Março 01, 2021
O tríptico da pandemia. Canções para estes tempos de inquietação
Miguel Marujo
De surpresa, Nick Cave trouxe-nos mais um disco, por estes dias, Carnage, assinado a meias com Warren Ellis, seu parceiro nos Bad Seeds e companheiro de muitas bandas sonoras. Com o mundo fechado em si mesmo, por conta de uma pandemia, uma digressão (que passaria por Lisboa) cancelada e a raiva de não poder subir a um palco, o australiano já se tinha apresentado em 2020 alone ao piano e escrito o libreto para uma quase-ópera de um compositor belga.
Carnage é como que uma terceira parte daqueles dois trabalhos, todos eles marcados por estes tempos de pandemia, como assumiu o próprio Nick Cave. Quando anunciou em dezembro que os concertos no Reino Unido e na Europa estavam cancelados, o músico explicou-se no seu site em que mantém correspondência com os fãs que, sem a digressão, o melhor mesmo era gravar um disco. “Time to make a record”, e fechou a conversa.
“Fazer Carnage foi um processo acelerado de intensa criatividade”, contou por sua vez Warren Ellis, o companheiro que é cada vez mais a mão que guia Cave, seja nos Bad Seeds, nos discos e em palco, seja na forma como as suas orquestrações arrumam no tom certo as canções de Nick.
E que canções, estas. Nick Cave descreveu o álbum como “um registo brutal, mas muito bonito, aninhado numa catástrofe comunitária”. “We won't get to anywhere, darling/ Anytime this year/ We won't get to anywhere, darling/ Unless I dream you there”, e a partir de Albuquerque revisitamos este longo ano de confinamentos. Mas estas são canções cheias de fé dentro, que é como quem diz cheias de dúvidas e incertezas, e comoventes. Mesmo um descrente pode ouvir nestas palavras e sons um qualquer deus.
Naquele que é o primeiro disco de canções de Cave e Ellis, prolongando a colaboração a dois na escrita para cinema e no trabalho coletivo dos Bad Seeds, a criatividade posta nesta carnificina foi intensa: “As oito músicas estavam lá de uma forma ou de outra nos primeiros dois dias e meio”, disse Warren. E isso reflete-se em composições que ora nos aconchegam, ora nos desacomodam. “People ask me how I’ve changed/ I say it is a singular road/ And the lavender has stained my skin/ And made me strange”, revela-nos em Lavender Fiels, uma bela canção que musicalmente, sobretudo nos coros, nos remete para as composições religiosas da comunidade ecuménica de Taizé, que Cave e Ellis nunca terão ouvido na vida. “We don’t ask who/ We don’t ask why/ There is a kingdom in the sky”, ouve-se ainda.
As polifonias vocais de Hand of God ou White Elephant embebidas na matéria orgânica sonora que Ellis tece em torno das letras de Cave recusam sempre uma grandiloquência desnecessária, comovendo antes o mais empedernido dos corações. Como aqueles versos que nos fecham o álbum, em Balcony Man: “And this morning is amazing and so are you/ This morning is amazing and so are you/ This morning is amazing and so are you/ In the morning sun.” Infinitamente simples.
Este tríptico da pandemia iniciou-se em 2020, o ano em que o australiano se sentou sozinho ao piano, registado em Idiot Prayer, para nos trazer 22 orações muito pessoais, desde o londrino Alexandra Palace para todo o mundo, numa transmissão em streaming, e em que se dedicou também à escrita de 12 litanias a convite do compositor neoclássico belga Nicholas Lens.
Nick Cave teve de ir pesquisar o significado de litania, apesar de ter aceitado prontamente a proposta para escrever uma ópera para Lens, para quem já tinha feito um anterior libreto, Shell Shock, sobre os horrores da I Guerra Mundial.
“A primeira coisa que fiz, depois de desligar o telefone, foi pesquisar: ‘O que é uma ladainha?’ E aprendi que uma litania era ‘uma série de preces religiosas’ e percebi que, durante toda a minha vida, escrevi litanias”, contou.
Uma improvável paixão de Cristo
Não é de agora que a religiosidade e a espiritualidade impregnam a música de Nick Cave, e de uma forma mais explícita (e assumida pelo músico) no seu percurso mais recente, marcado pela morte de um dos seus filhos em 2016. Skeleton Tree e Ghosteen são marcas indeléveis dessa jornada entre o desespero e a graça.
