um dos seus filhos. Aquilo que está no centro da sua vida é ainda, “no caso de um artista”, “um sentimento de espanto”. “Talvez seja o mesmo para todos”, admite o músico. “As pessoas criativas em geral têm uma propensão aguda para a maravilha. Um grande trauma pode roubar-nos isso, a capacidade de ficar impressionado com as coisas. Tudo perde o brilho.”
Ouvindo Skeleton Tree, composto durante esse tempo de dor, sabemos que há um espanto permanente em cada uma das suas canções, um sobressalto indizível e um arrebatamento por uma polifonia de afetos. O brilho está lá. Nick Cave revê-se nas palavras de S., uma fã que lhe escreve de Londres, sobre o processo criativo, de que é sempre algo que se vê de forma imperfeita ou apenas pelo canto do olho.
“Eu gosto muito da sua descrição do processo criativo: ver algo imperfeito ou pelo canto do olho. É isso mesmo. Uma boa ideia de música nunca se aproxima de ti, nunca te olha nos olhos, nunca se anuncia — pelo menos não na minha experiência. Ideias líricas são tão ilusórias quanto pirilampos: eles são espíritos que voam entre as árvores. No momento em que lhes dás atenção, eles foram-se.”
Na Califórnia a gravar novo álbum
Nick Cave vai além do que lhe perguntam, dá notícias do que está a fazer ou do que poderá acontecer, parece deixar cair a armadura de quem desafia a natureza quando sobe a um palco.
Antes de falar dos cães, Cave começa por dar uma novidade. “Enquanto escrevo isto, estou sentado num estúdio com Warren na Califórnia a trabalhar no novo disco.” E desvela um pouco do que está a acontecer: “É uma coisa estranha e maravilhosa e muito diferente do que aconteceu antes. Estamos sob o seu feitiço.”
Em tempos em que as mediações tradicionais são postas em causa todos os dias, através das redes sociais — com atores e atrizes, músicos, modelos, um sem mundo de famosos e antes intocáveis a interagirem com os seus admiradores e detratores, Nick Cave surpreende-se com a reação que o site teve logo no primeiro instante. “Tenho sido inundado com perguntas. A adesão a The Red Hand Files apanhou-me completamente desprevenido. Por isso, muito obrigado a todas e a todos.”
O australiano sempre foi um magnífico contador de histórias, como provam também as suas canções (e os romances a que já deu vida) ou as prosas breves deste site. Como quando Irina, de Londres, questiona se no “bloco-notas cheio de palavras” de Nick grava peças do seu subconsciente e atreve-se a perguntar como serão os sonhos e como influenciam eles a escrita do australiano.
A resposta é desconcertante: “Assassinos cruéis sequestraram o Warren. Os sequestradores enviaram-me uma lista de exigências. Eu tive que escrever uma carta de volta concordando com essas exigências. A carta que eu estava a compor tinha exatamente o mesmo formato de uma edição do Red Hand Files, com a mesma fonte cambria de vermelho sangue, o mesmo fundo de cor creme. O problema era que eu estava a ter um problema técnico em formatar a carta. As letras continuaram a lutar. A fonte continuou a mudar. O pequeno logotipo da mão vermelha não ficava de pé. O tempo estava a esgotar-se. E eu acordei, a tremer.” Era um sonho, bem se vê, mas pelo sim pelo não Nick telefonou a Warren. “Parece-me que ele está bem.”
Warren Ellis, que foi o responsável pela direção musical de Skeleton Tree, começou a colaborar com Nick Cave na gravação de Murder Ballads, e desde então tem ganho preponderância na definição do som do australiano e da sua banda. E tornou-se um amigo, concorda Cave, em resposta a vários fãs que o questionaram sobre… Ellis. “Há uma certa santidade nessa amizade, na medida em que ela atravessou todos os tipos de problemas nos últimos vinte e poucos anos, mas permanece resiliente como sempre. A nível profissional, desenvolvemos um estilo de composição baseado quase exclusivamente num tipo de intuição e improvisação espiritual que, como diz Henry Miller, parece calmo, alegre e imprudente.”
“Sinto a presença do meu filho, por todo o lado”, diz-lhe Nick Cave. “Parece-me que se amamos, sofremos. É esse o pacto. O amor e o luto estarão para sempre ligados”, escreve o músico. “O luto é o lembrete terrível das profundezas do nosso amor e, tal como este, não é negociável.”
