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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Setembro 06, 2024

1971, um ano de excecional colheita

Miguel Marujo

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Qual a probabilidade de juntarmos numa qualquer playlist José Mário Branco e Tonicha, Sérgio Godinho e Duo Ouro Negro, José Afonso e Marco Paulo, ou ainda Amália Rodrigues, Bonga, Paco Bandeira, Adriano Correia de Oliveira, Quim Barreiros e Carlos Paredes? A resposta está no título que se deve dar a essa banda sonora: 1971, o ano da revolução antes da revolução.

Esta proposta é fácil de fazer, argumenta Luís de Freitas Branco, autor de A Revolução antes da Revolução (edição Livros Zigurate), uma obra essencial e cativante, apresentada cronologicamente, mês a mês, sobre a importância de discos gravados e editados nesse ano. Em cada capítulo, que é um mês, as histórias multiplicam-se para, a partir de um disco ou de um evento específico, contar, contextualizar e cantar o Portugal da ditadura.

Os meses demoram-se nas páginas, nas quais Freitas Branco pega na música para entrar na sociedade e na política, das conquistas da angolana Riquita como Miss Portugal, deixando a metrópole de fora, para nos fazer chegar aos meandros da censura, da pequenez de um país cinzento, com bufos ao virar de cada esquina; para nos fazer assistir às emissões de uma RTP reflexo de um país, para nos meter na insurreição dos povos das então colónias de mãos dadas com a música, também eles a fazerem uma revolução antes das suas independências.

Freitas Branco socorre-se do escritor José Cardoso Pires, que do Brasil, em julho de 1971, diz que “em certos momentos da História de alguns países, é justamente nos momentos mais duros, mais dramáticos e com menos liberdade de expressão que se consegue, talvez por reação a isso, produzir obras válidas”. Tal e qual esse ano de 1971, com a censura do Estado Novo de Marcelo Caetano a mostrar-se cada vez mais bruta e pouco dada a subtilezas.

A lista de “obras válidas” que justificam a revolução de que fala o autor é extensa — e é suficiente cingirmo-nos aos títulos que alimentam cada um dos capítulos: Traz Outro Amigo Também, de José Afonso (que é de 1970, mas dá o mote para o livro), Movimento Perpétuo, de Carlos Paredes, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, de José Mário Branco, Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho, Blackground, do Duo Ouro Negro, ou Cantigas do Maio, de José Afonso, fechando o círculo.

Nestas páginas, há também o Festival da Canção (e o furacão que era Ary dos Santos), o Festival Vilar de Mouros, que trouxe Elton John e Manfred Mann a uma então desconhecida aldeia minhota por teimosia de um médico, ou o Jazz de Cascais, “o festival que a PIDE não conseguiu prender”, com monstros sagrados do jazz e um vendaval musical e político (Charlie Haden chegou a ser preso por ter dedicado Song for Ché aos movimentos de libertação das colónias).

Pelo meio, há debates constantes sobre a procura da canção portuguesa, entre o cançonetismo, a balada e uma outra coisa nova e entusiasmante, que a imprensa especializada da época antecipa em Zeca, Sérgio e Zé Mário; sobre a música das então colónias que aparecia na Europa sem a mordaça do Estado Novo; sobre a notícia exagerada da morte do rock português, mas que sucumbiria depois aos anos da canção de intervenção; ou sobre o impasse do fado, colado à ditadura, mas também à procura do seu cravo (e temos o retrato de uma Amália opositora, mas que a crítica teimava em não entender), entre o tradicional e a ânsia de arrojo e democracia.

Há ainda uma atenção às palavras que acompanhavam a melodia, e que fizeram chegar a poesia (de nomes maiores da literatura em português do século XX) a muito mais gente, concentrando uma “rebelião em meia dúzia de linhas” – e desassossegando as pessoas. O autor retoma a tensão entre cançonetistas e baladeiros e os outros, notando que a palavra precisava de música, e não bastava a simplicidade dos acordes de baladas. “A supremacia da literatura na canção foi destronada, as transformações culturais reivindicavam uma obra de arte completa, dos pés à cabeça, da melodia aos versos. A reacção surgiu em Paris, a 1500 quilómetros de Portugal, encabeçada pelo produtor José Mário Branco, que se apresentou como a antítese do cinzentismo das baladas, o maestro da cor quente e audácia de Cantigas do Maio, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades e Os Sobreviventes. E o mundo pula e avança.”

É também em Paris que um homem das baladas encontra refúgio, despojado de emprego e salário, perseguido pela PIDE. Francisco Fanhais, padre, faz do púlpito uma tribuna contra a situação. “Alguém ligado à igreja era onde eles menos esperavam que pudesse haver oposição”, recorda o próprio. Saltou para Paris à boleia de José Afonso e seria acolhido por José Mário Branco e Luís Cília [ver entrevista ao 7MARGENS].

 

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É nesta teia intrincada de histórias que se entrelaçam, de nomes que se cruzam, que sobressai o trabalho de pesquisa e investigação de Luís de Freitas Branco, que não se fica por algumas versões mais ou menos conhecidas, antes desvelando um quotidiano nas artes e na política, nos costumes e na música, e resgatando nomes a um profundo esquecimento, de fadistas, cançonetistas, baladeiros — mas também outros músicos que voaram mais alto em termos estéticos, com uma carreira breve (José Almada e Denis Cintra, por exemplo) ou longa, como é o caso de Luís Cília, a merecerem uma revisitação. 1971 é, sobretudo, o ano do “boom de José Mário Branco”, do “disco-renovação de Adriano Correia de Oliveira” e do “disco-revolução de José Afonso”, como resume José Jorge Letria, e de Sérgio Godinho, que ninguém conseguia dizer de onde vinha.

Este é um livro também bem documentado na imagem, com fotografias de músicos, bastidores, concertos e festivais, instantâneos privados, e que nos traz ainda muitas capas de discos quase nada vistos, e raramente ouvidos. Como também aconteceu com as “duas ou três” mulheres do canto de intervenção — onde se fala de Ana Maria Teodósio, Lídia Rita e Rita Olivaes — que o tempo e o machismo não deixaram vingar.

A atenção às histórias leva-nos pelos bastidores da gravação de discos, pela forma como a ditadura se metia no dia-a-dia de todos, com um José Mário Branco em grande sofrimento a sentir-se impotente no exílio de Paris, “não é a vida, nem é a morte”, mas a procurar sempre pontes para a tradição portuguesa. Ou pela inesperada vontade de criar algo diferente, como fizeram Raul Indipwo e Milo MacMahon no seu Duo Ouro Negro, que usaram recolhas folclóricas angolanas do Museu do Dundo. Como assinala Freitas Branco, “nem o inventivo produtor José Mário Branco ousaria utilizar as recolhas de Lopes-Graça e Giacometti numa gravação”.

Cheirava a revolução na música — e no país. Três anos antes de Abril, em Paris, “quatro amigos abraçados”, José Mário Branco, José Afonso, Francisco Fanhais e Carlos “Boris” Correia, “à moda alentejana, um frio de rachar, sobre a gravilha, a arrastar os pés de madrugada, com o técnico de som agachado para captar o instante, em gravação multipista”, apontavam ao regime — e desse registo nasceram os passos de Grândola, Vila Morena. “Era apenas uma canção, um completo tiro no escuro, quem diria, em cheio na ditadura.” Este livro canta a liberdade em todas as linhas e páginas.

 

 

 

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A Revolução antes da Revolução — O ano que mudou a música popular portuguesa
Luís de Freitas Branco
Livros Zigurate, 2024, 300 pp., 18,80€

[Artigo originalmente publicado no 7MARGENS, a 23 de agosto de 2024. Na foto principal: chegada de cantores exilados ao Aeroporto de Lisboa, com familiares e amigos. Da esquerda para a direita: José Jorge Letria, Zeca Afonso, Lucília Branco (tia-avó de José Mário Branco), José Mário Branco, Isabel Alves Costa, José Duarte, Sara Monteiro (mãe), Celeste Fernandes Sá e, atrás, Adriano Correia de Oliveira (segundo legenda da página Antifascistas da Resistência). Foto © Carlos Gil; na foto inserida no texto: o autor do livro, Luís de Freitas Branco, que é trineto do compositor Luís de Freitas Branco e bisneto do musicólogo João de Freitas Branco. Foto © Livros Zigurate.]

