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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Junho 26, 2018

PJ tomou notas. E levou-nos à guerra

Miguel Marujo

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Atravessa-se o rio Anacostia para sudeste e estamos tão perto e tão longe dos senhores que decidem. Há uma estrada da boa esperança, outra avenida de Martin Luther King, nomes que carregam o peso da má fama de bairros devastados por guerras de gangues, uma cidade de drogas, habitada por zombies, apanhados por balas perdidas e assassínios que calam testemunhas.

Não é o Kosovo, nem o Afeganistão, é Washington D.C., o distrito da capital federal americana, do outro lado do rio, perto dos memoriais do Vietname e de Lincoln, dos yards cuidados da Marinha americana, e lá mais longe (passando o rio Potomac e o Pentágono) o cemitério nacional de Arlington, onde repousam os corpos dos soldados dos Estados Unidos que as guerras do Afeganistão e do Iraque vão enterrando como heróis.

Foi por este eixo da Good Hope Road e da Martin Luther King Jr Avenue, com passagem pela Benning Road — uma linha vermelha de snipers em zona de guerra num país pouco pacífico — ou por South Capitol Street, outra rua de carnificina, que PJ Harvey andou em reportagem, tomando notas no banco de trás de um carro, parando aqui e acolá, quase sempre em silêncio, ouvindo as descrições de um jornalista do Washington Post, Paul Schwartzman, que conhecia bem o terreno mas nem sabia quem guiava pelo lado negro da capital americana. "Quis cheirar o ar, sentir a terra e encontrar as pessoas de países por que estava fascinada", explicou-se PJ Harvey depois.

A britânica Polly Jean tomou notas também no Kosovo e no Afeganistão e destes roteiros de guerra compôs um livro de poemas (com fotografias de Seamus Murphy) e editou um álbum, em abril [de 2016], The Hope Six Demolition Project, que tem alimentado uma digressão que já passou no Porto, em junho [de 2016] no Primavera Sound, e chega agora a Lisboa, ao Coliseu dos Recreios.

No Porto, PJ tocou quase na íntegra este seu último álbum (só deixou de fora Near the Memorials to Vietnam and Lincoln) mas é provável que, a avaliar pelo alinhamento dos mais recentes concertos, possa agora tocar as 11 canções do álbum que o entusiasmado — com toda a razão, diga-se — crítico do Chicago Tribune, Greg Kot, definiu como sendo "um dos mais poderosos álbuns de protesto dos anos mais recentes", ao lado de To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar, e Black Messiah, de D'Angelo.

É o mesmo Greg Kot que se refere a este trabalho como um "tipo de documentário musical ou novo jornalismo", uma observação que Kitty Empire, crítica do britânico Observer (que gostou bem menos do disco), quase desdenha, apelidando o álbum de "rock-reportagem" e acrescentando tratar-se de "uma espécie de reportagem", ainda que apresentada "através de guitarra, saxofone e coro gospel".

O espetáculo desta noite deve reproduzir muito daquilo que foi o concerto no anfiteatro natural do Parque da Cidade do Porto: cenário austero, polifonias sincopadas que enchem o palco e uma banda (com Mick Harvey, o homem que deixou os Bad Seeds, e John Parish, velho companheiro musical de PJ) que acompanha na medida certa o rigor da britânica em cena, quase sem desvios às canções e em que as palavras são as cantadas e pouco mais.

Apesar do ambiente quase intimista criado por entre as árvores do Parque do Porto e dos muitos indefetíveis que ali foram por causa de PJ, um festival é sempre um palco estranho para quem procura que a música seja o centro de tudo e, por isso, talvez os que esta noite forem ao Coliseu possam ganhar — em proximidade e exaltação.

Polly Jean quer sentar-nos no banco de trás do seu carro e guiar-nos pela devastação de guerras demasiado próximas e tão afastadas, enquanto pelas águas sujas do Anacostia um imenso coro prolonga um lamento: "Saying 'What will become of us?' What will become of us?"

 

[O concerto.] 

O Coliseu dos Recreios esteve longos minutos a pedir o regresso ao palco de PJ Harvey e dos outros nove que acompanhavam e quando a britânica regressou fez-se ouvir com um "thank you very much". Até aí, as palavras ficaram por conta das canções — e de um breve anúncio, quando Polly Jean apresentou a banda, também já perto do final do concerto em Lisboa.

O concerto foi assim: ao osso, direto, sem rodriguinhos, daqueles em que cada membro da banda tem direito a um minuto de exibição. Ali não: o que conta são as palavras das canções, os sons que as cantam - e a voz (e como cantou PJ Harvey esta noite!).

Para o mais recente The Hope Six Demolition Project, cuja digressão passou esta quinta-feira à noite por Lisboa, Polly Jean foi à guerra no Kosovo e no Afeganistão, mas também em Washington. A repórter que se fez ao caminho contou-nos as histórias do que viu, num palco de cenário ascético, de formas geométricas que pareciam abrir janelas para o mundo e só variavam nas cores graníticas ou quentes (como esta estranha noite de finais de outubro).

Este é um álbum político sem medo de o ser, com PJ Harvey a mostrá-lo no palco, de forma implacável, num rock que se faz de metais, percussões, guitarras, baixo e teclas, desde os primeiros acordes (como se fosse uma marcha) de Chain of Keys até aos sons finais quase a capella de River Anacostia, com que se encerra o concerto antes do encore, mas passando também por 50ft Queenie (de Rid of Me) ou Down by the Water (que se ouve em To Bring You My Love).

Let England Shake, o álbum de 2011, é o outro trabalho que mais vezes PJ Harvey trará ao palco e de onde resgatará o tema com que fecha o encore de menos de dez minutos, The Last Living Rose, em que se ouve "Take me back to beautiful England". O público que celebrou este acontecimento parecia pouco disponível a deixar partir quem lhes contou assim a guerra.

[textos originalmente publicados no DN a 27 de outubro e 28 de outubro de 2016; foto de Sara Matos/Global Imagens]