Maio 24, 2022
Parlamento. As cadeiras foram para restauro
Miguel Marujo
O verão é quente de trabalhos no Parlamento. Nas catacumbas, restaura-se mobiliário, nas cozinhas aproveita-se para fazer a barrela. Encerar, limpar, desparasitar: são os verbos que, em agosto, se usam na descrição dos trabalhos parlamentares. Em agosto, a Assembleia da República fecha, dizem as notícias, que acompanham os dias parlamentares, mas a verdade é outra. Nestes dias de intensos trabalhos de orçamento, recupero uma reportagem do verão de 2015, sobre esses dias de agosto na Assembleia da República.
Os passos ecoam no vazio dos Passos Perdidos: o Parlamento foi de férias, mesmo que, ao longo de agosto, haja partidos que o usem como cenário para as suas declarações habituais. Mas, passados esses 20 minutos de fumo mediático, o verão permanece quente de outros trabalhos pelos corredores, salas, cozinhas e catacumbas do Palácio de São Bento. Restaura-se mobiliário, faz-se a barrela. Encerar, limpar, desparasitar são alguns dos verbos que substituem aqueles que habitualmente se usam na descrição dos trabalhos parlamentares.
Desta vez, a entrada nem se faz pela porta lateral do edifício antigo ou pela escadaria principal. É logo por uma garagem, paredes-meias com o velho convento, mas já no edifício novo da Assembleia da República. Há cadeiras que são levadas para uma carrinha. Vão a caminho do restauro, mas algures num subterrâneo parlamentar há mais exemplares gastos, velhos, partidos pelo uso. Datam de 1867, vêm da Sala do Senado, da antiga Câmara dos Pares do Reino, mas muitas já não têm remédio, apenas vão servir para o patchwork paciente de restauro das que ainda têm solução: o material de uma, o braço de outra, a perna ou um rodízio, até uma simples lasca, podem ser reutilizados num trabalho em que Frankenstein seria convocado, não fosse a perfeição o objetivo de quem mete as mãos ao trabalho. Não é imagem metafórica da política deste reino.
Esta "transplantação" de peças, como lhe chama Cátia Mourão, a responsável do museu da Assembleia da República, tem como objetivo "manter o mais possível a traça original" das cadeiras e passa pelas mãos de Rodrigo Bobone, o marceneiro e restaurador, que descobre nos rodízios de cerâmica das cadeiras uma inscrição que ajudará a explicar a sua origem. "Tente", lê-se numa das rodas; "COPE... patente" noutra; ou "C&C Paten" numa terceira. "O facto de terem uma patente prova que eram peças com qualidade", aponta Cátia Mourão, que situa em Inglaterra a proveniência destes rodízios de cerâmica. "Os ingleses eram muito avançados, à época, nestas ferragens", contextualiza, para logo acrescentar: "E diz muito das relações que tínhamos à época", recordando o fontismo e os empréstimos contraídos junto da banca inglesa por Fontes Pereira de Melo para o seu programa de fomento.
É no verão que se fazem estes "trabalhos de maior monta", anota Cátia Mourão, no caso do restauro de peças como estas cadeiras ou umas esculturas que também seguiram dias antes para conservação. Obras que obriguem a muito barulho, que o dia-a-dia de uma assembleia em pleno funcionamento não permite, acabam por ser agendadas para os fins de semana (mesmo em agosto). O Palácio das Cortes nasce em 1834 no antigo convento beneditino, daí o nome de São Bento, feito sede parlamentar pelo traço do arquiteto régio Possidónio da Silva, um homem do século XIX que se ocupava de vários saberes, de quem foram encontradas cartas de trabalho escritas em francês, e que aproveitou a Sala do Capítulo para instalar a Câmara dos Pares e fez de raiz a Câmara dos Deputados. Estas estruturas necessitam de cuidados permanentes, é um museu vivo, regista Cátia Mourão.
No Parlamento há mobiliário mais antigo, ainda da época monástica, mas é já muito pouco, um relógio conventual, de fabrico inglês, de caixa alta, que ainda funciona. E entre este mobiliário histórico há peças que continuam a ser utilizadas, como uma mesa da Presidência. A Biblioteca tem tudo aquilo que acompanha as Cortes desde 1821, arquivos da época, mas também mobiliário.
A cadeira número 82 da Câmara dos Pares (que consta de três inventários - do museu, da Assembleia Nacional e da Assembleia da República) tem uma perna partida, o forro precisa de ser retirado e o bicho já atacou, vê-se a olho nu a ação dos insetos. A forma como está estofada ajuda a datar e a perceber a origem das peças. Aproveita-se o que está dentro do estofo, enchido com algodão e crina. À cosedura original juntaram agrafos, tachas que revelam intervenções posteriores, a costura da serapilheira com fio de norte, as molas e as precintas, "são camadas de história sobre ela, como um palimpsesto", resume Cátia Mourão. "São artes que tiveram as suas técnicas e artesãos", regista Rodrigo Bobone, que se fez na arte do restauro num curso aos 15 anos. "Hoje há poucos cinzeladores, poucos torneadores, havia aprendizes, hoje não." Sobra o lamento na voz.
O restauro que se vai fazer à cadeira número 82 (e às outras, todas de nogueira) estará de acordo com os tempos. Vão ser usadas tachas que replicam a técnica original, sem agrafos, mas o forro novo não será de pele verdadeira, que a isso obriga a contenção orçamental. E procuram-se "peças que voltem a nascer", como explica Paula, a mulher e companheira de profissão de Rodrigo.
Alguns deputados ainda resistem a fechar papelada
Em 1615, os beneditinos decidiram-se pela instalação definitiva "da irmandade dos monges de hábito negro, numa quinta adquirida a Antão Martines", como se conta no site do Parlamento, "onde se encontrava a Casa de Saúde para acolhimento dos pestíferos vitimados pelo surto de 1569".
