Março 07, 2023
O lado político do poeta que é cardeal
Miguel Marujo
Em 1992, José Tolentino Mendonça assinou um manifesto que abalou a política e a Igreja da Madeira, na altura de João Jardim, esteve numa iniciativa contra a troika e achava que "o catolicismo sem uma inscrição à esquerda perde uma potencialidade profética que lhe é absolutamente indispensável". Recupero este texto de 2019, quando Tolentino foi elevado a cardeal.
Poeta e padre, teólogo e biblista, como tantos apresentam o novo cardeal português, José Tolentino Mendonça irrompeu com estrondo na política madeirense em 1992, quando um grupo de jovens padres da região - que incluía também o atual líder do PCP regional e ex-candidato presidencial, Edgar Silva - publicou um texto muito crítico do poder da época. Alberto João Jardim era então o senhor todo-poderoso da Madeira e Teodoro Faria o bispo tantas vezes acusado - como foi o caso desses padres - de acolitar o poder laranja.
Por entre as palavras que dão sentido à vida e fé de Tolentino Mendonça, esta é uma dimensão que nunca esteve ausente do seu discurso, mesmo que de forma discreta. O arcebispo, filho de pescador, que hoje é o arquivista e bibliotecário do Vaticano, colocou-se no lugar de fazedor de perguntas, em fevereiro de 2017, para questionar onde anda um "catolicismo de esquerda".
Num colóquio do Centro de Reflexão Cristã (que se assume como espaço de diálogo entre cristãos de diferentes sensibilidades e entre cristãos e não cristãos) sobre "católicos à esquerda", o novo cardeal preferia lançar dúvidas. "O meu papel é o de formular a pergunta. O que é hoje ser católico à esquerda em Portugal? E por que é que é tão difícil, tão rara, a presença pública de um catolicismo à esquerda, que também ajude a equilibrar a própria prática eclesial", apontava.
A preocupação tem uma razão de ser, na leitura de Tolentino: "Fazendo um diagnóstico da Igreja portuguesa, sente-se claramente um certo vazio, uma ausência de atores que possam trazer para o interior do debate eclesial um conjunto de questões que normalmente, geneticamente, estão associadas à esquerda, e essa ausência provoca um fechamento da Igreja ou um alheamento da Igreja em relação ao debate público."
Falando de Alfredo Bruto da Costa, ministro da Coordenação Social e dos Assuntos do governo de Maria de Lourdes Pintasilgo (em 1979), que se destacou no estudo da pobreza, como uma referência sua, também política, Tolentino é assertivo: "Acho que o catolicismo sem uma inscrição à esquerda perde uma potencialidade profética que lhe é absolutamente indispensável."
Se esta intervenção é de 2017, o tema permanece atual. Dizendo-se apenas uma "antena" que "fareja" a realidade, Tolentino Mendonça nota que, "sociologicamente, o catolicismo português é arrumado à direita" e, "quando se fala de uma sensibilidade católica", essa é "imediatamente" tida como "um alinhamento à direita, salvo raras exceções que são identificadas como aves raras no panorama político ou cultural".
Para o futuro cardeal, que será nomeado em 5 de outubro, isto é "um problema": "Parece que o catolicismo português contemporâneo está a gerar uma monocultura [em que] o alinhamento intelectual e político da maior parte do corpus dominante dos católicos vai à direita e que a esquerda se tornou um lugar esporádico de inscrição de cristãos e de cristãs, que possam fazer a partir daí um caminho de compromisso político e de diálogo com a sua fé. Os católicos à esquerda entraram numa espécie de clandestinidade - são clandestinos."
"Há uma nova geração que é capaz de uma militância à esquerda", regista, mas não sente "essa vitalidade à esquerda". "Acho que francamente é pena."
José Tolentino Mendonça diz que se há debate instalado com o atual Papa é este e estranha "que, na sociedade portuguesa, este debate ainda não tenha acontecido", apesar de notar que, à esquerda, há "uma aproximação ao Papa Francisco, uma citação permanente das suas palavras no espaço público", enquanto, num "certo setor colocado à direita", existe "um incómodo muito grande" com o bispo de Roma "e uma necessidade de estar sempre a traduzir o seu magistério, como se ele não falasse claro e fosse necessário mitigar o impacto do seu posicionamento e do seu magistério".
Entre as aves raras que intervêm à esquerda, de que fala o arcebispo, pode incluir-se Edgar Silva, que deixou o exercício sacerdotal em 1997 para se dedicar à política. Da Madeira, onde anda em campanha para as eleições regionais de 22 de setembro, Edgar Silva recorda ao DN o vínculo que Tolentino mantém com a região. "Ele sente muito esta necessidade de regressar sempre ao chão a que pertence, a este chão vulcânico."
