Outubro 27, 2022
O deputado que salvou a vida a 260 pessoas e outros dois que morreram em combate
Miguel Marujo
Em 2019, o PS queria homenagear os três deputados que morreram na I Guerra Mundial. Na altura, escrevi este artigo para o DN, viajando pelos arquivos e pela memória para lhe contar os dias em que estes homens perderam a vida.
A 14 de outubro de 1918, o paquete a vapor São Miguel, com mais de 200 pessoas a bordo, já navegava entre o Funchal e Ponta Delgada. Como os submarinos alemães, os temidos U-Boot, eram uma ameaça permanente para barcos que cruzavam o oceano Atlântico, o caça-minas NRP Augusto de Castilho zarpou do porto da Madeira para fazer escolta ao paquete.
Ao caminho do paquete saiu um submarino alemão, o U-139, comandado por um dos mais eficazes militares alemães na tarefa de afundar navios hostis: Lothar von Arnauld de la Perière. Apesar do "poder de fogo muitíssimo inferior ao do inimigo", como recorda um texto da Assembleia da República, o comandante da embarcação de defesa portuguesa, José Botelho de Carvalho Araújo, decidiu interpor-se entre o S. Miguel e o submarino alemão, para dar tempo ao paquete de se afastar ileso com os seus 206 passageiros e 54 tripulantes.
Primeiro foram lançadas caixas de fumo que procuravam cobrir o vapor. Quando se acabaram estas caixas, o barco - que antes da guerra tinha sido um arrastão de pesca, o Elite, da empresa de Lisboa Parceria Geral de Pescarias, Lda. (propriedade da Bensaúde & Cia), e seria depois requisitado pela Marinha portuguesa em junho de 1916 e adaptado a caça-minas - avançou em direção ao submarino, tornando-se alvo da artilharia alemã durante pelo menos duas horas. Seis homens morreram durante o combate e um último tiro disparado do U-Boot acaba por matar também Carvalho Araújo.
Com o navio parado, sem máquinas nem telégrafo para comunicar, com a artilharia danificada e as munições no fim, é dada ordem para abandonar a embarcação pelo imediato, o guarda-marinha Armando Ferraz, num salva-vidas com 36 homens, que chegou à ilha de Santa Maria ao fim de 48 horas, com menos um marujo a bordo (não resistiu a ferimentos e foi atirado borda fora). Outros 12 sobreviventes conseguiram meter-se num bote e atingiram a ponta do Arnel, em São Miguel, a 20 de outubro.
O NRP Augusto de Castilho terá sido saqueado pelos alemães, que o afundaram depois com cargas de demolição. No navio estavam os marinheiros portugueses mortos, como Carvalho Araújo.
Será um relatório do comandante alemão, publicado em 1920, com elogios ao primeiro-tenente da Marinha portuguesa, que levará o Parlamento a reconhecer o sacrifício de Carvalho Araújo e a conceder uma pensão à sua viúva.
Aliás, é esse mesmo Parlamento que reconheceu, em 14 de outubro [de 2018], nos 100 anos da morte do militar, o ato "heroico" de "um dos heróis mais consensuais do nosso século XX" e agora quer-lhe dar honras de evocação parlamentar no próprio edifício da Assembleia da República. Afinal, José Botelho de Carvalho Araújo era também deputado eleito em 1915 no Congresso da República.
Na primeira página do DN de 17 de outubro de 1918 uma única foto ao centro da densa mancha de texto (que eram as capas do jornal nesses anos) mostra o "comandante do caça-minas Augusto de Castilho". Na notícia - que termina abruptamente com um espaço em branco, que denunciará uma parte de texto censurada (vivia-se a presidência de Sidónio Pais) - escreve-se que "com respeito ao ataque dos submarinos inimigos ao vapor S. Miguel, nas estações competentes pouco mais se sabe do que o que já foi noticiado".
A informação de facto era ainda imprecisa, falando de um ataque de duas embarcações inimigas, quando se sabe hoje que era só uma. "Consta que dois submarinos inimigos de grande tonelagem, com peças de 16 centímetros, atacaram o vapor S. Miguel, interpondo-se a seguir entre este e os dois submarinos, o caça-minas Augusto de Castilho, do comando do 1.º tenente sr. João Botelho de Carvalho Araújo, antigo deputado democrático, oficial que regressara havia pouco da África Oriental, onde exercera o cargo de governador do distrito de Inhambane [Moçambique], dando-lhe combate."