Agosto 26, 2024

Visite o andar-modelo. Há muitos e bons livros para lembrar Abril

Miguel Marujo

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(ilustração de Nuno Saraiva, para o livro 25 de Abril – No Princípio Era o Verbo)

 

 

Abril, livros mil é o cliché óbvio, e até preguiçoso, para o manancial de edições no mercado livreiro português sobre os 50 anos do 25 de Abril ou que, aproveitando a efeméride redonda da Revolução dos Cravos, se inscrevem na história da ditadura do Estado Novo e da democracia nascida em 1974. O 7MARGENS publicou três (primeiras e breves) propostas que li. Abril é sinónimo de diversidade e as férias (que restam) podem ser ocasião para descobrir mais como se fez a democracia que vivemos há cinco décadas. 

 

 

 

25 de Abril — No Princípio era o Verbo. Este livro é uma festa, avisa-nos logo no seu início, e procura “pintar” nas suas páginas essa festa que foi o dia inicial e limpo e tudo o que se lhe seguiu. Com texto de Manuel S. Fonseca, as ilustrações de Nuno Saraiva (cujo traço único criou um estilo muito próprio, desde Filosofia de Alcova, no velhinho O Independente) trazem-nos a algazarra própria de um povo que tirou a mordaça e soltou o verbo, após 48 anos de ditadura.

No primeiro quarto do livro encontramos uma cronologia horária dos acontecimentos que fizeram a mais improvável das revoluções contra a mais esclerosada das ditaduras de então, que ajuda o leitor mais esquecido ou desconhecedor nos detalhes que levaram o 25 de Abril a derrubar o regime. É esse o principal objetivo deste livro: contar-nos as palavras de ordem, as frases livres, as pichagens que encheram paredes de alegria e provocação, os slogans que fizeram caminho numa democracia que dava os primeiros passos.

É, pois, “um livro livre”, como descreve o autor (e editor) Manuel S. Fonseca, com os 50 anos de Abril a serem pretexto para tamanho desopilanço. “Os 50 anos do 25 de Abril de 1974 têm de ser festejados”, defende. Para logo explicar o óbvio (mas que nestes tempos precisa de ser lembrado): “O 25 de Abril foi uma das mais impressionantes algazarras de liberdade, loucura, e inocente destrambelhamento colectivo que o modesto povo português já viveu.” Bela definição, que tem a melhor das melhores traduções nos restantes 3/4 do livro: “Irrompem frases, palavras de ordem, diálogos que hoje precisamos de nos beliscar para acreditar que não foram inventados pelos irmãos Marx, se Karl Marx me perdoa ser assim secularizado”, aponta Fonseca, que faz notar que “a acompanhar este alucinado desatino das palavras”, as ilustrações de Nuno Saraiva recriam “esse Portugal de cabelos desvairadamente compridos, calças boca de sino, soutiens a serem queimados, ainda tão rural, às vezes involuntariamente quase hippie, esse Portugal a pôr a ávida boca na orgia de novos costumes”. E há exemplares deliciosos de tantas belas palavras, que bebem no socialismo, no anarquismo, no reacionarismo, ou apenas na imaginação mais imaginativa: “O socialismo está em construção, visite o andar modelo”; “Abaixo a foice e o martelo, viva o Black and Decker”; “A terra a quem a trabalha, mortos fora dos cemitérios já!”; “Nem mais um soldado para as colónias! Nem mais uma freira para o céu!”

Este é um livro que se revisita uma e outra vez, e a cada palavra e a cada ilustração solta-se a gargalhada e o sorriso, por um país que é livre e que provou que sabe ser feliz. Sempre.

 

 

 

Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975. A historiadora Irene Flunser Pimentel apresenta, com este seu novo livro, “episódios menos conhecidos” do período que percorre o dia da revolução à data que consolida a democracia no país. Não é, diz-nos a autora – reconhecida pelos seus estudos e livros sobre o Estado Novo e a PIDE, a polícia política da ditadura – uma “análise exaustiva” à implantação da democracia, apresentando antes “uma análise pessoal” ao que se passou naquele tempo de 580 dias, optando Irene Flunser Pimentel por destacar o que aconteceu à ex-polícia política e olhar para a ação dos Estados Unidos, da França e da Alemanha.

Este livro estende, no entanto, o seu tempo para lá das datas enunciadas no título, para melhor enquadrar o que se viveu em Portugal, mergulhando nos últimos anos do regime ditatorial e da guerra colonial, com um especial destaque no “Exercício Alcora”, que juntou a ditadura de Lisboa aos regimes racistas e de apartheid da África do Sul e da Rodésia numa “Aliança Contra Rebeliões em África”. E logo por aqui entramos em episódios menos conhecidos daqueles tempos, percebendo como a estratégia militar dura (nomeadamente de Kaúlza de Arriaga, que conduziu a massacres como o de Wiriyamu, em dezembro de 1972) era criticada por responsáveis sul-africanos, por exemplo, por afastar as autoridades portuguesas das populações locais.

Irene Flunser Pimentel debruça-se ainda sobre como as autoridades policiais e de informação dos EUA, França e Alemanha “ajudaram também ao esforço da Guerra Colonial do regime de Salazar e Caetano” e de como, depois do 25 de Abril, os serviços secretos destes três países mantiveram uma “atitude e postura não neutra” nesse “ano e meio português”.

Centrando-se no que aconteceu à ex-polícia política, na ação daqueles três países e na centralidade dos militares no processo revolucionário, a historiadora avalia também a “autonomia do campo político”, deixando de lado um olhar sobre as movimentações populares e resgatando os tais episódios menos conhecidos que a capa do livro regista, no modo rigoroso reconhecido a Irene Pimentel. Obrigatório.

 

 

 

25 de Abril: A transformação nos “media”. Mário Mesquita (1950-2022) é um dos nomes que poderá não dizer muito a novas gerações, até no jornalismo, mas que viu a sua obra (académica e jornalística) ser publicada e estudada com regularidade, tornando-a acessível mesmo aos que desconhecem o seu percurso nos média em Portugal.

É o caso deste livro recente (e póstumo, “uma vontade sucessivamente adiada”) 25 de Abril: A transformação nos media, que traça um panorama amplo sobre o mundo da comunicação social, sinalizando (logo no início) “o papel dos media na consolidação da democracia portuguesa”.

Mesquita estabelece três tempos para o lugar da comunicação social nesta consolidação: 1974-1975, que define de “ideologias”; 1976-1987, que sintetiza em “instituições”; e 1987-1995, com o advento do “mercado”. Cada um destes momentos é dissecado em múltiplos textos, que vão mais fundo na abordagem, recusando a leitura mais simplista ou imediata, apesar dos textos terem sido escritos em momentos diferentes (1984, 1987, 1988, 1989, 1994, 1996, 2004 e 2019 – para se perceber a abrangência) e por motivos diversos. Por exemplo, nos dois primeiros anos quentes da revolução e do PREC, Processo Revolucionário Em Curso, Mesquita sintetiza a comunicação social, de novo em três palavras: “Militantes, porta-vozes e jornalistas”, referindo-se à “tentação do monolitismo ou a ignorância dos limites do poder dos media”. Antecipa-se uma leitura crítica, num tempo em que coexiste uma “experiência original”, a do modelo das democracias políticas com a imprensa estatizada (1976-1983). A leitura do índice é, por si, um excelente resumo (pela acutilância dos títulos) do que se encontra no livro, que também revisita o caso República, como “um incidente crítico” e a recetividade francófona (com a leitura de 100 edições de cinco jornais da imprensa francesa, belga e suíça) à Revolução do 25 de Abril.

Se este é “um livro que faltava” sobre “os media na revolução e a revolução nos media”, como o apresenta Pedro Marques Gomes, por ele passa também o olhar do “anatomista dos media que sonhava com jornais perfeitos”, na definição feliz de Carla Baptista, que nunca se ficou por uma leitura a preto e branco deste universo no seu percurso profissional. As zonas cinzentas também são notícia e, no caso, objeto de estudo por um homem apaixonado pelo jornalismo. O texto final sobre as comemorações dos 30 anos de Abril nas páginas do Jornal de Notícias são disso um exemplo. O título volta a ser um tratado: “Memória e esquecimento na reconfiguração jornalística da Revolução dos Cravos”. O que teria escrito Mário Mesquita sobre os 50 anos, festejados em abril passado, vistos pelos jornais, num tempo em que os saudosos do outro tempo achincalham a democracia, sentados na Assembleia da República? Provavelmente muito do que se lê nestas páginas, que servem de guião para o futuro. Uma leitura essencial.

