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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Janeiro 10, 2022

Patti Smith. "Não sou música. Sou uma cantora e uma performer"

Miguel Marujo

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Em 2015, a cantora americana voltou a Portugal para um concerto que, como no Porto em maio desse ano, celebrava os 40 anos do lançamento do seu primeiro álbum, Horses. É uma digressão que já estava na reta final e que foi o mote para uma conversa ao telefone, a partir de Nova Iorque, onde regressou nos anos 90, depois da morte do marido, para se dedicar de novo à música, à escrita e à fotografia. Uma mulher de múltiplos talentos. A começar pela voz

 

Quinze minutos, não mais, a meio da tarde em Lisboa, manhã em Nova Iorque. As indicações eram claras: depois da breve saudação, a entrevista devia começar logo depois. Não era preciso de facto mais nada. Patti Smith tem uma disponibilidade na voz e no ritmo pausado com que fala, longe das guitarras com que ilustra a poesia de Gloria, que por momentos o mundo se suspende nas suas palavras.

Quando veio ao Porto, em maio, disse que estava a acabar um livro. Já está finalizado?

Sim, está acabado.

É sobre o quê?

O livro chama-se M Train. Quis escrever um livro muito diferente do meu último (Just Kids) porque nesse livro tinha uma coisa específica que tinha de escrever. O Robert [Mapplethorpe] pediu-me, antes de morrer, que escrevesse o livro sobre a nossa vida em comum e a nossa juventude, sobre a sua morte e arte, era muito específico. Decidi que este livro não teria guião, desenho ou agenda, apenas me sentava e escrevia. Sentava-me num café, bebia o meu café, e escrevia. E assim fiz, escrevi. M Train é como mind train, o comboio da mente, como um comboio de pensamentos, e escrevi sobre café, viajar, o meu último marido, a pessoa que eu amava.

Uma espécie de ensaio ou mais autobiográfico?

É mais autobiográfico. Ao mesmo tempo partilho com o leitor a vida como ela é para mim, o que faço, como eu a guio. Os livros que ando a ler, as coisas que me preocupam, os meus pensamentos, a minha meditação. É um pouco divertido – e tem muito café dentro. É difícil explicar o livro, foi-se desdobrando em tempo real, mas regressa ao reino da memória. À memória de quando o meu marido [Fred "Sonic" Smith] estava vivo e um pouco de como era a nossa vida.

Foi uma tragédia a sua perda.

Sim, eu amava-o. Era o pai dos meus filhos. Eu tive uma sucessão de mortes, o Robert Mapplethorpe morreu em 1989 e depois o meu pianista, que só tinha 37 anos, morreu dois anos depois, depois o meu marido e um mês depois o meu irmão. Foi forte... (pausa) Mas o livro foca-se mais na minha vida atual, com memórias do Fred.

Essas perdas levaram-na de novo à música, nessa altura.

Eu gravei e toquei os meus primeiros discos nos anos 70, gravei o meu primeiro álbum em 1975, Horses, esse foi o meu primeiro álbum, mas eu deixei a vida pública em 1979 para me casar e ter filhos. Quando o meu marido morreu, em 1994, regressei à vida pública em 1996. Foi a sua morte que obrigou a fazer-me à vida, para tomar conta dos meus filhos. Trouxe-os para Nova Iorque e voltei a tocar e a gravar de novo. Mas não tínhamos um horário escolar. Hoje, os meus filhos cresceram, estou a fazer o meu trabalho, estou a escrever, a fotografar – e estamos a fazer uma digressão para comemorar Horses.

Escreveu poesia, publica livros, escreve música, anda em digressão. Passados estes anos, o que é que é mais relevante para si. Há anos falou sobre o seu trabalho como um processo muito orgânico. Continua a ser assim?

Sim, o meu trabalho é orgânico e a forma como flui de uma para outra é orgânica, mas a coisa mais consistente que fiz, desde que era uma jovem rapariga, foi escrever. A escrita é o coração das coisas que fiz, e até como performer comecei como poeta, a misturar a poesia com o rock’n’roll, comecei como escritora, não como música. Eu não sou uma música. Eu sou uma cantora e uma performer, mas nunca estudei música nem toco música. Sou mais uma intérprete, mas penso que escrever é mais essencial para mim.

Horses apareceu nesse processo?

Horses apareceu como poesia. “Jesus died for somebody’s sins but not mine” ["Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus", no início de Gloria] começa como um poema que escrevi em 1970 e que costumava interpretar em sessões de leitura de poesia. Muita da improvisação que fiz como poeta filtraram-se deste modo para as canções de Horses. Eu comecei simplesmente, primeiro com Lenny Kaye, a ler poesia, enquanto ele me dava um ritmo sonoro, depois o meu pianista Richard Sohl que trouxe a estrutura de Horses. De 1971 a 1974, nós evoluímos, e quando fizemos Horses já tinha evoluído de fazer leituras de poesia para ter uma banda de rock’n’roll. Mas continuávamos a basearmo-nos na poesia.

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Jesus died for somebody’s sins but not mine.” Esta afirmação continua a fazer sentido para si?