E acrescenta-se que "logo que se soube do ocorrido no porto próximo, partiram para o ponto onde se travara o combate vários navios de guerra aliados, com o intuito de perseguirem os submarinos". Depois, várias linhas em branco. Hoje sabe-se que o recontro se deu a 35°35'N, 22°10'W.
No voto de saudação a Carvalho Araújo, de 14 de outubro de 2018, assinado por deputados do PS, a que se associou um social-democrata, defende-se que "o seu ato é heroico e de algum modo vitorioso e porque alcançou o seu objetivo que, de certa forma, reparava Portugal do trauma de La Lys, acontecido uns meses antes".
Para os [então] atuais deputados, "a confirmação deste consenso é o facto de terem sido promovidas, ao longo destes 100 anos, por diversas vezes e com pretextos vários, homenagens a Carvalho Araújo", incluindo a "prova não menos concludente" que "é a de 45 localidades, de 34 municípios portugueses, terem consagrado o nome do marinheiro nas respetivas toponímias".
Numa nova iniciativa parlamentar, a bancada do PS quer evocar este marinheiro e outros dois militares que morreram ao serviço de Portugal na I Guerra Mundial: João Francisco de Sousa era capitão de infantaria e José Afonso Palla major de artilharia, quando perderam a vida na sequência de combates em Mongua (também grafada como Môngua), no sul de Angola: o primeiro no campo de batalha, o segundo semanas depois por causa dos ferimentos sofridos.
Como se conta no site Portugal 14-18 (uma iniciativa do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dedicada à "memória da participação portuguesa no conflito de 1914-1918"), nos dias 18, 19 e 20 de agosto de 1915, "as forças expedicionárias comandadas pelo general Pereira d'Eça dispersam um ataque contra os depósitos de água de Mongua, que haviam sido ocupadas no dia 17 de agosto".
No DN de 21 de agosto desse ano relata-se, ao fundo da primeira página sob o título "As operações militares em África", que "o sr. ministro das colónias leu [na véspera] na Câmara dos Deputados" um telegrama do governador geral de Angola dando conta que "foi atacado com muita violência pela gente do Cuanhama, na Mongua, a 45 quilómetros de N'Xiva e a 60 quilómetros do Huambo, pelas 9.30 de 18, durando o fogo duas horas e meia, sendo o inimigo repelido e perseguido pela cavalaria".
Ao contrário da notícia do ataque do submarino alemão, as baixas foram contabilizadas nesta notícia do DN três anos antes daquela. "Tivemos 30 feridos dos quais 6 oficiais, 6 praças europeias mortas e outras tantas indígenas mortas [sic]. A muita violência do fogo originou um grande consumo de munições que devido à falta de água e à dificuldade de abastecimento me coloca em situação grave, exigindo demora na Mongua para prosseguir." E o governador deixa um apelo: "Urgentíssimo venha tudo quanto tenho pedido para automóveis sob pena de a situação ser desesperada."
Entre os oficiais mortos estava então o capitão de infantaria e senador eleito da República em 1915 pelo círculo de Ponta Delgada, João Francisco de Sousa. Morreu em 19 de agosto de 1915, naquela que o historiador Filipe Ribeiro de Menezes descreveu como "uma das maiores batalhas campais entre tropas africanas e europeias" e que o historiador francês René Pélissier descreveu como "a única vitória franca e decisiva do Exército Português metropolitano em África".
Já José Afonso Palla era um "ilustre republicano e herói do movimento revolucionário de 5 de outubro de 1910", como explica o PS na sua nota evocativa, e deputado à Assembleia Nacional Constituinte em 1911 e reeleito deputado em 1915 por Lisboa. Morreu em 8 de setembro de 1915, depois de ter sido gravemente ferido na batalha de Mongua.
[artigo originalmente publicado no DN, a 14 de janeiro de 2019; fotos reproduzidas a partir do artigo]