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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Setembro 16, 2018

Rapazes de fé. Os U2 bebem na Bíblia sem medo

Miguel Marujo

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Quando este domingo e segunda-feira à noite os U2 subirem ao palco do antigo pavilhão da Utopia, em Lisboa, dificilmente alguma das pessoas ali presentes dirá que vai ver o concerto de uma banda cristã, que não o é, ou que quer ouvir mensagens cristãs, que as há.

É antes a música e o espetáculo (e quase só a música e o espetáculo) que leva os milhares de fãs à Altice Arena, na busca de uma utopia que os irlandeses continuam a procurar reinventar, reinventando-se, com mais ou menos ousadia – e mais ou menos sucesso – quase 40 anos depois do seu primeiro disco, o EP Three (1979). Trata-se de uma questão de fé, para Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr., como para aqueles que os seguem de forma indefetível. Crentes uns e outros, e uns nos outros.

 

Nunca renegando um vínculo ao cristianismo, e em particular ao catolicismo, os U2, nomeadamente o seu vocalista, Bono, carregaram sempre uma espiritualidade muito própria: eram “uma espécie de irmandade”, como os definiu The Edge, crentes nos únicos “dois grandes sacramentos”, a amizade e a música, em que uma fé inabalável na sua capacidade de vingar também representou a vontade de melhor cantar essa sua fé. “Eu só vou onde há vida, sabe? Onde sinto o Espírito Santo. Se é no fundo de uma catedral católica romana, na quietude e no incenso, que sugerem o mistério de Deus, da presença de Deus, ou nas luzes cintilantes de uma tenda revivalista, eu apenas vou onde encontro a vida. Não olho para a denominação”, confessou Bono ao Christianity Today.

Esta ponte entre o sagrado e o profano é seguida de perto pelo vocalista do grupo irlandês. Em 2005, numa exposição sobre a Bíblia, em Lisboa, no âmbito do Congresso Internacional para a Nova Evangelização, liam-se estas palavras de Bono: “Sou um músico ‘escrevinhador’, fumador de charutos, bebedor de vinho, leitor da Bíblia. Sou um exibicionista que adora pintar quadros daquilo que não vê. Um marido, um pai, amigo dos pobres, às vezes dos ricos. Um ativista vendedor ambulante de ideias. Jogador de xadrez, estrela de rock em part-time, cantor de ópera no grupo pop mais barulhento do mundo. Que tal?”

Órfão de mãe, Bono escreve ao sair da adolescência I Will Follow, o tema de abertura de Boy, o primeiro álbum, lançado em 1980 (e que certamente se ouvirá agora de novo em Lisboa, como tem acontecido nesta The eXPERIENCE + iNNOCENCE Tour). Notou que “este era um tema que ninguém tinha ainda explorado, no rock and roll – o fim da angústia da adolescência, a enganadora arte da masculinidade, a sexualidade, a espiritualidade, a amizade”.

 

 

No jornal L’Osservatore Romano recorda-se como Bono olhava para o rei David, dos tempos bíblicos: “Aos 12 anos adorava David: para mim era como uma pop star, as palavras dos salmos eram poesia e ele era um ídolo. Antes de se tornar profeta e rei de Israel, David passou por muita coisa. Viveu exilado e acabou por ir viver para uma caverna, onde fez as pazes com Deus. É aí que esta história se torna interessante: David compõe os seus primeiros blues.”

Perante uma afirmação destas, o jornalista do órgão oficial da Santa Sé verifica que “dito assim, tem todo o ar de uma afirmação irreverente”, mas Gaetano Vallini prefere ler esta ideia de Bono “como uma declaração de fé muito original”.

É tempo então de olharmos para as letras (na sua esmagadora maioria escritas por Bono), para lá do imediatismo das palavras. Trata-se de uma tarefa facilitada por Andrea Morandi, crítico musical e autor do livro U2. The Name Of Love (Roma, Arcana, 2009), que nos guia por esta “pesquisa filológica singular”, como lhe chama Vallini no L’Osservatore Romano. Trata-se de uma obra na qual são analisados todos os textos de Bono, desde o primeiro álbum, Boy (1980) até No Line On The Horizon (2009), na altura o último trabalho editado pelos U2. Depois disso, os irlandeses lançaram Songs of Innocence (2014) e Songs of Experience (2017), os trabalhos que mais alimentam a atual digressão.

 

 

Morandi considera que “a presença da Bíblia nos primeiros registos era uma coisa conhecida, mas que continuou de forma persistente até que [em No Line On The Horizon] foi uma verdadeira descoberta”. Para o autor italiano, neste 12.º álbum, canções como Magnificent, que remete para o Magnificat (o hino colocado na boca da mãe de Jesus, enaltecendo a presença de Deus e condenando os poderosos e os soberbos) ou Unknown Caller, onde este estranho que chama é o Deus que salva, fecham um círculo perfeito: a religiosidade omnipresente dos primeiros trabalhos – como Boy, October (1981), War (1983), mas também The Unforgettable Fire (1984), The Joshua Tree (1987) e Rattle and Hum (1988) – antecipa a entrada na última década do milénio, no regresso a uma Europa em que a queda do muro de Berlim abre novas esperanças e dúvidas insistentes. Achtung Baby (1991) e Zooropa (1993) são essa nova Europa onde se perde a fé. E Bono também canta essa fé perdida.