 

 

 

25 de Abril — No Princípio era o Verbo
Manuel S. Fonseca e Nuno Saraiva
Guerra e Paz, 2024, 188 pp.

Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975. Episódios menos conhecidos
Irene Flunser Pimentel
Temas e Debates, 2024, 471 pp.

25 de Abril: A transformação nos media
Mário Mesquita
Tinta-da-China, 2024, 372 pp.

[artigo originalmente publicado no 7MARGENS, a 23 de julho de 2024]

Junho 14, 2024

Estes textos foram visados pela censura. Além-Mar: a revista suspensa pela ditadura

Miguel Marujo

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O título “Os Missionários e as Pátrias” ficou reduzido a “Os Missionários”. A censura implicava com tudo o que indiciasse um apoio às independências africanas. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

 

Por causa de um texto sobre a visita do Papa Paulo VI a um país de que Salazar não gostava, a Índia, a revista missionária Além-Mar esteve suspensa cinco meses entre 1964-65, tendo depois sido obrigada a sujeitar os seus textos à Censura ditatorial do Estado Novo. Discussões com censores, cartas, cortes absurdos, de tudo a revista e os missionários foram sofrendo. Alusões a independências ou liberdade, textos sobre Luther King ou um “bispo de camisa cinzenta”, frases do Papa ou de bispos que criticavam o poder de uma minoria branca — nada passava no crivo da Censura. Uma história praticamente inédita, aqui contada pelo 7MARGENS a partir dos arquivos da revista, reconstitui o que se passou. 

 

 

Martin Luther King foi morto nos Estados Unidos a 4 de abril de 1968. O pastor batista e ativista americano pelos direitos humanos, em particular da população negra, caiu mas não foi derrotado. “Morto mas não vencido” titulou a revista Além-Mar, dos Missionários Combonianos, nesse ano de 1968. O crivo do lápis azul censor não deixou que fossem publicadas palavras, fotos e mensagens de e sobre Luther King. “Cortado”, lê-se no carimbo em cada uma das três páginas que foram visadas pela Censura. O texto seria para sair no n.º 5 da revista, de maio de 1968, e deu entrada na censura em 18/4/68. Num envelope onde se guardam as provas dessas três páginas, alguém escreveu: “Morte de Luther King – um artigo que não pôde ser publicado…”

Não é de espantar: a ditadura do Estado Novo, regime que mantinha uma guerra contra movimentos que exigiam a independência dos seus países e territórios de África, nunca poderia autorizar que uma revista vertesse palavras de justiça e de dignidade. “O negro precisa de convencer o homem branco que pretende a justiça para ambos; tanto para ele como para o homem branco”, disse Luther King num dos seus sermões, reproduzido de um livro publicado por cá em 1966, Força para Amar (numa edição esgotadíssima da Livraria Morais Editora). Os responsáveis da revista comboniana replicaram estas e outras palavras do reverendo americano, mas a censura não foi de modas: um corte total, sem contemplações.

Na redação da Além-Mar, em Lisboa, há uma gaveta grande de arquivo onde se guardam muitos dos textos cortados a azul. Até 1964, as publicações católicas escapavam ao crivo dos censores. Mas, em 1964, um texto que não agradou ao regime levou à suspensão da revista. O volume que mantém em arquivo os exemplares publicados no ano de 1964 termina em novembro, o de 1965 é retomado em maio. Pelo meio, há cinco meses – de dezembro de 64 a abril de 65 – em que a revista está suspensa, depois da publicação de um artigo sobre o Congresso Eucarístico Internacional, na Índia.

 

Suspensão noticiada no Brasil

 

A notícia da suspensão da revista é dada no Brasil, pelo jornal O Globo, a 16 de novembro de 1964: “O Governo do primeiro-ministro Oliveira Salazar suspendeu, ontem, por tempo indeterminado a revista católica Além-Mar e confiscou sua edição de Novembro, proibindo-lhe a circulação, por haver publicado um artigo sobre o Congresso Eucarístico Internacional, que será instalado no fim do mês em Bombaim.”

 

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A notícia da suspensão da revista não chegou aos seus assinantes, mas foi dada no Brasil,
no dia seguinte à decisão da Censura. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

É por causa do texto sobre a viagem do Papa Paulo VI à Índia que a revista passa a ter de sujeitar os seus trabalhos aos homens do lápis azul. Três anos antes, as tropas da Índia tinham ocupado Goa, Damão e Diu, então colónias portuguesas naquele país. E o ditador não gostou de ver o Papa visitar a Índia, ignorando os protestos de Portugal.

O autor de “Um Congresso para a Índia – Na União Indiana”, Fábio Pimentel, ignora os acontecimentos de dezembro de 1961 e, apesar de fazer um retrato crítico da Índia, “a terra dos esqueletos ambulantes, dos desnutridos, das crianças atacadas de kwashiorkor”, atreve-se a dizer que o Governo de Nova Deli se esforçava por melhorar a situação social da sua população: “O grande problema (…) é o drama da fome. (…) Em Calecute, (…) todos os dias de manhã os bombeiros passam a recolher os que durante a noite faleceram por falta de um punhado de arroz. Não se exagere, porém, pois lentamente o governo está a debelar o flagelo. Embora a população tenha aumentado, em dez anos [de independência], de 361 para 438 milhões de habitantes, o rendimento individual, a alimentação em calorias e a idade média subiram consideravelmente.”

Mais: o articulista sublinha uma preferência pelo regime indiano, num “desafio” entre China e Índia, que “continua afinal mais vivo que nunca”: “A China não desiste de tentar atrair a si o mundo em desenvolvimento. Religiosamente, porém, é mais provável e preferível que seja a União Indiana a ganhar a batalha. A constituição que Nehru forjou é iminentemente favorável à liberdade religiosa. Ele mesmo afirmou um dia: ‘A ideia de um estado inteiramente hindu é totalmente ultrapassada.’ Isto é um factor muito positivo. Outro motivo de esperança é que em todos os estados de que o país se compõe a hierarquia católica está firmemente organizada, contando 50 dioceses, na maior parte administradas por Bispos indianos. Mas o Congresso de Bombaim, organizado sob o signo do Concílio, não alimenta menos as nossas esperanças. Eu creio que ele fará soar finalmente a hora da evangelização da Índia e da Ásia. Os obstáculos (a que não pude referir-me) são muitos mas a escolha de João XXIII não poderá deixar de ser um gesto providencial.”

 

As desculpas do provincial e a censura prévia

 

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Carta do padre Ramiro Loureiro da Cruz, provincial dos Missionários Combonianos:
o gesto de contrição não comoveu as autoridades do regime. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

Parágrafos como aqueles levaram o Governo de Salazar a impor o silêncio à revista. O superior provincial do Instituto Missionário dos Filhos do Sagrado Coração de Jesus, conhecidos por combonianos, tinha admitido a possibilidade de um “exame prévio” à publicação, para evitar a suspensão da revista, mas de nada valeram os seus ofícios junto das autoridades. A 9 de novembro de 1964, o padre Ramiro Loureiro da Cruz envia uma longa carta ao subsecretário da Presidência do Conselho, Paulo Rodrigues, onde expõe a suspensão da revista, ocorrida a 5 de novembro, assumindo logo que “o autor do artigo [“Um Congresso para a Índia”] foi infeliz na maneira de apresentar este acontecimento da Igreja, não tendo em conta os sentimentos do nosso povo em relação àquele país que tanto nos fez e faz sofrer” e pedindo “imensa desculpa pela grande mágoa que o citado artigo causou”. Apesar da contrição, Loureiro da Cruz afirma: “Cumpre-me todavia garantir-lhe que ele não foi publicado com más intenções da nossa parte.”

O provincial insiste em sublinhar a importância da Além-Mar para os combonianos. “A decisão tomada com a nossa revista vem prejudicar vitalmente o nosso Instituto que se destina unicamente à obra das Missões Católicas nas Províncias Ultramarinas e que tem nesta publicação mensal o seu meio de contacto com os seus amigos e benfeitores de quem recebe as esmolas para poder sustentar os seus alunos portugueses, futuros Missionários do Ultramar, não tendo nós alguma outra fonte de subsídios.” Antes de apontar dois caminhos para o regresso imediato da revista, Ramiro Loureiro da Cruz insiste nas desculpas junto de Paulo Rodrigues: “Profundamente penalizado por termos causado este lamentável contratempo, peço humildemente a V.ª Ex.cia se digne autorizar que a Revista do nosso Instituto continue a sua publicação, até para evitar confusão e desorientamento entre os seus 6.000 assinantes que com certeza ficariam surpreendidos por não receberem regularmente os seus exemplares.”

