Outubro 15, 2021
O homem da fuga planeada em mortalhas
Miguel Marujo
Preso em Caxias, António Tereso passou "para o outro lado", o que lhe valeu ser ostracizado pelos camaradas do PCP. Afinal preparava uma fuga. Há quase 60 anos, "no dia 4 de dezembro de 1961, pelas 9h35, sete reclusos que se encontravam no fosso interior do reduto norte do Forte de Caxias na hora do recreio, auxiliados por outro recluso da sala de trabalho do mesmo Forte (a sala dos rachados), levaram a cabo uma espectacular e audaciosa fuga". Recupero o texto do obituário de Tereso, para recordar esta história que, na América, já teria dado um filme, como me dizia Domingos Abrantes na altura da morte do seu camarada.
As mortalhas do tabaco foram a maneira encontrada por aqueles homens para discutirem e prepararem a sua fuga da prisão de Caxias, durante a ditadura do Estado Novo. Era a única comunicação com António Alexandre Tereso, o "rachado", nome dado no PCP aos que traíam camaradas. Durante 18, 19 meses foi "ostracizado pelos presos", quando afinal estava a encenar essa traição, para ganhar a confiança de guardas e da direção da prisão para observar possíveis hipóteses de fuga.
Este herói para os comunistas morreu aos 89 anos a 7 de janeiro [de 2017], no dia em que desapareceu Mário Soares, o que obliterou referências à morte do "fulano excecional, de dedicação e abnegação", como o classificou Domingos Abrantes, militante do PCP, seu companheiro na fuga.
Motorista da Carris, Tereso é o nome que se destaca na fuga dos oito detidos da prisão nos arredores de Lisboa, às 9.35 de 4 de dezembro de 1961. Militante do partido, tinha sido detido a 27 de fevereiro de 1959 pelo envolvimento na "grande luta" dos trabalhadores da Carris. José Magro, dirigente do PCP também preso em Caxias, "propôs esse rasgo de Tereso: passar para o outro lado", recordou Abrantes ao DN. "Passou a ser rachado", apesar da desconfiança de camaradas e carcereiros. "Não tinha o perfil de rachado, que é uma pessoa abatida e o Tereso tinha feito vasqueiro no julgamento."
Encenando uma discussão numa refeição na cadeia, o motorista bateu à porta, traindo os camaradas. "Ninguém lhe falava", só dois presos, José Magro e Afonso Gregório, sabiam. Todos "cortaram com ele". Os companheiros da Carris "deixaram de lhe pagar o salário", eles que se quotizavam para ajudar as famílias de camaradas presos. "Era um troféu de caça para a polícia ter um comunista que se tinha passado para o outro lado", explicou Domingos. "Nem a mulher dele sabia que era tudo encenação", disse.
A sua função era ter a confiança dos carcereiros, com liberdade de movimentos. As hipóteses eram discutidas por mensagens escritas nas mortalhas do tabaco. "Ele tinha de esperar que todos adormecessem na sala dos rachados para escrever as mensagens. Toda a fuga foi discutida por mortalhas", contou Abrantes.
António Tereso descobriu um carro blindado, na chapa e no vidro, com pneus de câmara dupla. Havia dois automóveis: um Mercedes, cuja manutenção era feita por um pide que andava sempre com a chave, "e este Chrysler que tinha a chave na ignição". Foi uma ideia "de uma audácia tramada", exclamou Domingos. "Bater-lhe na cabeça que se podia fugir com o carro." Tereso precisou de "ganhar confiança para poder andar com o carro - convidou o diretor para uma volta, tornou-se normal circular de carro pela prisão", mas ali, ao recreio onde estavam os outros sete camaradas nunca tinha ido. "Éramos 11", recordou o também conselheiro de Estado, fugiram oito: "Foi feita uma avaliação dos quadros que mais interessavam ao partido." O carro não levava todos. "Aliás houve um erro que veio por bem", avaliou Domingos Abrantes. "Na nossa imaginação o carro tinha uma porta que não tinha. A distribuição dos lugares era em função de três bancos. Ainda bem que a gente se enganou. Com dois bancos se calhar não tínhamos ido tantos."
Na fuga de 5 segundos para entrar no carro, os homens foram às camadas, "como se fossem numa lata de sardinhas, seis no banco de trás e um à frente com o Tereso". O blindado que tinha sido de Salazar rebentou com o portão e protegeu-os dos disparos das espingardas dos guardas. Foram saindo dois a dois já em Lisboa e passaram à clandestinidade.
O motorista fugiu para a Checoslováquia e França, onde se fez torneiro mecânico. Regressou com o 25 de Abril. Domingos que só contactou com ele no dia da fuga, voltou a vê-lo apenas depois da revolução. E Tereso ensinou-o a conduzir. Reintegrado na Carris, depois reformado, Tereso ajudava sempre no partido. "Transportava camaradas, acabou por ser motorista aqui no partido. Ia a muitos sítios explicar a fuga, falava com jovens, era uma história atrativa. Agora, no fim, já estava muito debilitado. Não teve uma vida fácil."
[Artigo originalmente publicado no DN de 22 de janeiro de 2017, com o título "António Tereso. Morreu o homem da fuga planeada em mortalhas". Foto do Chrysler Imperial, 1937 - que esteve ao serviço de Salazar - usado na fuga retirada do site do Museu do Aljube. Foto da ficha de preso encontrada na internet. Foto de António Tereso, com a imagem do carro atrás de si ©Global Imagens.]