"Sermão ao Jardim dos pecados"
Edgar Silva recua a 1992 para contextualizar o manifesto Mais Democracia, Melhor Democracia, que indispôs Alberto João Jardim e o bispo do Funchal, Teodoro Faria. "É um documento que faz parte de uma sequência de documentos, ainda éramos estudantes de Teologia e depois padres", explica.
Aquele que hoje lidera o PCP madeirense lembra que todos os anos esse grupo de dez jovens, às vezes mais, se juntava, em julho ou agosto, no Porto Santo ou no Funchal, para uma semana de reflexão, onde discutiam a "realidade regional, a situação social, política e cultural, o estado da Igreja e os desafios para a Igreja". De cada uma dessas semanas de verão foram saindo documentos, "preocupações com a situação pastoral" da Igreja local ou "desafios que o Concílio [Vaticano II] colocava à diocese do Funchal".
Nesses anos, Edgar Silva identifica três textos "de teor mais político", incluindo o de 1992, que bebia na doutrina social da Igreja e na realidade social concreta da região. "Foi o que teve maior impacto político e mediático", aponta. O Expresso (22-8-1992) apelidava-o de "sermão ao Jardim dos pecados".
Alberto João não gostou, enviando recados ao bispo. O então presidente do governo regional disse, lembra-se Edgar, que "esta gente não tem perdão", questionando o que faria o prelado aos dez padres. "A pressão foi muito forte e o bispo chamou um conjunto de subscritores para os inquirir individualmente." Teodoro Faria aproveitou as movimentações pastorais para "tentar dispersar ao máximo o grupo", colocando alguns em paróquias mais afastadas ou difíceis. Alberto João dizia, no Telejornal regional, que o desenvolvimento "tem de ser feito com medidas económicas e não com poesia".
Os jovens padres pediam que "o debate seja estimulado e não evitado; que os direitos de oposição e de discordância sejam considerados aspetos essenciais da democracia; que, em consequência, a unanimidade não seja erigida em valor ou objetivo final de uma sociedade democrática". A poesia era de facto outra aos ouvidos de Jardim.
Tolentino Mendonça estava em Roma, a estudar, mas assinava o documento, juntamente com Edgar Silva, que também já tinha seguido para Lisboa, onde acompanhava o Movimento Católico de Estudantes, e outros oito padres, incluindo Francisco Caldeira, Paulo Silva e Rui Nunes de Sousa.
Hoje, como em 1992, Tolentino Mendonça "acompanha de forma muito direta a situação da sua terra", sempre "de forma muito contextualizada", confirma Edgar Silva, que o vai encontrando na ilha. "É um dever de fidelidade, e ele tem isso presente, é quase identitário."
É a atenção de quem "tem um gosto particular em fazer pontes", que o faz estar "com pessoas que não têm as mesmas convicções ou a mesma visão do mundo", como o definiu Pedro Mexia ao DN. Tudo somado, não espanta que Tolentino tenha participado, em 2013, numa conferência à esquerda contra o governo PSD-CDS, falando sobre "A situação da Cultura em Portugal".
Eram tempos de troika e os seus subscritores denunciavam "as opções, os conteúdos e as consequências de uma orientação política que vem arrastando o país para uma dependência crescente, avolumando injustiças e desigualdades, hipotecando as suas possibilidades de crescimento, estrangulando o presente e comprometendo o futuro das jovens gerações". Tolentino também esteve lá.
PERFIL
O cardeal português é um reconhecido poeta, biblista e teólogo. Desde 5 de outubro de 2019 tem lugar no Colégio Cardinalício.
O MADEIRENSE
José Tolentino Mendonça nasceu em 15 de dezembro de 1965, no Machico, na ilha da Madeira. Cresceu no Lobito, Angola, onde viveu com a família até aos 11 anos e onde o pai era pescador.
O POETA
O novo cardeal é um homem das letras desde muito novo. Escreveu textos no antigo DN Jovem, no qual antecipava: "Não quero ser escritor, quero ser feliz." Mas é poeta, escritor e ensaísta, autor de mais de 20 livros desde Os Dias Contados (1990).
O PADRE
Ordenado padre em 1990, estudou Ciências Bíblicas em Roma. Regressou a Lisboa, foi capelão e, mais tarde, vice-reitor na Católica, dirigiu o Secretariado da Pastoral da Cultura. Chegou ao Vaticano como consultor do Conselho Pontifício da Cultura. Elevado a arcebispo titular de Suava, é bibliotecário e arquivista da Santa Sé desde 2018.
[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 7 de setembro de 2019]