Na carta, Loureiro da Cruz indica ainda: “para evitar, no futuro, desgostos análogos [ao do texto publicado], já substituí o corpo redactorial da Revista dando-lhe novo director e novo redactor e declaro-me absolutamente disposto a acatar quaisquer disposições que os Serviços da Censura hajam por bem indicar-me inclusivamente a censura prévia que até preferiria”. De pouco valem estes gestos do superior dos combonianos. Não há nos arquivos nenhuma resposta do subsecretário de Estado da Presidência do Conselho. Num breve texto disponibilizado no site do Parlamento, José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues, que foi deputado na Assembleia Nacional, é descrito, no seu “perfil político-ideológico” como “católico militante”, “membro da Ação Católica: Presidente geral da Juventude Universitária Católica e Vice-presidente nacional da Juventude Católica Portuguesa; [e] membro das Conferências de S. Vicente de Paula, ficando sempre ligado à obra”. Nem este perfil ajudou. A suspensão mantém-se por mais cinco longos meses.

 

Depois da suspensão, a censura

 

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A censura podia atingir títulos, frases, textos inteiros ou fotografias. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

A partir desse maio de 1965, começa a aventura quotidiana de enviar os textos à censura e de discutir os cortes com os funcionários do lápis azul. “Às vezes deixavam passar na primeira prova e cortavam na segunda, outras cortavam só por causa do título ou porque se falava em países pouco gratos ao regime português”, recordava em fevereiro de 2001, ao jornal Público, um antigo jornalista da Além-Mar, Rogério Nunes. Mas nem só de razões políticas se faziam as objeções dos censores. Textos ou frases que atentassem contra a moral e os bons costumes também eram riscados pelo grosso lápis azul dos zeladores.

O regresso da publicação faz-se sem se mencionar explicitamente a suspensão. No editorial, sob o título “O Novo ‘Além-Mar’”, o articulista inicia o texto com uma breve história: “Um jovem dizia-me há dias: «Já tenho saudades de «Além-Mar».» Após longos meses de letargo «Além-Mar» apresenta-se de novo em público. Este primeiro número abrange forçosamente um longo espaço de tempo.” E segue por aí fora, apontando que, “durante estes meses «Além-Mar» robusteceu-se, (…) mas também tomou consciência de si mesmo. Definiu o seu rumo.” E nesse rumo adivinha-se a continuação da subtil abertura a temas e áreas sensíveis para a ditadura. “«Além-Mar» como órgão de expressão missionária, no desejo único de melhor servir Cristo e a Igreja, quer tomar um lugar bem determinado no grande «Diálogo» entre a Igreja e o Mundo, diálogo que foi reaberto e reforçado por Paulo VI e pelo Concílio em hora feliz oportuna qual suspirada resposta a uma exigência de intercomunicação leal, aberta e confiante. Agora é preciso continuá-lo e alimentá-lo.” E este diálogo passa pelo contacto com as pessoas e os povos da África negra, insiste o editorialista, nomeadamente fazendo sentir “os problemas que os afligem, os pensamentos que os preocupam, as aspirações que querem concretizar. Eles são nossos irmãos, irmãos mais pobres. (…) Afinal têm um ser «ser humano» igual ao nosso, filhos do mesmo Deus a quem ousamos chamar Pai (Pai-Nosso: de nós e deles).”

O ano de 1965 é, dizem-nos os documentos guardados no arquivo comboniano, um ano de vigilância apertada aos textos da Além-Mar. A mudança do corpo redatorial não atenua a abertura da revista a temas sensíveis para o regime. Só a ida ao “exame prévio” da Censura travava a publicação desses textos.

Um artigo crítico da eventual islamização do Sudão, de junho, em que se reproduz um editorial do jornal sudanês em língua árabe, Al-Sahafa, que ataca o Papa, é cortado nesses parágrafos. Depois o corte é levantado. Noutros casos, é “mantido o corte”, como o título de um artigo sobre “Os missionários e as pátrias”, que fica só “Os missionários”. Ou um outro texto breve, que cita Paulo VI na encíclica Ecclesiam Suam. “É necessário que nós nos identifiquemos, até certo ponto, com as formas de vida daqueles a quem desejamos levar a mensagem de Cristo. É necessário, ainda antes de falar, auscultar a voz e mesmo o coração do homem, compreendê-lo e, na medida do possível, respeitá-lo…” Não passou. E apesar de um pedido para rever este corte, o censor não quis saber: “Mantém-se o corte”. Outro texto sobre “o que foi escrito pelos intelectuais africanos nas vésperas do Concílio Vaticano II” é também ele todo riscado. Três páginas que se guardam numa gaveta do arquivo da Além-Mar. “Mantém-se o corte”, repete-se.

 

Um governo zangado com o Papa

 

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Paulo VI fala de liberdade e independência? Corte-se a frase do Papa. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

O Papa Paulo VI é também visado, como já se viu. A notícia da presença de dois bispos de Angola em Kampala (Uganda), por ocasião da visita papal, em 1969, é também cortada. “Contrariamente ao que chegou a ser difundido pela Imprensa, dois bispos da África Portuguesa deslocaram-se ao Uganda por ocasião da visita de Paulo VI”, escreve a Além-Mar, que entrevista Altino Ribeiro Santana. “Cremos que as suas palavras ajudarão a desfazer alguns equívocos.” Nova revisão da Censura: “s/ efeito o corte”.

A atenção a Paulo VI vem de trás, como se viu, por causa da Índia. Depois de levantada a suspensão da revista, em 1965, para o número de agosto, há uma pequena notícia sobre a entrega de credenciais do novo embaixador da Zâmbia ao Papa que é, toda ela, cortada. As palavras de Paulo VI eram impossíveis de passar: “Aproveitamos desta ocasião para dar, mais uma vez, as nossas melhores felicitações à África, o grande continente que está ingressando na liberdade e na independência (…)”.

O Governo do Estado Novo continuava zangado com o Vaticano, apesar de se afirmar “como defensor da Igreja Católica”, como recordou o historiador João Miguel Almeida, num texto no 7MARGENS. Estávamos ainda longe da ferida reaberta por Paulo VI ao receber, a 1 de julho de 1970, os três líderes dos movimentos de libertação das então colónias portuguesas – Amílcar Cabral, do PAIGC, Agostinho Neto, do MPLA, e Marcelino dos Santos, pela Frelimo –, mas a política portuguesa de ocupação de territórios africanos colidia com o que a Santa Sé ia afirmando, provocando” incómodo e crispação” ao governo de Salazar.

“A encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, fora publicada em Portugal com a referência ao direito de autodeterminação dos povos cortado. A ida de Paulo VI à ONU fora considerada um acontecimento “horrível” por Salazar e a deslocação do Papa à Índia fora qualificada por Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, como um “agravo”, por causa da anexação de Goa pelo Estado indiano. No entanto, a hábil diplomacia portuguesa conseguira varrer as sombras da imagem das relações entre Portugal e o Vaticano, explorando a visita de Paulo VI a Fátima em 1967. A chegada de Marcelo Caetano ao poder pareceu anunciar uma melhoria nas relações entre o Estado Novo e a Santa Sé, como fim do exílio de dez anos do bispo do Porto, em 1969”, sintetizou João Miguel Almeida. Em vão. A Censura também aperta nestes anos.

Paulo VI é um dos nomes que mais engulhos causava ao regime, por causa dos ventos que sopravam no Vaticano. E por várias vezes a Além-Mar tinha cortes dos coronéis da Censura nas notícias que dava sobre o Papa. O jornalista César Príncipe, que em 1979 publicou Os Segredos da Censura (Editorial Caminho, 2.ª edição, 1994, entretanto reeditado pela Afrontamento), revelava nessa obra que “milhares de nomes (nacionais e internacionais) constavam dos ficheiros do ostracismo oficial”. Na nomeação de uma ínfima parte dessa lista, César Príncipe identificava “a viúva de Luther King”, Coretta King, mas também vários dignitários da Igreja, “fosse o bispo de Cádis, a hierarquia da Rodésia, do Brasil e do Peru, fosse Paulo VI, em Roma, Bombaim, Hong-Kong ou Kampala”. “O contencioso entre o Estado [português] e a Igreja (mau grado a Concordata e os Acordos Missionários) ia enrolando, na curva descendente do fascismo, em bola de neve ácida: padres e católicos presos, desterrados, torturados e «suicidados», templos «escutados» ou assaltados por polícias e cães, acções empreendidas em defesa da «civilização cristã»”, resumiu César Príncipe.