Faz sentido no contexto em que a escrevi, como uma jovem rapariga, não contra Jesus, porque sempre admirei Jesus, mas contra a religião organizada. A minha visão de Jesus é de alguém que foi revolucionário, que espalhou a ideia de amor, cujo ensinamento era amarmo-nos uns aos outros, mas senti que a religião organizada confina as minhas ideias e liberdade. A canção opõe-se mais à religião organizada, mas era a afirmação de uma jovem rapariga. Escrevi isto há 48 anos, quase meio século atrás, como uma declaração de independência e de existência. Sim, faz sentido para mim em termos de “onde é que eu estava” e no que é que eu acreditava. Mas, como lhe disse, admiro os ensinamentos de Cristo. Por isso, estou capaz de negociar esse cisma muito facilmente [risos].

Porque é que acha que é importante celebrar agora os 40 anos de Horses?

40 anos! Estou orgulhosa de que o álbum continue a ser relevante 40 anos depois. Estou orgulhosa. E ainda estou fisicamente forte, saudável o suficiente para apresentar com sucesso o álbum às pessoas. É um marco e como senti que no 50.º aniversário terei 78 anos, pensei que o 40.º aniversário era a melhor altura para mim para apresentar uma forte interpretação do álbum. E estou muito confiante em fazê-lo. Não me sinto diminuída, se estou ou não estou a replicar o álbum. Nós vivemo-lo todas as noites, o que interpretamos é importante no momento, não é teatro. Tocamo-lo com o mesmo fervor com que o fizemos há 40 anos. E por isso sinto que temos algo a oferecer às pessoas.

Por isso ainda sente que o álbum bombeia sangue para o coração do rock’n’roll, como disse em tempos?

[risos] Eu não sinto medo, isso de certeza. Não tenho medo. O álbum continua a ser um marco para muitos na música. Michael Stipe, dos R.E.M., está sempre a dizer isso, foi Horses que o trouxe para a música. Sinto-me lisonjeada. Michael Stipe é meu amigo e sinto-me muito orgulhosa de que ele se tenha inspirado. O Michael também é uma inspiração para mim, é verdadeiramente um dos grandes letristas na música popular, por isso fico muito feliz de que tenha sido capaz de o inspirar.

Numa entrevista afirmou que o rock era a voz política da sua geração. Nestes tempos com alguém como Donald Trump a ocupar o palco, o rock continua a ser uma forma de passar uma mensagem?

Penso que na nossa cultura, onde podemos comunicar com as pessoas através da tecnologia, há muitas maneiras de comunicar e muitas maneiras importantes de inspirar as pessoas. Penso que o rock, como todas as artes, são importantes catalisadores. No fim são as pessoas que têm de fazer a mudança. Nos anos 60, havia Bob Dylan, Neil Young, qualquer cantor de protesto ajudou a criar a nossa voz cultural, foram uma grande inspiração, mas foram as pessoas que tiveram de fazer as mudanças, que tiveram de ir para as ruas e protestar contra [a Guerra do] Vietname, para engrandecer o movimento dos direitos civis. Sim, acredito que a música pode ser inspiradora e ser um guia ou dar força às pessoas... Mas são elas que têm de fazer a mudança.

People still have the power?

Sim, têm, mas têm de o usar. [risos]

O que podemos esperar do concerto de Lisboa? Será diferente dos concertos do Porto?

É sempre diferente. Para começar estaremos em Lisboa, e seremos arrastados pela energia da cidade. Gosto muito de Lisboa e não toco aí há muito tempo, por isso estou muito ansiosa por chegar. Todas as noites são diferentes. Há coisas que acontecerão em Lisboa que não acontecem em mais nenhum lado. É como trabalhamos: gosto de me ligar às pessoas no momento, falar com elas, discutir com elas. Horses é o principal tema, apresentaremos o álbum e depois logo veremos como segue a noite. Trazemos o que trazemos, mas a nossa porta está aberta, por isso as pessoas vão ajudar-nos a engrandecer a noite. Estamos a fechar a celebração de Horses e estou mesmo feliz por irmos atuar em Lisboa. É um sítio onde gosto de perder tempo e fotografar. Ver que tipo de energia mútua podemos tirar da nossa noite.

Gosta da luz de Lisboa?

É linda. Sempre gostei de escrever em Lisboa. Mas também é uma linda cidade para fotografar. Ou apenas caminhar à noite. A atmosfera é especial, tem uma energia especial. Estou muito entusiasmada por regressar.

Um livro no outono e disco na primavera

M Train é o novo livro de Patti Smith, a lançar em outubro nos Estados Unidos, depois do sucesso – de crítica e público – que acolheu Just Kids. É um livro com muito “café dentro”, como confessou a própria na entrevista destas páginas, escrito ao ritmo de uma esplanada. Em inglês, dito em inglês, soa diferente: Patti sentava-se no cafe a beber o seu coffee, enquanto observava quem passava e tomava notas. Depois do livro, chegará um novo álbum. “Sim, vou fazer um novo álbum, não sei ainda bem quando, provavelmente na primavera”, disse ao DN. E não vai parar, admitiu. “Vou ajudar a escrever o argumento para uma minissérie de televisão baseada em Just Kids”, o livro de 2010. “Tenho muitos projetos. Para já vou fazer uma mão-cheia mais de concertos: uns dez mais.” E fica fechada a celebração de Horses.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 19 de setembro de 2015; fotos: sem autoria, Patti Smith Group in New York 1975Robert Mapplethorpe (1946-1989) - Patti Smith, Horses 1975]