A dor, conta-nos ainda, “ocupa o núcleo do nosso ser e estende-se dos nossos dedos até aos limites do universo. Dentro dessa volta existem todo o tipo de loucuras: fantasmas, espíritos, sonhos, tudo o que na nossa angústia desejarmos existir.”
Há uma espiritualidade que atravessa música e a poesia de Nick Cave e quando questionado sobre Deus — por um ateu, por exemplo, que lhe pede que explique a sua fé —, o australiano prolonga a resposta para lá do óbvio. “Há décadas que ando às voltas da ideia de Deus. Tem sido um lento arrastar pela periferia de Sua Majestade, com a caneta na mão, tentando escrever ao Deus vivo. Às vezes, acho que quase consegui. Quanto mais me torno disposto a abrir a minha mente para o desconhecido, a minha imaginação para o impossível e o meu coração para a noção do divino, mais Deus se torna aparente. Acho que temos aquilo que estamos dispostos a acreditar e que a nossa experiência do mundo se estende exatamente aos limites de nosso interesse e credibilidade. Estou interessado na ideia de possibilidade e incerteza. A possibilidade, pela sua própria natureza, estende-se além dos factos prováveis, e a incerteza impulsiona-nos para a frente. Eu tento encontrar o mundo com uma mente aberta e curiosa, insistindo em nada mais do que a liberdade do olhar para lá do que achamos que sabemos.”
E perante outra questão, sobre se Deus existe, a resposta dada é aquela que ouvimos nas suas canções. “Eu não tenho nenhuma evidência, mas não tenho a certeza de que essa seja a pergunta certa. Para mim, a questão é o que significa acreditar.” E acrescenta: “Acho impossível não acreditar, ou pelo menos não estar envolvido na procura disso, o que de certa forma é a mesma coisa. A minha vida é dominada pela noção de Deus, seja a Sua presença ou ausência. Eu sou um crente — na presença de Deus e na Sua ausência. Acredito na procura em si, mais do que no resultado dessa procura. Como extensão dessa crença, as minhas músicas são perguntas, raramente respostas.”
[Artigo publicado originalmente no DN, em 10 de dezembro de 2018, ligeiramente revisto; * — à data da publicação do artigo original, agora já são 23 capítulos]
Concerto de Nick Cave que deu origem a um filme, Distant Sky, chega em versão áudio num EP de quatro temas. Uma força da natureza em 28 minutos
A passagem do furacão de Nick Cave & The Bad Seeds parece ter ficado inscrita na memória de quem, naquela noite de inverno em junho, esteve no Parque da Cidade, no Porto, como uma semana antes a mesma força da natureza tinha abalado um céu azul de espanto que descia no entardecer de Londres.
Meses antes, com esse álbum dilacerante que é Skeleton Tree a fazer as apresentações, o australiano apresentou-se na Royal Arena, em Copenhaga, para um concerto que deu origem a um filme, Distant Sky, e chega agora em versão áudio num EP de quatro temas. E registe-se: não são só quatro temas, não são meras quatro canções. São quatro obras maiores do cânone caveano - Jubilee Street, Distant Sky, From Her To Eternity e The Mercy Seat.
A primeira é uma extraordinária criação de Push The Sky Away (2012), que se anuncia uma vez mais como antecâmara para uma explosão de adrenalina, que ficará guardada para mais tarde. Porque antes há ainda Distant Sky, do referido Skeleton Tree (2016), com um poema que nos arrebata por um coro de afetos a duas vozes (à de Cave junta-se a da soprano dinamarquesa Else Torp, tal e qual como no álbum), num diálogo de companheiros feridos. "Let us go now, my only companion/ Set out for the distant skies/ See the sun/ See it rising/ Rising in your eyes", e Nick Cave fica de olhos marejados - como o violino de Warren Ellis que o acompanha no lamento final do tema.
E logo o australiano nos introduz a história de "uma rapariga", que já nos canta desde From Her To Eternity, o seu primeiro disco, de 1984. Nesta versão da canção que dá nome ao álbum já está aquilo que se constataria em Londres, como no Porto: uma descarga pesada orquestral dirigida por Warren Ellis, num diálogo violento entre piano e cordas demoníacas e a interpretação assombrosa de Nick Cave desta história da rapariga que vive no quarto 29.
Por fim, The Mercy Seat, de Tender Prey (1988) é outro dos hinos do universo de Cave, servido de novo numa crescente polifonia visceral e só aparentemente caótica. Este EP é enorme nos seus curtos 28 minutos de duração e pede uma audição em loop.