 

Os cortes das palavras dos bispos da Rodésia

 

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Os bispos da então Rodésia (hoje Zimbabué), críticos do regime da minoria branca,
também não passaram no crivo zeloso dos censores. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

Os bispos da Rodésia também são um alvo a cortar, como tinha notado Príncipe. A Além-Mar coleciona vários exemplos de artigos sobre este país – que é hoje o Zimbabué e que, de 1965 a 1979, foi um Estado não reconhecido, liderado por uma clique de colonos brancos, sob o governo de Ian Smith – que foram alvo de censura, na reprodução de textos do episcopado rodesiano.

Em 1966, por exemplo, o artigo “O problema da Rodésia”, no qual se dá nota da posição dos bispos católicos, é cortado. Um outro, de novembro desse ano, é autorizado com cortes. Uma única frase é extirpada ao artigo: “Não podemos deixar de dizer que o «apartheid», moralmente considerado, é caminho errado, porque «contrário [à] Lei divina», como afirmaram há pouco os Bispos do país.”

Em 1970, há dois artigos com sortes distintas. “Rodésia: de novo a Igreja diz não” é “autorizado com cortes”. Um outro, “Rodésia: «crise de consciência»” é cortado. Começou por ser “Autorizado com cortes”, como se lê no carimbo posto na página, com uma nora manuscrita: “Válidos os cortes a vermelho”. Depois é tudo cortado com lápis azul e carimbos. Num deles lê-se: “Suspenso”. Um só parágrafo descrevia o que era este texto, e deixava adivinhar o corte da Censura: “Gastou-se muita tinta para traçar as dimensões do regime racista de Ian Smith: uma minoria branca (230.000) que domina e subjuga uma minoria negra (mais de 4 milhões). Mas nenhuma tomada de posição foi tão convincente, tão firme e tão clara como a dos bispos rodesianos, que condenaram por mais de uma vez a segregação governativa.”

Em 1972, o artigo “Rodésia – Acordo ou traição” é enviado à Censura em 20 de janeiro, e recebe a autorização de publicação com o corte do último parágrafo: “E, ao fim e ao cabo, quem perderá a partida neste jogo de interesses serão os cinco milhões de negros subjugados, uma vez mais, pelos 250 000 brancos muito ciosos da sua soberania.” Outro artigo merece também substantivos cortes. Em “Rodésia – A Igreja local condena o Acordo anglo-rodesiano”, a “carta pastoral do presidente da Conferência Episcopal da Rodésia e bispo de Umtali, Mons[enhor] Daniel R. Lamont” leva duas grandes talhadas, que vale a pena reproduzir.

“[As duas partes] Em vez de exprimirem um tratamento uniforme de justiça e uma preocupação imparcial pelo bem comum, as propostas reflectem o modo de pensar da minoria que governa e a sua preocupação em assegurar a atual posição de privilégio. E confia-se que a população africana, pouco consultada sobre a matéria, se conforme com aquelas pequenas concessões que os seus amos europeus lhes outorgam… (…)

Além do mais, a escandalosa e injusta distribuição da terra – que historicamente foi fonte contínua de descontentamento onde quer que se tenha imposto – continua ainda a ser essencialmente a mesma, enquanto se podiam ter tentado esforços generosos e iniciativas para a rectificar. Numa palavra: esperar que toda uma população, que ultrapassa os que governam numa proporção de 20 para 1, se sinta satisfeita com uma condição de vida que lhe concede apenas uma existência marginal na vida social, económica, política e cultural do seu país, e a que por razão da sua raça se nega a possibilidade do desenvolvimento integral, é simplesmente multiplicar o descontentamento e provocar o último desastre. Como é possível admitir-se que um povo, com um mínimo sentido de justiça, feche os olhos perante tais iniquidades? Como é possível exigir-se razoavelmente a seres humanos que permaneçam especificamente cidadãos de segunda categoria na sua própria terra? Como é possível que homens e mulheres cristãos se mostrem insensíveis às humilhações que, em nome de uma superioridade racial, se infligem aos seus irmãos?…”

Num país que se dizia defensor da Igreja, a voz de bispos como os da Rodésia não tinha lugar. Afinal, um Estado que segregava a população negra das suas então colónias não podia deixar que fosse publicado um artigo que poderia ser visto como falando, a papel químico, da realidade de Angola, Guiné ou Moçambique, por exemplo. Bastava fazer corta e cola e era Portugal o alvo da crítica.

 

Vigilância constante aos artigos da revista

 

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O editorial do primeiro número depois da suspensão: a paragem forçada não era referida explicitamente, apenas de forma velada. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

A vigilância não abrandaria, ao longo dos anos. A 7 de julho de 1969, o diretor dos Serviços de Censura, escreve ao diretor da revista questionando o facto de não terem sido atendidos todos os cortes que os censores tinham imposto: “Verificando-se pela leitura das 1ª e 2ª colunas da págª 5 do N.º 7 dessa revista, relativo ao mês corrente, que não foram inteiramente cumpridos os cortes efectuados por estes serviços na respectiva prova, solicito a V. Exª que se digne informar-nos do que se lhe oferecer acerca do assunto”.

O padre Carlos Neves Sobrinho responde na volta do correio, a 8 de julho. Os cortes “foram realmente e rigorosamente respeitados”, argumenta. “Apenas tive conhecimento dos cortes, desloquei-me pessoalmente à Sede desses Serviços e solicitei uma audiência do Sr. Director. Fui recebido por um Senhor Oficial a quem expliquei a minha estranheza por tais cortes, tendo obtido o levantamento de alguns deles.” E como prova do que diz, o diretor da revista junta uma fotocópia da “prova censurada da página em causa, onde claramente se podem ler os “Sem efeito” escritos à mão pelo Sr. Oficial que me atendeu na vez do Sr. Director e cujo nome ignoro”.

A Censura recua outras vezes. Um texto de quatro páginas, sobre os dez anos da independência da Guiné-Conacri, escrito pelo comboniano Nazareno Contran, para a edição de maio de 1969, que deu entrada nos serviços a 12 de abril desse ano, é cortado. Depois vem a revisão de um oficial, em nome do diretor: “Autorizado, mas o título do artigo e as gravuras devem ser submetidas a censura prévia”, e assina “Lx. 26-4-969. Pelo director, J Chaves”.

Outras vezes os cortes são quase milimétricos, em breves frases, mas bem cirúrgicos naquilo que se quer esconder dos leitores da revista. Num texto sobre a fome, para o número de março de 1969, o censor mandou retirar duas frases: “Foi este o caso da colonização. Com o colonialismo, chegou a fome aos países do Terceiro Mundo porque os seus recursos foram explorados vergonhosamente por alguns poucos.” E parte de uma outra:“(…) contra a opressão que há quatro séculos e meio sofrem, desde que começou a colonização, o domínio das potências europeias.”

 

Os leitores escrevem, os censores cortam

 

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“Os leitores escrevem”, como diz o título da secção, mas a revista não pode publicar,
manda a Censura. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

Os responsáveis da Além-Mar questionam muitas vezes os censores sobre os cortes feitos, e insistem no seu levantamento, com mais ou menos sucesso. A 9 de novembro de 1971, o diretor da revista, Carlos Neves Sobrinho, escreve ao “Dr. Geraldes Cardoso, Diretor-geral da Informação”, para protestar por cortes na secção de cartas dos leitores. “Com grande surpresa minha, as duas provas em causa regressaram com duas cartas e duas respostas cortadas. Além disso, uma terceira carta sofreu um corte nos últimos períodos. Não me conformei com os cortes, por os julgar fruto de demasiada severidade da parte do oficial censor, e tentei falar com o Sr. Director dos Serviços de Censura, mas não consegui.” Sem sucesso, os cortes mantiveram-se, por isso Carlos Neves Sobrinho recorria hierarquicamente. “Sinceramente, no momento de entrar em vigor a nova Lei de Imprensa recentemente aprovada pela Assembleia Nacional, parece-me que os cortes feitos à nossa revista revelam um rigorismo exagerado.”