No prefácio ao livro de Morandi, Davide Sapienza pergunta: “Quem imagina o quanto seria uncool ser fã de um grupo que nas canções e entrevistas falava de Deus, citava a Bíblia, concluía os concertos com uma (esplêndida) canção inspirada num salmo, e que era publicamente caracterizado por um líder sem pelos na língua, como uma intenção de condenar as ideologias e falar sobre pontes a serem construídas para ligar as margens opostas de um longo e doloroso pós-guerra?”

Em The First Time, canção de Zooropa, Morandi reflete sobre como Bono “se entrega”, confessando “ter perdido a bússola e os mapas, a razão e a religião, os limites e as fronteiras”, a partir da parábola do filho pródigo. As referências bíblicas, que se fazem notar em todos os álbuns dos U2, traduzem-se em passagens dos textos de Bono: “Gave me the keys to his kingdom coming”, canta ele em The First Time, numa remissão para o evangelho segundo Mateus (16, 19). Ou “He said ‘I have many mansions/And there are many rooms to see’”, que nos remete para São João (14, 2).

 

 

Gaetano Vallini nota que Morandi nos apresenta Pop (1997), disco em que os U2 se abalançam a linguagens mais dançantes, como um álbum “cheio de discussões com Deus”, à procura da estrada perdida, mas difícil de encontrar. “Deus desligou o telefone”, canta Bono em If God Will Send His Angels.

Também o díptico recente de Songs of Innocence e Songs of Experience aproxima-nos desta espiritualidade, até pelo grafismo: a capa do disco de 2014 é a foto de um pai e do filho (na realidade, Larry e o seu filho), transmitindo a relação única entre progenitor e criança; e a mais recente revela-nos dois adolescentes (filhos de Bono e The Edge), de mãos dadas, ela com capacete militar. Estes dois álbuns foram inspirados no livro de poemas Songs of Innocence and Experience, do místico e poeta inglês do século XVIII, William Blake. E Bono seguiu o conselho de um outro poeta irlandês que lhe disse para escrever “como se estivesse morto”.

Muitos podem estranhar esta “forte religiosidade”, nota o jornal L’Osservatore Romano, “numa estrela de rock do calibre de Bono e num grupo tão conhecido e comprometido”. “Mas as músicas estão lá para o provar.” Exemplos mais ou menos óbvios: Gloria, de October; Grace, de All That You Can’t Leave Behind (2000), Yahweh, que remete para o nome hebraico de Deus, “Eu Sou Aquele Que Sou”, em How To Dismantle An Atomic Bomb (2004); ou Cedars Of Lebanon, de No Line On The Horizon. Ou ainda 40, de War, cujo texto bebe o título, a inspiração e frases no Salmo 40, completadas com uma linha que, ao longo destes 35 anos, milhares e milhares de fãs repetiram nas mais de 400 vezes que a canção já foi interpretada ao vivo: “How long (to sing this song)”, por quanto tempo teremos que cantar esta música? – e que Bono encontrou no Salmo 6.

 

 

"Deus está interessado numa arte honesta e não em publicidade”, como já defendeu o vocalista dos U2, que encontra nos textos dos salmos uma fonte de inspiração para a sua escrita. Para aqueles que não creem, Bono aponta o Salmo 82 como um “bom começo”: “Defende os direitos dos pobres e dos órfãos. Que devemos ser justos para os necessitados e sem esperança. E salva-os do poder de pessoas más. Isto não é caridade, é justiça.”

Foi este mesmo sentido de justiça que levou Bono a empenhar-se nas campanhas que, antes do ano 2000, defenderam o perdão da colossal dívida externa dos países mais pobres, e que o fez encontrar-se várias vezes com o Papa João Paulo II, que pugnava pela mesma causa. E é ainda este mesmo sentido de justiça que fez Bono decidir desfraldar uma bandeira da União Europeia no final de concertos. E que leva Bono, no arranque da digressão europeia que agora chega a Lisboa, a defender uma Europa que deve ser sentida, pelas suas “múltiplas afinidades” e “identidades estratificadas”: “Ser irlandês e europeu, ser alemão e europeu, sem que se excluam mutuamente. A palavra patriotismo foi-nos roubada pelos nacionalistas e radicais que exigem a uniformidade. Mas os verdadeiros patriotas procuram a união acima da homogeneidade. Reafirmar isso é, para mim, o verdadeiro projeto europeu.”

(texto publicado originalmente no blogue Religionline)

[foto inicial: Stufish, dos concertos da atual digressão]