Setembro 09, 2022
Sete salmos de terra
Miguel Marujo
Nick Cave cantou um dia que não acredita num Deus intervencionista, que põe e dispõe do nosso destino e finta-o de uma maneira que deixa sempre um rasto de insatisfação. Em Into My Arms, canção de 1997, os versos iniciais dizem-no assertivamente: I don’t believe in an interventionist God.
Depois disso, o tempo pregou-lhe uma partida: em 2015 morreu-lhe um filho, em maio deste ano um segundo. A tudo isto, Nick Cave, músico, cantor, escritor, poeta, nascido na Austrália e a viver em Inglaterra, sobreviveu respirando (just breathe, just breathe, repetia Nick no seu concerto no Porto, em junho). E criando: álbum após álbum, de Skeleton Tree (2016) a Carnage (2021), o seu sopro deu-nos absolutas obras-primas, onde a dor, a morte e Deus respiram em cada verso e em cada estria. (Fica de fora Push the Sky Away, de 2013, outra obra maior, por ser anterior à tragédia de 2015.) “Assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está”, dizia-nos em agosto de 2019, sobre a morte de Arthur.
Agora há este novo trabalho, Seven Psalms, objeto inclassificável, um disco de spoken word, no qual os versos dos textos são lidos sobre uma camada sonora construída por Nick Cave e Warren Ellis. São sete salmos destes tempos, escritos pelo australiano, numa prosa tão poética quanto reveladora de quem tem pressa em dialogar com Deus. É mais uma peça a juntar à prolixa produção de Cave, nas suas diferentes roupagens, nestes últimos anos: Ghosteen (2019), Idiot Prayer — Nick Cave Alone at Alexandra Palace (2020), Carnage (2021), B-Sides & Rarities Part II (2021), La Panthère Des Neiges (2021) e este Seven Psalms (2022). Sem esquecer Litanies (2021), um conjunto de 12 litanias que Cave escreveu para o compositor belga Nicholas Lens.
Para fãs de longa data, menos atentos às referências bíblicas que sempre compuseram a já longa discografia de Cave, este é um exercício que não pedirá um segundo de escuta (serão “tretas”, senhores). Para os outros, eventualmente os que foram descobrindo Nick Cave e os seus Bad Seeds desde The Boatman’s Call (1997), esta é uma obra a pedir tempo — e tempo para respirar. É um disco que pede disponibilidade, que se demore nele, a ouvir as palavras e a respiração por entre os versos, uma pausa para escutar. E respirar.
Quando anunciou este disco, em novembro de 2021, Cave antecipou a estrutura dos poemas e a dificuldade que seria para muitos dos seus fãs ouvir este trabalho: “Cada salmo é composto de três versículos de quatro linhas e aborda uma preocupação espiritual diferente — alegria, culpa, maldade, adulação, etc. Os sete [poemas] são registados como uma peça longa. Não [será] para todos, com certeza, mas é uma coisa adorável ao mesmo tempo.”
Em Have Mercy On Me, o segundo salmo, encontra-se uma súplica: Havе mercy on me, Lord, and bring me home (Tem misericórdia de mim, Senhor, e traz-me para casa). Ou, logo depois, em I Have Trembled My Way Deep, em que nos diz: My heart, my love, my Lord, my one true bride/ Sanctuary where the eternal yearning rest (Meu coração, meu amor, meu Senhor, minha verdadeira noiva/ Santuário onde a saudade eterna descansa).
Os textos não facilitam, impregnados de uma forte espiritualidade, não são para todos, como avisou Cave, mas neles encontramos também um pai que perscruta a tragédia que lhe tocou. Em I Have Wandered All My Unending Days, fala de uma mansão no céu, para onde todos irão, um a um, e em I Come Alone And To You revela que não tem para onde ir, a não ser para junto do Senhor (Deep calls to deep, I have nowhere left to go/ But to you, Lord, breathless, but to you). É um salmo de um profeta quase resignado, que só a melodia que acompanha os diferentes salmos procura sacudir.
As palavras de Nick são sempre ilustradas por delicados tecidos sonoros escritos pelo próprio Cave e por Warren Ellis, o bad seed que é cada vez mais o maestro que o acompanha nas suas diferentes roupas. E o lado B do vinil é uma composição instrumental que junta todos os sete salmos.
Na altura em que anunciou este novo trabalho, sem certezas do que faria com ele, Nick Cave foi desafiado a mostrar algo que andasse a escrever e rematou então a carta com um dos salmos, o sexto, de novo com a morte a pesar nas palavras: “Há coisas que nunca deveriam acontecer”, escreve. “Such things should never happen but we die” — mas nós morremos.
Nick Cave, Seven Psalms
Kobalt – Goliath Records (maxi vinil)
[artigo originalmente publicado no 7Margens, em 2 de setembro de 2022. Foto © Nikolay Nersesov/ The Red Hand Files.]