Uma das cartas cortadas era sobre essa nova lei de Imprensa, com um leitor do Funchal, não identificado, a agoirar que a mesma “não garante mais liberdade de expressão de pensamento que a Censura”, pelo que ia deixar de assinar jornais e revistas. E a outra era de um padre de Chaves, a partir de um testemunho de uma senhora que tinha estado em Moçambique, que se queixava que andaria a financiar padres missionários italianos “que coadjuvavam a campanha contra Portugal”. “Se julgando auxiliar as Missões Católicas entre infiéis estou a auxiliar inimigos do meu País, desde já faço marcha atrás e começo a recusar todo o meu auxílio material e moral a tão nefastos agentes da Civilização Cristã!”, indignava-se o padre Adolfo Augusto Magalhães Júnior. A resposta do articulista da Além-Mar a um e outro foi dura. Foi tudo cortado. Não consta do arquivo da revista qualquer resposta de Geraldes Cardoso, diretor-geral da Informação, a interceder pela sua publicação, mas nenhuma destas cartas de leitores foi publicada no número de dezembro de 1971.

Outra leitora que viu a sua carta cortada foi Maria do Rosário Neves Ferro, de Lisboa, que curiosamente surge num outro espólio, o dos “Documentos Felicidade Alves” (disponibilizado pela Casa Comum, da Fundação Mário Soares), com uma carta de maio de 1970, dirigida a Nuno Teotónio Pereira, a solicitar “a junção da sua assinatura ao abaixo assinado dirigido ao Ministro do Interior para a libertação do Padre Felicidade Alves”. À Além-Mar, Maria do Rosário Neves Ferro dá conta que tomou conhecimento “com grande alegria” de uma “Mensagem do Conselho de Presbíteros da Beira”, assinada em primeiro lugar pelo bispo de Nampula. “Dela me fica uma impressão de amor a Nosso Senhor e aos irmãos, que me fez ter mais esperança de novo. Porque no vosso jornal ainda não vi a mínima referência a este documento, permito-me transcrever algumas partes para reflexão dos leitores.” Não passou, nem uma linha.

 

No estertor da ditadura

 

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O artigo sobre “o bispo da camisa cinzenta” também não resistiu ao lápis azul
e ao carimbo vermelho da Censura. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

O número de abril de 1974 ainda sai visado pela Censura. Nesse n.º 195, do Ano XIX de publicação, o editorial tem sinalizados “cortes apenas a vermelho”: “Há também quem expulse os missionários sob a acusação de colonialismo religioso e cultural ou de interferências nos negócios políticos da nação” – é a frase proibida no estertor da ditadura, numa referência à expulsão, decretada pelo regime, de nove missionários combonianos e do então bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto.

A Além-Mar não foi a única publicação católica a ter de ir ao “exame prévio” da Censura. A Voz Portucalense, criada a 1 de janeiro de 1970, também passou pelo mesmo calvário, em que “as instruções superiores para os agentes da ação censória manifestavam especial atenção a temas como a paz, a justiça social, aspetos da moral comportamental, a violência, a ação governativa, a ação da justiça e mesmo aspetos do universo internacional”. Tal e qual o jornal da diocese do Porto, a revista missionária comboniana via o mais inócuo dos seus textos cortados ou enxertados.

Num artigo a sair no número de abril de 1972, que deu “entrada na censura em 6/3/72”, “Impressões de uma visita às missões dos Capuchinhos em Angola”, há uma frase cortada, na quarta página: “Para subir é preciso passar pelo posto de controlo dos soldados de guarda à zona da barragem.” E mais abaixo, outra: “Pouco antes de Viana, a uns dez quilómetros da capital, deparamos com uma longa coluna militar que vai para o Norte substituir outros militares na zonas mais ameaçadas pelo terrorismo.” O censor evitava referências à guerra. “Autorizado com cortes”.

No ano de 1968, um texto que relata uma visita a D. José Dalvit, um comboniano que é bispo de S. Mateus, uma “pequenina cidade perdida no Estado do Espírito Santo”, no Brasil, é cortado de alto a baixo. O texto de duas páginas não aparenta ter particulares pecados contra a ditadura, mas o carimbo do censor é taxativo: “Cortado”. Título do texto: “O bispo da camisa cinzenta”. O autor, o padre Domingos Andriollo, confessa no final do artigo que não o mostrou antes ao bispo. “Quero que ALÉM-MAR lhe traga esta surpresa”. A censura não deixou.

 

[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 7 de maio de 2024]

Maio 09, 2024

O 25 de Abril chegou por pancadas na parede. O diário na prisão de Conceição Moita

Miguel Marujo

O 7MARGENS leu pela primeira vez pastas do arquivo pessoal de Maria da Conceição Moita, que estava presa em Caxias no dia em que a ditadura caiu. A libertação para esta professora e muitos opositores ao Estado Novo demoraria ainda a chegar: só aconteceu pouco depois das zero horas de dia 27 de abril. Eis um relato desses 141 dias.

 

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Com pancadas na parede, a notícia correu as celas. “Às 21.15 – o lado E. [esquerdo] informa de que houve um golpe militar e que foi derrubado o Governo de Marcelo Caetano”, escreve Maria da Conceição Moita, detida na cela 56, juntamente com Fátima e Helena.

O dia, aquele dia 25 de abril, uma quinta-feira, que era o sexto dia de “greve às visitas” e o segundo de “corte de recreios” tinha sido estranho: “Às 17.10m – os G.N.R. são substituídos por uma força de choque – têm capacete e estão especialmente armados. Na auto-estrada o movimento de automóveis é muito pouco. Às 18.30 – um automóvel na auto-estrada pára em frente da cadeia e buzina insistentemente. As camaradas da [cela] 54, no fim do carro desaparecer, comunicam-nos que perceberam que o carro comunicou uma mensagem da qual só perceberam as duas últimas palavras – derrubado e coragem. Comunicamos isto à sala 3 e 4 pela parede.”

Há outros dois detalhes no bloco-notas de Conceição Moita, que ajudam a perceber que algo de diferente se passava naquele dia 25: “Não tivemos jornal. As camaradas da ARA não tiveram julgamento, hoje.”

Conceição escreverá, eventualmente depois, num calendário que mantém na prisão de Caxias, no dia 26: “Libertação!” – a palavra que temia estar longe, chegava ao fim de mais de quatro meses e meio de prisão e tortura às mãos da PIDE/DGS, a temível polícia do Estado Novo, responsável pela censura, prisão e morte de muitos que se opuseram à ditadura de Salazar e Caetano. O 25 de Abril (para estes presos políticos) chegou por pancadas na parede, e apenas um dia depois. Foi uma “dupla libertação”, repetiria depois, muitas vezes.

Estes documentos, sem data, integram uma parte do espólio pessoal de Maria da Conceição Moita – antiga professora e ativista, que morreu em 30 de março de 2021 –, deixado à guarda do Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade Católica, e que o 7MARGENS consultou em primeira mão (oito de 14 pastas). Não é possível aferir quando foi escrito o bloco-notas, um “quase-diário”. Aparentemente terá sido já depois do tempo da prisão, a partir de outras notas e folhas manuscritas com calendários dos meses em que esteve detida, também incluídos no espólio, e que (apesar de também não estarem datados) serão desse tempo de cadeia.

 

Três folhas, cinco meses

 

Os calendários com o registo dos dias da prisão, incluídos no espólio pessoal consultado pelo 7MARGENS. Direitos reservados, reprodução proibida.

 

Os calendários são três folhas desenhadas à mão e cobrem os cinco meses da prisão, de dezembro a abril. No espólio há uma pequena folha, assinada por Ernestina Moita, a mãe de Xexão (como era chamada por familiares e amigos), onde consta que entregou “uns papelinhos com apontamentos de aniversários” para a filha. E lá estão os aniversários, mas também visitas, pequenos acontecimentos do quotidiano, idas à PIDE.

Conceição Moita sempre testemunhou os seus dias na cadeia, não omitindo o que sofreu às mãos dos esbirros da polícia política da ditadura: oito dias e oito noites sem dormir, uma violenta bofetada que lhe valeu uma queda desamparada seguida de violentos espasmos descontrolados, um dia inteiro na posição de estátua, sem se poder mexer, a centímetros de uma parede a que não se podia encostar. “Estava à beira da demência, do esgotamento físico e psicológico. Sentia um cansaço até ao fundo da alma”, contou à jornalista Joana Pereira Bastos, no livro Os Últimos Presos do Estado Novo Tortura e Desespero em vésperas do 25 de Abril (Oficina do Livro, abril de 2013, 1.ª edição).

