Fevereiro 13, 2023
Pôr a mola da roupa nas narinas: MEC, o garimpeiro da música boa
Miguel Marujo
Quando Miguel Esteves Cardoso ainda não era “o” MEC, que mais tarde faria sucesso nas páginas da Revista do Expresso, o jovem escrevia crítica musical, ali entre a música de intervenção e o “ar de rock” – e o culto começou aí, apesar de muitos poderem achar o género menor. Quando Esteves Cardoso ainda não nos trazia caracteres sobre azeites e pão, o rock e a pop eram o seu território e a pena cáustica e acutilante já fazia escola.
Escrítica Pop, agora de novo em livro (ed. Bertrand, 2022), é, pois, um acontecimento: recupera a edição original de 1982, publicada pela Editorial Querco, que já só se descobria em alfarrabistas (mais tarde reeditado pela Assírio e Alvim), e junta-lhe um quase ignorado e há muito esgotado O Ovo e o Novo, de 1981, guia exaustivo sobre os anos 1970. A fechar o conjunto de mais de 630 páginas, o posfácio do crítico Esteves Cardoso, que confessa, 40 anos depois desses dois livros, que perdeu muito tempo “a catrapiscar” músicas más para poder descobrir a boa. “Também deve haver alguma ternura pelo lodo por parte de quem passa a cidade de peneira na mão, à procura de pepitas de ouro.”
Segundo MEC, e socorremo-nos das últimas páginas do seu livro, sem que se estrague a leitura, “para encontrar música nova e boa – esses dois requisitos com tão poucas letras, tão raramente encontrados juntos –, continua a ser preciso uma pá e uma mola de roupa para apertar as narinas”. Exageros de crítico.
É o próprio que o admite numa espécie de prefácio ao livro original (esta nova reedição reproduz ipsis verbis a primeira). Em “À maneira de um prefácio à maneira”, MEC baralha e dá de novo: “É claro que já me arrependi de tudo aquilo que escrevi. É claro que já não gosto de nenhuma das bandas das quais disse gostar muito, e que vim a apreciar todas as outras que jurei odiar até à morte. E é claro que deve juntar-se este exagero a todos os outros que cometi; às contradições, às precipitações, às inverdades, às precipitações, aos erros e excessos, às omissões e rotulagens que para toda a vida me hão-de afligir e fazer ruborizar.”
Já percebemos que este statement de 1982 é, ele próprio, um exercício de estilo – e o posfácio demonstra-o. No miolo do livro, entre estas duas prosas, Esteves Cardoso indica o caminho para que todos possam aprender como exercitar a arte da crítica. Sejamos justos, sem spoilers, este é outro exercício do humor cáustico que o país reconheceria em MEC, anos mais tarde, sobretudo com A Causa das Coisas e Os Meus Problemas. Mas entre as primeiras funções do crítico não está ouvir o disco (“Nada podia estar mais longe da verdade”); é preciso, aliás, saber fazer a “crítica de Rock sem audição” (e “com audição”), ter “instrumentos críticos do bota-abaixo” e do “bota-acima”, “métodos de agigantamento sucessivo”, dominar “a fase da redação”, “arranjar um jornal qualquer” ou “um jornal legítimo”, “ter boas relações com as editoras” ou “auferir um bom vencimento”. Um caminho para a glória, que é ser “editor discográfico”, mas sem revelarmos mais pistas.
Os discos hediondos e os que resistem ao tempo
Nesta escrítica, Miguel atira-se sem dó nem piedade à música dos anos 70, em O Ovo e o Novo — (Uma) Discografia duma Década de Rock: 1970-1980. Afinal, 89,6 por cento de todos os discos editados no mundo, argumenta o autor, “são inteiramente hediondos”, socorrendo-se de um alegado e “apurado estudo”, pelo que depois de 50 páginas de uma fantástica viagem pela música do “antes” dos 70 e da década propriamente dita, MEC apresenta-nos curtas leituras de discos com três, quatro e cinco estrelas. Não há lugar para hediondas ou medianas escolhas.
Fixe-se para a posteridade a tradução dessas estrelas, uma classificação “simples, inteiramente subjectiva e [que] não é estática”: “ *** – Bom. Contém boas canções, mas uma ou outra canção indiferente ou medíocre. **** – Muito bom. Contém sobretudo boas canções, com um ou outro deslize de pouca importância. ***** – Excelente, sem reservas.” Sabe-se que o gosto se discute, não se impõe, mas MEC faz notar que os álbuns que têm cinco estrelas devem resistir “ao tempo e ao gosto – mas nem esta reserva está acima de discussão”. E não está (mas é o meu gosto a falar).
