Agosto 20, 2019
Ruas estranhamente familiares que nos enchem a barriga
Miguel Marujo
Por estes dias, verão de 2019, as férias fizeram-se também nas coordenadas de sempre, revisitando os lugares da infância, entre Aveiro, as praias da Barra e da Costa Nova, a Arrancada e outros lugares da freguesia de Valongo, os dias a acordarem de neblina e o sol a romper quente, bolachas americanas e tripas, uma geografia muito própria feita de passagens acidentais, mais ou menos demoradas. Há conta disso lembrei-me desta breve crónica que escrevi há quase um ano no 1864, do Diário de Notícias, com o título As palavras que enchem a barriga, e que agora recupero. Continua atual, apesar do caramujo envergonhado que comi antes do atraso monumental do comboio de volta a Lisboa.
De cada vez que regresso a Aveiro, sou transportado como no conto em que Haruki Murakami nos leva por “um passeio a Kobe” (Granta Portugal, n.º 3), cidade onde viveu e onde ia cada vez menos. Aquele grande terramoto de 1995, no meu dia de anos, deixou-o também sem a casa da infância, onde até então viviam os pais. Assim, “descontando todas as recordações” que guardou no seu “íntimo” (“o meu bem mais precioso”), Murakami deixou de ter uma “ligação concreta” com aquela terra, “um profundo sentimento de perda”, como se as lembranças rangessem “de forma vaga, mas audível” dentro dele. E aquelas ruas eram estranhamente familiares, mesmo que não as reconhecesse.
De cada vez que regresso a Aveiro, pareço turista em casa própria, a redescobrir os recantos que foram meus na infância e juventude, a olhar com espanto as mudanças feitas, a temer que se destrua o Rossio porque um autarca quer ali enfiar um parque de estacionamento, como se ainda pensássemos as cidades nos anos 1980, a perder-me como se perdia Murakami nas ruas estranhamente familiares.
Aveiro é uma cidade onde também já se ouvem queixas sobre turistas, à imagem da sua dimensão, uma escala humana como definiu Miguel Esteves Cardoso, que concluiu numa visita no mês de setembro [de 2018] que “maior que Aveiro é grande demais, mais pequeno que Aveiro é pequeno demais”.
No tamanho certo querem-se os ovos-moles, que “estão melhores”, como descobriu MEC, que não sabia explicar como “porque já eram perfeitos”; os caramujos que os lisboetas chamam de cornucópias mas não têm aquele doce de ovos que fazem os olhos comer; e os cartuchos que o país descobriu numa reportagem televisiva, uma mistura que dispara massa de cacau com pão-de-ló, ovos-moles (sempre presentes, ámen!) e chantilly.
As montras das pastelarias da cidade são de comer e chorar por mais, e ainda não falámos das broas e das castanhas de ovos ou das tripas de ovos ou com chocolate regina.
Se Esteves Cardoso descobriu só agora a doçura de Aveiro e se eu já quase me perco nesta cidade bafejada por uma natureza ímpar que se intromete na bonita malha urbana (apesar das cicatrizes), o melhor mesmo é perdermo-nos no passeio. Por vezes, os afetos e as memórias difusas recuperam-se pela barriga.
[texto editado a partir do original publicado na revista 1864 do DN, em setembro de 2018; foto de MM, agosto de 2019]