No calendário de dezembro, os dias de tortura estão assinalados apenas com uma mancha vermelha que preenche aquelas longas horas consecutivas: de 6 a 13 de dezembro, todos os quadrados estão pintados, com duas únicas indicações. “Prisão”, no dia 6 (que coincide com um aniversário de uma amiga) e “Entrada na cadeia”, no dia 13. Esta mancha vermelha volta a repetir-se de 19 a 21 de dezembro de 1973 e de 2 a 4 de janeiro de 1974. Qualquer legenda seria desnecessária.

O uso dos calendários vai-se tornando mais intenso: há os aniversários e notas de visitas, que só mais tarde passam a ser mais descritivas. Em dezembro, Conceição Moita assinala três visitas, nos dias 17, 26 e 31, numerando apenas as mesmas: 1.ª, 2.ª e 3.ª – um registo que manterá em janeiro. A 5 do primeiro mês de 1974, Xexão escreve: “Licença para ler a Bíblia.” No dia 9, marca um risco vermelho no quadrado e escreve que recebe “licença para ler livros de índ.[ole] profissional”. No dia 11 anota: “Poema ao poeta.” A 12 escreve: “Companhia da Zé, Luísa, Fátima.” No dia 21 regista a “operação da Fátima” e a 22 o “1.º dia de jornal”.

Em fevereiro, o calendário de Conceição é cada vez mais preenchido – e aos pequenos episódios do dia-a-dia, juntam-se notas da luta dos presos. “Li ‘Um sorriso ao pé da escada’ do H.[enry] Miller”, abre o dia 1, e dia 2 traz o regresso da companheira de cela: “Chegada da Fátima do hospital”. No dia 4, “manif.[estação] MPLA” e no 5 “princípio greve de fome”, que termina a 12, no dia em que assinala também “fim do isolamento”.

Há uma aparente contradição neste registo, uma vez que, um mês antes, Conceição já tinha registado a “companhia” de outras três mulheres, não sendo claro se se trata de um novo período de isolamento. Nos testemunhos públicos, como aquele que deu ao projeto Mulheres de Abril, Conceição afirmou ter estado isolada um “mês e meio”, o que permite pensar que este é um segundo isolamento a que foi sujeita, eventualmente por causa de estar a fazer greve de fome. No dia seguinte, 13 de fevereiro, tem a “1.ª visita lá em baixo” e, no dia 14, as companheiras Fátima e Zé são “notificadas”.

 

Levantamento de rancho

 

Maria da Conceição Moita, Xexão, em 2007. Foto: Direitos reservados

Maria da Conceição Moita, Xexão, em 2007. Foto: Direitos reservados.

 

No espólio arquivado de Conceição Moita, há uma lista de carros, com matrículas, e em muitos a referência à cor do veículo. No cabeçalho, a indicação “F. Pide” – que talvez signifique “funcionários da Pide”. No arquivo de Xexão, detida aos 36 anos, e que festejará os 37 presa, consta ainda o desenho de dois mapas das celas, com os nomes de (muitos) presos, no que parece ser um exercício posterior de memória.

Há também notas que se encontram em três longas e finas tiras de papel, densamente escritas em letra pequenina, com diferentes tipos de letra, e que fazem a “cronologia dos acontecimentos na GF [greve de fome]”, do “Lado esquerdo” da cadeia. Percebe-se por estas notas que diferentes formas de luta vão sendo ponderadas, de “levantamentos de rancho” a greves às visitas, às horas de recreio ou as greves de fome.

Já o bloco-notas, que terá sido escrito depois do tempo da prisão, eventualmente a partir de tiras de papel como aquelas, inicia-se a 4 de fevereiro: “Manifestação às janelas, pelas 23h. Dia do MPLA”, numa referência ao Movimento Popular de Libertação de Angola, uma organização independentista que lutava pela libertação do jugo colonial português. Também o dia 5 é mais detalhado: “Início da G.F. [greve de fome] Motivo: camarada em regime normal voltar a isolamento e ser submetido a interrogatórios.” De fevereiro, só tem mais esta entrada: “11 de fevereiro – Fim da G.F. às 22 horas. Greve de visitas das celas em regime normal até dia 16 inclusive”.

Estas notas voltam a encher-se de registos a partir do final de março, dando conta de um “levantamento de rancho ao jantar”, no dia 26, “como protesto pelo castigo a 2 camaradas do lado esquerdo que subiram aos muros do recreio”. De 27 de março a 1 de abril, os presos fazem “greve aos recreios em solidariedade com os camaradas castigados”. Alguns presos fazem greve de fome, nestes dias, e há uma “discussão às janelas sobre o problema de fundo em causa – o isolamento entre celas”.

O “problema do isolamento” é levado ao diretor da prisão de Caxias no dia 28 de março, que “concorda” que “o problema das mulheres a cumprir pena nesta cadeia é particularmente grave” e diz aos presos para fazerem “uma exposição”, que segue no dia seguinte para o diretor-geral de Segurança, o pide dos pides. Na carta, assinada por Maria Helena Vidal, Maria de Fátima Pereira Bastos e Maria da Conceição Moita, as reclusas entendem ser seu dever “chamar a atenção dos responsáveis” para a situação de más condições da cadeia, “manifestar quanto a achamos inaceitável e pede a sua urgente revisão”, pedindo ainda, “como princípio de resolução do problema, a existência de recreios conjuntos para os reclusos e reclusas em regime normal”, e que isto “tenha início o mais brevemente possível”. O diretor fez orelhas moucas – e as três signatárias continuam presas em Caxias a 25 de abril.

 

Um abecedário de pancadas na parede

 

Richter Frank-Jurgen, CC BY-SA 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0>, via Wikimedia Commons

Jorge Sampaio, que tinha sido um dos líderes da crise académica de 1962 e seria, já na democracia, líder do PS e Presidente da República, foi o advogado de Conceição Moita. Foto © Richter Frank-Jurgen, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons.

 

 

O isolamento era quebrado por pancadas nas paredes, como contou Conceição Moita ao projeto Mulheres de Abril. “Na cadeia aprendi a comunicar com as camaradas das celas do lado. Do meu lado direito, uma camarada fazia uns batimentos na parede que eram sempre os mesmos. Pus a hipótese mais lógica de cada pancada ser uma letra. Recorrendo ao papel higiénico e a um bâton que tinha dentro do bolso do casaco, fiz um abecedário para me orientar. Ela dizia-me sempre “olá”. Quando respondi “olá”, ficou contentíssima. Passámos a comunicar durante todo o tempo.”

No arquivo de Conceição, numa das tiras de papel, está escrito esse código de comunicação através das paredes da prisão de Caxias. “Para transmissões de parede de extrema conspiratividade, foi fixado um novo código. Deve ser precedido, após o sinal de início de comunicação, de 2 pancadas seguidas repetidas por 3 vezes. O código de letras é como se segue: 1. R, 2. S, 3. O, 4. M, 5. A, 6. I, 7. D, 8. E, 9. C, 10. T, 11. H, 12. P, 13. F, 14. B, 15. G, 16. L, 17. U, 18. J, 19. V, 20. ?, 21. H, 22. X, 23. Q, 24. 25. Z, 26. A, 27. S, 28. R, 29. O.” Não há erro de transcrição: as últimas quatro letras repetidas são para enganar os agentes da PIDE, como se esclarece logo: “Estes são ‘duplos’ das letras já representadas por outros nºs e para usar em subst.[ituição] para despistar os ‘escutas’ da Pide.”

Os dias na prisão de Conceição Moita sucedem-se ao ritmo das pancadas nas paredes e de conversas possíveis às janelas, ocupando-se os reclusos e reclusas de intensos debates sobre as formas de luta contra as condições de detenção e isolamento. A 23 de fevereiro, mais de dois meses e meio depois da ordem de prisão, a professora recebe a “1.ª visita” do seu advogado, Jorge Sampaio, que tinha sido um dos líderes da crise académica de 1962 e seria, já na democracia, líder do PS e Presidente da República. Conceição coloca duas setas, ao lado do registo da visita: “Leitura da acusação” e “conversa “particular” com o Jorge”. As aspas podem indicar que haveria alguém mais na sala a ouvir a conversa.

