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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Abril 14, 2023

O silêncio caiu nas teclas de Ryuichi Sakamoto

Miguel Marujo

 

Ryuichi-Sakamoto.jpeg
(1952-2023)

Na hora da morte, as palavras tornam-se acessórias: duas datas num fundo de tonalidades cinzentas, 17 de janeiro de 1952 – 28 de março de 2023. E uma imagem que sobressai depois, um piano carcomido pelo tempo, deixado ao abandono, as teclas em sobressalto, gastas, velhas, partidas. E sem som algum a acompanhar – o silêncio é música, também na hora da morte.

Ryuichi Sakamoto morreu na terça-feira, dia 28 de março, soube-se no domingo, 2 de abril, e o anúncio foi feito daquele modo simples nas suas páginas das redes sociais. Já se esperava: em 11 de dezembro, o compositor e músico japonês tinha dado um concerto para 30 países em streaming, antecipando a sua última prestação “ao vivo” e um disco, anunciado para 17 de janeiro, data do seu aniversário. A doença minava-o.

Nesse dia, foi divulgado 12, o nome do que é afinal o seu testamento, um novo disco de 12 canções, uma obra de quem sabia que a sua vida vivia o ocaso mas continuava a espantar-se e a espantar-nos com a beleza das coisas. 

O disco pede recato, paciência e silêncio (como nesta hora do ocaso), numa “impressionante tapeçaria de teclados, elétricos e acústicos, misturando [música] ambiental e clássica”, “um soberbo ensaio introspetivo”, no qual Ryuichi “examina a morte”, como definiu o crítico da Qobuz Magazine. O silêncio sempre a cair sobre este disco.

Este é um registo que mora bem mais próximo do que se espera da sua obra para cinema ou dos registos pop – da Yellow Magic Orchestra a discos como Neo Geo ou Beauty. Sakamoto é, para muitos, o piano e a composição de Feliz Natal, Mr. Lawrence, com David Sylvian a cantar Forbidden Colours, uma das mais belas pérolas da pop, mas também o compositor de parte da banda sonora de O Último Imperador e das composições de Um Chá no Deserto/The Sheltering Sky, dois filmes de Bernardo Bertolucci.

 

Entre discos em nome próprio e bandas sonoras, o japonês também colaborou com muitos outros músicos, instrumentistas e compositores, como o músico alemão Alva Noto, com quem partilhou vários discos (notáveis), David Sylvian, com quem gravou um conjunto de canções extraordinárias (e já falámos de Forbidden Colours), Virginia Astley, que reuniria Sylvian e Sakamoto no belo disco Hope in a Darkened Heart, ou Jaques e Paula Morelenbaum, com quem partilhou Casa, um projeto com música de Tom Jobim (e Jaques também se junta a Sakamoto em 1996 e Three). 

Muitos outros passaram pelo radar e pelos discos do japonês, como Robert Wyatt, Youssou N’Dour ou os Talking Heads – e todas estas referências são curtas. Ao Público, em 2006, admitia: “Às vezes as colaborações são mais inspiradoras. Trabalhar com outros coloca-nos em confronto com aspetos de nós próprios que muitas vezes estão ocultos. É mais surpreendente.” Afinal, “compor para filmes, encetar colaborações ou criar álbuns a solo é o mesmo”.

O francês Claude Debussy era a sua influência, o seu “herói”, e disse-o até ao fim. “A música asiática influenciou fortemente Debussy, e Debussy influenciou-me fortemente. Assim, a música dá a volta ao mundo e fecha o círculo”, explicou-se em 2010. E com esta ideia o próprio foi definindo a sua música. Ao ouvir-se Ryuichi, nota-se que há uma forte curiosidade no seu percurso, há muita música do mundo, de vários mundos, há muitas vozes de tantas partes do globo, e o que se ouve é, na sua longa discografia, uma música que soube escutar e absorver sonoridades e foi ganhando um corpo próprio e uma voz única, fosse a solo, em orquestras, ensembles ou colaborações a dois.

Na mesma entrevista ao Público, questionado sobre se o excesso de música no espaço público se tinha tornado no seu principal inimigo, dizia que era “possível”. E acrescentava: “No nosso estilo de vida, a música é mais um produto de consumo. O excesso de música faz com que estabeleçamos com ela uma relação de quase indiferença. Pelo excesso, nivelamo-la de igual forma – a boa e a medíocre. Precisamos de silêncio, como na peça [4’33”] que John Cage compôs nos anos 50. Não sei se estamos próximos desse espírito, mas há sombras de Cage a atravessar a nossa música. Temos que reaprender a ouvir. Saber estar no silêncio, é o princípio.”

Talvez tenha sido esta ideia, de reaprender a ouvir, que levou Sakamoto a abordar o chef de um restaurante japonês em Nova Iorque, onde ia com muita frequência quando vivia na cidade americana, para lhe sugerir que ele próprio faria a playlist (sem cobrar por isso) do restaurante em Murray Hill, por não suportar o que ouvia durante as refeições. Ben Ratliff contou a história nas páginas do New York Times, em 2018, e escrevia que não era tanto o facto de a música estar alta que incomodava Ryuichi, mas que a mesma “era irrefletida”.

Na descrição do jornalista, não havia temas de Sakamoto. Havia solistas de piano, “de várias tradições indistintas; algumas melodias que poderiam ter sido composições de bandas sonoras de filmes; um pouco de improvisação”. E acrescentava: “Onde havia voz, geralmente não era em inglês. Reconheci uma faixa do disco Native Dancer de Wayne Shorter, com Milton Nascimento, e uma pianista que soava como Mary Lou Williams, embora não tivesse a certeza. Não era uma música que estabelecesse uma marca, ou do tipo que dá vontade de gastar dinheiro; representava o profundo conhecimento, a sensibilidade e as idiossincrasias de um cliente dedicado. Eu senti-me espantado e acolhido com sensibilidade. Senti-me em êxtase.”

Sakamoto preferia o silêncio, ou fugir dos sítios onde não gostava da música que ouvia. No seu caso, dois cancros na última década – um primeiro, na garganta, de que recuperou, e um segundo no intestino – foram prolongando os seus tempos de silêncio. O disco que ouvimos em janeiro (e terá edição física nas próximas semanas) nasceu de quase um acaso, um esforço mais do compositor e músico, com os 12 temas a receberem o nome dos dias em que foram gravados.

“Depois de finalmente ‘voltar para casa’, para o meu novo alojamento temporário após uma grande operação, dei por mim a pegar no sintetizador. Não tinha intenção de compor algo, só queria ser inundado de som”, confessou. E inundou-nos de vida. Arigatō, Ryuichi. Sayōnara.