No regresso ao anfiteatro mágico do Parque da Cidade, no Porto, este sábado à noite para o Nos Primavera Sound, o público espera que Nick Cave traga na bagagem o seu mais recente trabalho com a sua band seeds que é Skeleton Tree, álbum no qual o australiano que há anos reside no Reino Unido faz a expiação a morte do filho Arthur, no verão de 2015.
Este Skeleton Tree só aparentemente é o pretexto imediato nos concertos de 2018 (e o do Porto é o quarto, depois de Barcelona, Londres e Dublin): nas 14, 15 canções que Nick Cave levou ao palco, o seu último álbum tem dividido as atenções com Let Love In, do já longínquo ano de 1994.
Não sendo uma liturgia festiva, mas antes um espanto permanente pelo sobressalto que é cada uma das canções do álbum de 2016, Nick Cave and The Bad Seeds trazem-nos uma celebração emotiva e elétrica, com descargas sucessivas de adrenalina num equilíbrio perfeito entre a solenidade de Jesus Alone, que abre Skeleton Tree e o concerto, ou a ferocidade de Stagger Lee, de Murder Ballads (1996) — pelo menos a avaliar pelo concerto a que o DN assistiu no domingo, 3 de junho, no Victoria Park, na zona leste de Londres, no encerramento do festival All Points East.
De fato preto e camisa branca, com o sol de um início de noite londrino ainda a banhar o palco (a pontualidade britânica não é apenas mania, mesmo num festival de música, com o concerto a começar rigorosamente às 20.55), Nick Cave abriu com Jesus Alone e Magneto, canções maiores do seu mais recente trabalho, e mostrando logo aí ao que ia como mestre de cerimónia: o corpo a acompanhar as palavras, as mãos a guiarem o coro de vozes dos milhares que o aguardavam e sistematicamente a procurar o contacto com todos os que estavam nas filas da frente. "With my voice/ I am calling you", comandou.
Com uma carreira já de 34 anos, com os Bad Seeds, matéria não falta a Nick Cave, cuja maior a dificuldade será essa de construir o alinhamento de cada concerto. Por isso, logo à terceira canção em Victoria Park, a banda mergulha no passado, primeiro com Do You Love Me? — a primeira da noite que se ouve do álbum Let Love In — e depois From Her to Eternity, do álbum inaugural de 1984. "Vou falar-vos de uma rapariga", antecipou Nick Cave, frase que já funciona como senha para antecipar os acordes pesados desta canção, que ganhou também uma nova dimensão orquestral com a condução discreta de Warren Ellis, que se dividia entre o piano e um violino demoníaco.
Curiosamente Ellis, responsável pela direção musical de Skeleton Tree, começou a colaborar com Nick Cave na gravação de Let Love In, e desde então tem ganho preponderância na definição do som do australiano e da sua banda. Não é de estranhar, pois, que no alinhamento londrino a adrenalina se tenha mantido com dois temas do mesmo álbum de 1994, Loverman (que andava ausente dos palcos desde 1999) e Red Right Hand, numa versão a roçar a perfeição.
Come Into My Sleep, uma surpresa que surgiu no alinhamento, talvez explicada por ser "a canção preferida de Susie", a sua mulher, como explicou o próprio, encaixou bem com outro tema do cânone "caveano" como Into My Arms e Girl in Amber. Uma trilogia que antecipou uma segunda parte eletrizante do concerto de Victoria Park, e onde Jubilee Street (extraordinária canção de Push The Sky Away, de 2012) foi a certeira antecâmara quase catártica para os temas alinhados para o final da hora e meia de espetáculo, com Deanna, Stagger Lee e Push the Sky Away.
Em Deanna, Nick Cave — que se aproximou durante todo o concerto do público, deixando-se tocar e tocando — começou a chamar os espectadores da frente para o palco, c'mon, c'mon, insistia ele, venham, venham, e dezenas foram para uma versão de Stagger Lee em que o diabo andou à solta, enquanto provocava o público. "Are you ready?!". "Then in came the devil, he had a pitchfork in his hand, said, "I've come to take you down", Mr. Stagger Lee", cantou Cave enquanto envolvia uma jovem.