Nos dias seguintes, que coincidem com o Carnaval, há vários registos no calendário, com uma primeira visita da mãe “lá em baixo”, a 25 de fevereiro, o mesmo dia em que recebe a “1.ª carta do Luís”, o irmão que também estava preso em Caxias. Dois dias depois, Conceição recebe “licença para escrever ao Luís”. No mesmo dia escreve que leu Rainhas Cláudias ao Domingo, de Virgílio Martinho. A 28 de fevereiro anota: “Fui notificada. Cortei o cabelo no barbeiro. [Visita de] Toina e Rosário.”

De 5 a 10 de abril, nas vésperas da Páscoa, há uma intensa (quanto possível) troca de propostas entre celas e salas onde estão detidos homens e mulheres. No bloco-notas, Conceição escreve dez detalhadas páginas com as propostas dos diferentes reclusos e reclusas para um “caderno reivindicativo” a apresentar ao diretor da cadeia. “Todas as celas fazem uma carta colectiva ao Director pedindo um convívio entre os presos no Domingo de Páscoa”, que será a 14 de abril, acrescenta Conceição. O “lado esquerdo” das celas propõe ainda uma greve de fome “a partir do dia 15 para a conquista do caderno reivindicativo”. Há quem rejeite a proposta. A sala 1 diz que “é prematura e não recorre a etapas de luta intermédia”.

 

Seis pontos de reivindicações

 

Pasquale Paolo Cardo from Finale Ligure (Savona), Italy, CC BY 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/2.0>, via Wikimedia Commons

Cravos disparados de um morteiro, num mural atribuído a Banksy, aludindo à Revolução dos Cravos de 1974, na Travessa do Judeu, em Lisboa (2017, já desaparecido). Foto © Pasquale Paolo Cardo, de Finale Ligure (Savona), Itália, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons.

 

O caderno reivindicativo destes homens e mulheres presos em Caxias divide-se em seis pontos: portas das celas abertas; recreios em conjunto; visitas em comum de duas horas, uma vez por mês; filhos menores do lado dos pais presos na visita; entrada de todos os jornais e revistas; visitas e correspondência com amigos e todos os familiares (para além do 3.º grau). A 9 de abril, o diretor da cadeia não tem ainda uma resposta para dar e, aos presos da cela 4, diz que “os múltiplos pedidos e exigências provocariam a não concessão destas coisas”.

No dia 6, Conceição é levada de novo à Rua António Maria Cardoso, no Chiado, em Lisboa. No calendário, escreve: “Fui à Pide. O Santos Costa queria que eu reconhecesse fotografias.” Na véspera tinha feito 37 anos, mas no calendário não há nada. A 7 de abril, há uma manifestação dos presos às “janelas”, e a 15 de abril os pontos reivindicativos dos detidos seguem por carta para o diretor-geral de Segurança, de novo assinada por estas três Marias, como regista no bloco-notas. “Considerando que nada do que acima se expõe excede um mínimo aceitável de condições prisionais, pedimos que os pontos focados sejam urgentemente atendidos.” Silva Pais volta a ignorar a carta – e só a liberdade faz caducar as exigências dos presos.

A noite de 25 e o dia de 26 são vividos na angústia de saber quem tinha feito o golpe. Setores ultradireitistas ameaçavam o governo de Marcelo Caetano, por o acharem fraco, daí o receio dos detidos. “Em algumas celas, instalou-se a discussão entre os presos que já só pensavam em fazer as malas e os que, com medo, achavam que o melhor era barricarem-se e tentarem, por todas vias, proteger-se”, descreve Joana Pereira Bastos, em Os Últimos Presos do Estado Novo. No seu bloco-notas, Conceição escreve que “às 8 horas da manhã uma força de para-quedistas toma posição diante da cadeia”. E acrescenta: “Chove. Está uma manhã de mistério. O silêncio é total.”

Uma hora depois, nota, um “grupo de advogados”, “pessoas da CDE” (Comissão Democrática Eleitoral, formada pela oposição democrática ao Estado Novo, em Portugal) e jornalistas “estão diante da cadeia”. E gritam: “Estamos aqui todos! Vão ser libertados!” Na estrada, uma força de fuzileiros navais posiciona-se. “Por volta das 10h, esse grupo de pessoas entra pelos portões da cadeia e gritam-nos que está tudo controlado e que vamos ser todos libertados.”

A espera será ainda longa. “Pouco depois abrem-nos as portas. Saímos para o corredor. Todas as portas estão abertas e oficiais percorrem os corredores com um ar sorridente e amável. Recomendam calma. Um oficial explica um bocadinho como as coisas se passaram. Descemos. Lá fora, já estava a Sala 1D. Muitos fotógrafos e jornalistas. Abraços e reconhecimentos.”

Como a libertação de os presos políticos – cuja amnistia tinha sido anunciada pelo capitão Vítor Alves – não era pacífica no seio do Movimento das Forças Armadas, por resistências do general Spínola, que não queria libertar prisioneiros que tivessem ligações às organizações de luta armada, como a ARA, a LUAR e as Brigadas Revolucionárias (às quais estava ligada Conceição), no forte de Caxias o dia 26 foi passando sem que houvesse ordem para libertar.

“Perto das 11 horas dizem-nos que a nossa liberdade não é coisa fácil – recomendam calma e que voltemos de novo para as celas… Ordeiramente e calmamente. Subimos. Vamos visitar o Lado E.”, escreve Conceição Moita. E regista as suas últimas notas desse dia, neste quase-diário: “A Fátima e eu tentamos escondermo-nos na Sala 1E, mas somos descobertas. Voltamos às celas. Arrumamos as coisas. Às 15.30 dão-nos o jornal. A 5.ª edição do Século de 25 de Abril. Às 16h, a rádio transmite um comunicado dizendo que os presos políticos serão libertados dentro da maior brevidade possível.” A brevidade chegaria só às 00h30 de dia 27. A liberdade estava finalmente a passar por ali. “Libertação!”, escreveu Conceição no seu calendário, 141 dias depois de receber ordem de prisão.

 

 

Um arquivo para investigações futuras

Tiras de papel com notas em letra muito pequena, depositadas no arquivo de Conceição Moita. Direitos reservados, reprodução proibida.

Tiras de papel com notas em letra pequena, depositadas no arquivo de Conceição Moita. Direitos reservados, reprodução proibida.

 

O Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa recebeu recentemente espólios pessoais de Maria da Conceição Moita e de Luís Moita, seu irmão, “figuras marcantes do catolicismo português e com destacada atuação cívica desde os anos de 1960”, como descreve o investigador Nuno Estêvão Ferreira, do CEHR, ao 7MARGENS.

“Os papéis pessoais que mantiveram consigo foram doados por familiares ao CEHR”, disse, acrescentando que “o pressuposto destas doações assenta na manutenção em boas condições de depósito e, após a sua organização do ponto de vista arquivístico, na sua disponibilização junto dos investigadores e da comunidade em geral”.

Nuno Estêvão Ferreira recorda que o CEHR possui entre as suas áreas de trabalho a salvaguarda e a valorização do património documental de cariz religioso, sublinhando a importância da promoção de arquivos. “Enquanto unidade de investigação no campo da História, a promoção de arquivos é vital por dois motivos principais: metodologia de trabalho, dado que o peso que os repositórios de fontes de diferentes proveniências assumem no labor historiográfico; responsabilidade perante a comunidade, porque a transmissão da memória é um elemento vital para estabelecer vínculos entre gerações.”

É esta “preservação e a promoção do património documental” qu é realizada no CEHR, “por intermédio da sensibilização de responsáveis de organizações religiosas para a importância de manterem em boas condições os seus arquivos correntes e históricos, como elemento fulcral para demonstrarem os termos da sua atuação e legado à sociedade. Mas o CEHR também disponibiliza recursos para depósito, organização e disponibilização junto da comunidade de espólios pessoais de figuras provenientes de organizações religiosas”, sintetiza o investigador.

No caso de Luís Moita, este antigo professor cedeu o seu arquivo ao Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra, mantendo consigo alguma documentação, que foi entretanto doada ao CEHR. O espólio de Conceição Moita integra um total de 14 pastas, das quais o 7MARGENS consultou já oito.

 

[artigos originalmente publicados no 7MARGENS, em 22 de abril de 2024, nos 50 anos do 25 de Abril; a foto principal é uma captura de imagem de uma reportagem da RTP, no momento da libertação de Maria da Conceição Moita e restantes presos]