Na era do streaming, na qual o novo é ainda mais efémero, o exercício deste livro é lembrar-nos obras já esquecidas e ignoradas (em 1970, há o disco homónimo dos Fotheringay, com a voz de Sandy Denny, dos Fairport Convention, que pede para ser ouvido) ou arrumadas em estantes que ganharam pó (e resgate-se do mesmo ano, Moondance, de Van Morrison).
De 1970 a 1980, MEC regista os que sobreviveram a essa década de rock, definindo três constelações de estrelas, nomeando 12 nomes que, a esta distância, ainda são algumas das referências maiores da música popular destes últimos 60 anos: Joni Mitchell, Leonard Cohen, David Bowie, Bob Marley (na constelação dos irredutíveis de “qualidade constante e ininterrupta ao longo da década”), Neil Young, Lou Reed, Ry Cooder, Van Morrison (na segunda constelação de “qualidade inconstante, com poucas interrupções de má qualidade”), Robert Fripp, Robert Wyatt, Stevie Wonder e John Cale (na terceira constelação da “qualidade inconstante, com interrupções frequentes de atividade ou de qualidade”).
Aos sobreviventes juntam-se os náufragos, ou seja, aqueles que soçobraram ao longo da década de 1970, na sua opinião, decaindo na qualidade, numa “incapacidade manifesta de lutar contra o conforto”. Elton John, os beatles a solo, Paul McCartney, John Lennon e George Harrison (Ringo Starr é reduzido de uma penada a “divertimento simpático”), Crosby, Stills, Nash & Young, James Taylor, Genesis, Pink Floyd, Yes, Emerson, Lake and Palmer e King Crimson são os “náufragos célebres” para MEC – uma lista que pode ferir suscetibilidades.
Limpar os esgotos da década antes
Entrar nos anos 1980, ou seja, em Escrítica Pop, obriga a um exercício prévio: “Antes de mergulhar numa década nova, convém sempre uma lavagem ao depósito onde se acumularam os esgotos da década anterior”, escreve Esteves Cardoso, como se fosse uma epígrafe ao texto “O livro negro da música pop: os piores de ’70”. O texto é uma ode humorada à “música popular verdadeiramente vil e execrável”, dividida em quatro classificações: “uma bosta”, “duas bostas”, “três bostas” e “um balde”, sendo estes “os verdadeiros clássicos” do género “abjeto”.
Ler este capítulo é uma delícia de nomes desconhecidos ou velhas glórias do mau gosto que (pasme-se) também têm merecido serem recuperados por uma certa nostalgia do século XXI, que os impinge a todo o gosto e custo. Os Bee Gees, por exemplo, mas também Cliff Richard, Demis Roussos, Boney M, Kenny Rogers ou… John Travolta. É uma lista e tanto, que é fechada com a entrega do “balde de plástico” a Sylvia com a canção “Y Viva España” que, “como todas as canções verdadeiramente horríveis e debilitantes, nunca se esquece”.
A música má, argumenta MEC, ajuda-nos a ouvir a boa, a valorizar o que é bom depois dos ouvidos sofrerem com verdadeiros baldes. Há exemplares de “Pop-lixo”, um género bem representado, como Kim Wilde, que “é lixo muito bem vestido” (e os adolescentes dos ’80 suspiram), que tem o requinte que falta aos Abba ou a Sandy Shaw – palavra de crítico. Miguel Esteves Cardoso atira-se ainda à “atroz Kirsty MacColl”, a voz feminina que todos aprendemos a amar na mais bela canção de Natal, “Fairytale of New York”, pelos Pogues, por causa do seu álbum de estreia “tão abaixo de cão que está quase no centro da Terra” (e hoje Kirsty MacColl deve rir-se do MEC de 1981). Ou Yoko Ono, a namorada de Lennon, que “não tem” queda para a música. E o próprio John Lennon que morreu em 1980, mas a sua obra tinha morrido antes.
Há amores desmesurados (e certeiros) nestas seis centenas de páginas, como David Bowie, a Factory, os Durutti Column de Vini Reilly, Blondie, que é sinónimo de Debbie Harry, ou a Joy Division e os New Order. Mas nem tudo o que é bom sobreviveu à História para contar – e cantar. Usando a terminologia de MEC, são náufragos, hoje afundados nas profundezas da memória, como as Delta 5, por exemplo, que lançaram o “fabuloso LP” de nome See the Whirl. Pode ser que este livro, resgatado a 1982, nos ajude a descobrir música que, ainda hoje, salvará.
Escrítica Pop — Edição Completa
de Miguel Esteves Cardoso
Edição: Bertrand
julho de 2022, 638 págs., 24,40 €
[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 4 de fevereiro de 2023; foto: MM]