Como antes tinha envolvido outra mulher, "ladies and gentlemen, Kylie Minogue", ela mesmo, de passagem por Londres, proporcionando assim uma interpretação rara ao vivo de Where The Wild Roses Grow, que empolgou um público sem preconceitos. "I should be so lucky", brincou na despedida Nick Cave, citando um dos hits descaradamente pop da australiana. Tivemos todos sorte. Hoje no Porto, será provavelmente a ausência que mais se lamentará. Mas Cave enche o palco com tudo o que importa: as canções. Are you ready?!
Há um momento no filme no qual o rapaz que está no palco volta para mais uma canção, "mais uma canção e acabou", pensa ele, "mas não lhes vou falar de uma rapariga, não lhes vou falar", e quando se chega ao microfone diz o contrário: "Vou falar-vos de uma rapariga" - e a banda começa a tocar, enquanto ele canta sobre a rapariga que vive no quarto 29, exatamente por cima do dele, onde ela passeia descalça a chorar.
Foi assim que, pela primeira vez, Nick Cave e os seus Bad Seeds apareceram num filme, Der Himmel über Berlin/As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, a interpretar em palco The Carny e From Her To Eternity, a canção da rapariga do quarto 29. E é por este tema, do primeiro álbum homónimo, que nos iniciamos neste acontecimento maior que é a mais abrangente coletânea de Nick Cave and The Bad Seeds, Lovely Creatures: The Best of Nick Cave and The Bad Seeds (1984-2014) — descontados um primeiro best of, curto nos seus 16 temas, de 1998, os discos ao vivo e uma box que reuniu lados B e raridades, em 2005 — que [foi] lançada a 5 de maio.
Esta viagem percorre os 15 álbuns de originais do australiano e da sua banda de From Her To Eternity (1984) até Push The Sky Away (2012), só deixando de fora o mais recente Skeleton Tree (2016) e [chega] às lojas em duas versões que só aparentemente são iguais. A edição standard fica-se por 21 temas, a deluxe atira-se para os 45.
E, senhoras e senhores, como apetece tanto puxar os cordões à bolsa para poder ouvir esta antologia na sua versão de luxo (e falamos só da música): desfiando as canções cronologicamente, os 45 temas permitem parar em cada um dos álbuns com tempo, percebendo a importância de cada um na construção do edifício musical de Nick Cave and The Bad Seeds, da carnalidade dos cinco primeiros discos ao lirismo hipnotizante que o acompanha, com mais ou menos arroubos viscerais, sobretudo desde Murder Ballads (1996) e The Boatman's Call (1997).
Da edição standard à edição deluxe, o embrulho é cuidado. A primeira é um duplo CD, com um booklet de 24 páginas de fotos pessoais e raras da banda. A versão de luxo traz um livro de 36 páginas que acompanha três CD e um DVD de duas horas. Por fim, para fãs, há uma edição limitada super deluxe a pedir a atenção dos sentidos, num livro luxuoso de 256 páginas, com ensaios originais, muitas fotos e memorabilia.
As criaturas adoráveis que são as canções deste álbum mostram um Nick Cave e os seus Bad Seeds em empolgantes hinos rock, como The Mercy Seat ou Deanna, em que órgãos Hammond gingam de forma despudorada com guitarras apocalípticas e coros guturais.
Até 2014 não há álbum de originais que fique de fora, exceto (lá está) na edição standard. Nocturama (2003) é o disco menos amado e quase esquecido nesta coletânea, com um único tema na versão deluxe. Mas não há muito por aferir sobre amores e desamores de Nick Cave na seleção final feita: Your Funeral... My Trial também é quase esquecido (Stranger Than Kindness ouve-se nas duas versões, acompanhada de Sad Waters e The Carny, no triplo que reúne os 45 termas), quando o australiano dizia em 1992 que era o seu disco preferido. "Este disco em particular, que é o meu disco favorito dos que fizemos, é muito especial para mim e muitas coisas espantosas aconteceram, musicalmente, no estúdio", contava então. "Há algumas canções que, no que me toca, são tão perfeitas como as podemos fazer. Canções como The Carny, Your Funeral, My Trial e Stranger Than Kindness, penso que são de facto brilhantes."
O génio atormentado que sobe ao palco em As Asas do Desejo está sempre presente nas letras que fazem este longo percurso de 30 anos, em que o amor, o sexo e a religião se cruzam de forma quase omnipresente. Há The Good Son (2000) e The Boatman's Call, ou ainda Kicking Against the Pricks, o álbum de covers de 1986 que ganhou o nome a partir de um versículo dos Atos dos Apóstolos, que cita um provérbio grego apenas referido numa tradução anglicana da Bíblia.