Também em L.I.T.A.N.I.E.S., o álbum que a Deutsche Grammophon editou dias antes do Natal de 2020, as palavras de Cave transportam a música de Lens por uma improvável paixão de Cristo, minimal e contida de palavras e frases que se repetem como numa ladainha, por vezes hipnótica, quase sempre melancólica.
“Eu estava confinado, a minha digressão mundial tinha sido cancelada e sentia uma estranha inquietação, tanto apocalíptica quanto monótona. Nicholas ligou-me e perguntou se eu poderia escrever doze litanias. Eu concordei alegremente.”
O registo é menos operático e a composição de Nicholas Lens remete-nos antes para música de câmara, onde a tensão das cordas, sopros, teclados e percussões com as vozes tinge o silêncio destes tempos de pandemia. Este é um álbum que não esconde os dias em que nasceu: o confinamento de Lens em Bruxelas, o silêncio que se ouvia na capital belga, cruzaram-se com uma experiência de Nicholas no Japão, onde ouviu um conjunto zen que conseguiu “transformar uma tristeza vaga e avassaladora numa promessa calorosa”.
Para gravar o disco, por causa do distanciamento físico exigido, Nicholas Lens rodeou-se de um pequeno ensemble de câmara (viola, violino, violoncelo, clarinete, fagote, flauta, saxofone, percussão e teclados), músicos também eles confinados, cada um em sua casa, e das vozes da sua filha, Clara-Lane Lens, da sua própria (assinando com o seu nome, Nicholas L. Noorenbergh), da soprano Claron McFadden e da do tenor Denzil Delaere.
Esta paixão abre com Litany of Divine Absence, com o piano a marcar o compasso e uma voz sussurrada que pergunta Where are You?, a criatura a questionar o Criador, “onde estás?”, como uma criança perdida no escuro, ou um filho de Deus cheio de dúvidas no Monte das Oliveiras.
Por algum motivo, o libreto começa com a Litany of Divine Absence e termina com a Litany of Divine Presence (“I see you”, canta a voz). E neste caminho há lugar à transformação, também pelo amor, outro tema omnipresente na escrita do australiano: “And I’ll watch you die and I’ll save you/ Am full of language, but do not speak/ I am holding you and I need you/ I am holding you and I need you/ I need you”.
É Nick Cave que nos diz, por estes dias, em mais uma das suas cartas aos fãs, na qual fala sobre o cristianismo, que “atos de compaixão, bondade e perdão podem acender [o] espírito de bondade dentro de cada um e no mundo”. Tal como em L.I.T.A.N.I.E.S., onde nos conduz entre o desespero e a graça, Cave aponta para a redenção que também ele procura. “Pequenos atos de amor que se estendem e trazem socorro a esse espírito animado, o Cristo suplicante, tão necessitado de reabilitação.”
L.I.T.A.N.I.E.S. vive essa experiência e pede que nos deixemos levar nesse mesmo conflito. Se durante toda a sua vida, Nick Cave escreveu litanias, vale então a pena perscrutar Idiot Prayer, o tal registo do australiano a solo (“alone at Alexandra Palace”, diz-nos em subtítulo a capa do disco de 2020), que despe de artifícios 22 das suas canções e poemas e nos apresenta o seu universo em voz e piano. E onde encontramos uma resposta para estes dias de pandemia: é o mistério, a incerteza e o conflito que alimentam a fé de cada um (e fé é duvidar sempre). Como em todas estas litanias e orações.
O álbum Carnage foi editado a 25 de fevereiro. Dois dias antes, eu tinha publicado no jornal 7Margens um texto sobre as duas obras anteriores de Nick Cave, Idiot Prayer e L.I.T.A.N.I.E.S., quando afinal havia novo álbum ao virar da esquina. Ao escutar Carnage, com Warren Ellis, ouvi-o logo como uma terceira parte do que seria aquele texto se tivesse sido escrito dois dias depois. Assim, mantendo a estrutura desse texto original, acrescentei agora algumas notas sobre o novo disco. Fotos de Joel Ryan e Cat Stevens.