O novo Mosteiro de São Bento da Saúde, ou dos Negros, foi edificado de acordo com o projeto inicial de Baltasar Álvares, e é esta data redonda de 400 anos que a própria Assembleia da República vai comemorar em novembro com uma exposição no espaço do Refeitório dos Monges, onde hoje está instalado o Centro de Acolhimento ao Cidadão. No entanto, o refeitório sofreu já alterações, só um terço do chão será o original, com enxertados a preto e branco e pedra rosa na zona do púlpito.
Na I República houve uma renovação do edifício no seu aspeto exterior, ganhando a fachada definitiva que hoje vemos ao cimo da escadaria de São Bento, e no refeitório a fenestração ficou mais estreita, como explica Cátia Mourão. Houve necessidade de relocalizar alguns dos painéis de azulejos que espantam o visitante da sala.
Na exposição terá lugar de destaque a Burra, que é como se designa este cofre que está a ser fotografado para o catálogo, uma arca de bronze da época do mosteiro, que se crê vazia. Será necessário fazer uma chave que abra a fechadura.
Sai-se do refeitório, sobe-se aos Passos Perdidos, passam-se os corredores onde o bar do plenário está fechado, a tabacaria funciona a meio gás antes de uns dias de férias (e antecipam-se semanas mais paradas com as eleições legislativas a fazerem que os novos inquilinos de São Bento só cheguem em meados de outubro) e apenas alguns deputados ainda resistem a fechar papelada.
Na "cafetaria", o restaurante reservado a deputados, "aproveita-se para fazer a barrela", como explica João Xavier, um dos responsáveis na Divisão de Aprovisionamento e Património da Assembleia da República. Encerar o chão, limpar cortinados, desparasitar sofás, os trabalhos parlamentares são outros.
Desce-se um piso e um detetor de metais, semelhante ao que acolhe visitantes e funcionários nas portas do Parlamento, é usado para alimentos ou outros bens que são encaminhados para o edifício. "Passa tudo por detetores", aponta João Xavier. No restaurante dos deputados, agora sem funcionar, são servidas cerca de 60 refeições diárias. Na chamada "cantina", em frente, em média o número atinge as 200 (ou mais, dependendo de visitas de grupos), números que em agosto são mais modestos: 115/120. Há uma caixa com melancias. "Primeiras a sair", escreveu alguém num papel.
Ao longo do ano, os fins de semana são aproveitados para os trabalhos regulares de manutenção, mas em agosto a limpeza é profunda em bancadas e canalizações, substituem-se os filtros dos exaustores e extintores, faz-se a manutenção dos alarmes de incêndio. No local da lavagem de "loiça grossa" exigiu-se a abertura de um respiradouro, por ser mais quente. Todo o cuidado é pouco.
A Assembleia da República dispõe de quatro armazéns. Um deles, aproveitando o vão de uma escada, fica a meio caminho entre o edifício antigo e o novo e é usado para guardar material informático. Algum equipamento mais obsoleto é retirado, ficando ali à disposição computadores e impressoras, prontos a levar para o sítio onde forem necessários. Em agosto, na casa da Democracia, "é preciso preparar aquilo para que nunca se tem tempo".
2011, o ano em que a Assembleia da República (quase) não parou
Em agosto, a Assembleia da República fecha, dizem as notícias, que acompanham os dias parlamentares. A verdade é outra: os deputados param, a casa fica a meio gás, dois terços dos funcionários gozam férias, mas há quem vá garantindo o regular funcionamento da Assembleia, naquilo que é urgente. Em 2011, o credo na troika trocou as voltas a deputados e funcionários.
O então recém-empossado governo de Passos Coelho e Paulo Portas fez do trabalho mote e da produtividade contrassenha. Ainda em maio desse ano, sem se conhecerem resultados eleitorais, o CDS antecipava que ia propor que a Assembleia da República trabalhasse durante o verão, admitindo apenas uma a duas semanas de férias em agosto, para cumprir o que já estava estabelecido no memorando de entendimento com a troika.
Nas contas centristas, segundo o plano de ajuda externa, até ao fim desse ano de 2011, o Parlamento teria de legislar em cerca de cem matérias, "o que não é compatível com um prazo de férias muito prolongado", como explicava o dirigente Pedro Mota Soares. O CDS propunha que o Parlamento funcionasse ao longo dos meses de junho e julho, bem como logo a partir de setembro (por regra, as pausas de plenários eram de 15 de junho a 15 de setembro, prática caída em desuso pelos anos da troika). Mas só em julho, já com agosto a espreitar a uma quinzena, os deputados ficaram a saber que o mês de pausa não o seria completamente.
Nada que não fosse esperado depois da ladainha do primeiro-ministro, mal tomou posse: "O Parlamento e o governo, durante este período, não gozarão férias. Os portugueses estarão absolutamente comprometidos em que nos próximos meses, o essencial das decisões que tivermos de aplicar possam sê-lo", afirmou Pedro Passos Coelho no dia 23 de junho de 2011, falando em Bruxelas. "Nos próximos dois meses", repetiu o chefe de governo, era preciso tomar "o maior número de decisões práticas que permitam traduzir os objetivos que estavam em políticas concretas que vão ser aplicadas rapidamente a Portugal." Às férias curtas seguiu-se o corte nos feriados, subjugados à sacrossanta produtividade.
[reportagem originalmente publicada no DN, a 26 de agosto de 2015; na foto, Rodrigo Bobone, da empresa que faz o restauro, transporta cadeiras para um patchwork em que artes de outras cadeiras serão usadas para conservar as seis que vão para restauro. © Reinaldo Rodrigues/Global Imagens]