Mesmo que possamos apontar o dedo a uma ou outra ausência (onde andam o fantástico dueto com PJ Harvey, Henry Lee, de Murder Ballads, ou Black Hair, de The Boatman's Call?) — o que acaba por acontecer naturalmente ainda mais vezes ao olharmos para o alinhamento da edição mais económica — há um esforço para contar o essencial destas ervas daninhas.
Quem aqui chegar pela primeira vez fica a saber com o que conta, desde a história da rapariga do quarto 29 até à de uma outra rapariga, que se passeia pela Jubilee Street. É uma viagem e tanto, de antologia mesmo.
Há um espanto permanente em cada uma das canções de Skeleton Tree, um sobressalto indizível (naquele que é já, para mim, o melhor álbum deste meu ano), seja em Jesus Alone ou I Need You, como em Magneto ou Girl In Amber, mas depois, quando entramos no penúltimo sopro deste novo álbum de Nick Cave and The Bad Seeds, Distant Sky, somos arrebatados por uma polifonia de afetos, a duas vozes (à de Cave junta-se a da soprano dinamarquesa Else Torp), num diálogo de companheiros feridos. E em que a vida assoma vestida de esperança aos nossos ouvidos...
«Let us go now, my only companion Set out for the distant skies Soon the children will be rising, will be rising This is not for our eyes»
[o título deste post parte do título do texto de Vítor Belanciano para o Público]
Sabemos bem quem ele é: o anjo negro que subia ao palco num filme a preto e branco alemão a dizer que não ia cantar sobre uma rapariga e acabava a cantar sobre essa rapariga, é o mesmo (muitos anos depois) que nos surge na capa deste disco a expulsar uma mulher do paraíso. Push the Sky Away marcou o regresso de Nick Cave – depois das explosões de Dig, Lazarus, Dig!!! (2008) e dos dois álbuns com os Grinderman (de 2007 e 2010) – a ritmos mais lentos, a sonoridades que parecem planar pelos céus, mas sem se aproximar de Murder Ballads (1996) ou The Boatman’s Call (1997), referências mais óbvias quando procuramos mares mais calmos na torrente discográfica do australiano.
Este álbum é também um recomeço para Nick Cave, o primeiro sem o seu companheiro de todas as outras 14 aventuras, Mick Harvey, que optou por semear a sua música a solo. Este álbum é também a minha escolha num ano de regressos que podiam ser também escolhidos como o que melhor se fez, seja David Bowie ou Arcade Fire ou The National.
Quando deixamos de voar e começamos a escavar as palavras que formam cada uma destas nove canções, percebemos que a turbulência da música de Nick Cave (e os seus companheiros de tantos anos, os Bad Seeds) afinal permanece lá, indelével, como a fé de muitos.
Há sereias, há Deus, ou um deus muito pessoal deste australiano, que apesar de toda a expiação e possível redenção, permanece sempre mergulhado na tristeza de despedidas, de amores impossíveis e carnais.
Só por momentos conseguimos achar que “We No Who U R”, “Higgs Boson Blues” ou “Jubilee Street” – provavelmente a mais bela canção do ano – nos transportam para paisagens sonoras reconfortantes. Os poemas, os apontamentos soltos que Nick Cave foi compilando num pequeno bloco-notas ao longo de um ano, nasceram também de curiosidades que o músico e também escritor foi googlando ou consultando na Wikipédia. Martin Luther King ou Miley Cirus são personagens de uma mesma história, nove histórias de aparente descrença, que retratam estes tempos de desesperança.
Ouvido o álbum, escutadas as canções, podemos olhar de novo para a capa e ver aquele anjo negro a deixar entrar a luz para o quarto, iluminando o corpo despido dessa mulher. Talvez, como nesta foto, este seja também um álbum de enganos. Empurrado o céu para longe, a esperança são as pessoas. Sem necessidade de esquecer, porque sabemos bem quem ele é, este anjo negro.
[texto publicado este sábado no QI, suplemento aos sábados do DN, sobre Os discos que contam a banda sonora do que ouvimos em 2013.]
Nick Cave and The Bad Seeds and Mute announce the first four albums in a series that will see the band's entire album catalogue digitally re-mastered and remixed in 5.1 surround sound.
From Her To Eternity, The First Born Is Dead, Kicking Against The Pricks and Your Funeral, My Trial are set to be released at the end of the year.