Maio 10, 2021
Não vai ter golpe. (De quando o Brasil entrou em ebulição)
Miguel Marujo
Entre aquela noite de vento no verão passado [2015] e esta tímida primavera, o Brasil entrou em ebulição e, há pouco mais de uma semana [em abril de 2016], deputados encheram a boca com deus e a família para justificar meras jogadas políticas, enquanto um deles invocou um torturador da ditadura militar brasileira como sendo "o terror de Dilma", a Presidente da República que foi torturada.
Esse golpe de 1964, louvado pelo deputado que cuspiu na democracia que lhe permite o dislate, foi o mesmo que levou Gilberto Gil e Caetano Veloso a deixarem para trás o sol e o sal da Bahia em que nasceram e cresceram e a exilarem-se em Londres. Agora, regressam a Portugal, desta vez nos coliseus do Porto e de Lisboa, para cantarem a sua amizade longa de mais de cinco décadas (depois de terem atuado a 31 de julho do ano passado em Oeiras), no espetáculo Dois Amigos, Um Século de Música, a digressão que festeja 50 anos da carreira de cada um.
Estávamos em julho de 1969 e a escolha da capital britânica para o exílio devia-se apenas à música, explicou Gil. "Paris tinha um meio musical aborrecido, Londres era o melhor sítio onde um músico podia estar", justificou nas páginas do jornal The Guardian. Curiosamente, Lisboa e Madrid ficavam fora do mapa do exílio porque os dois países também "viviam sob uma pesada ditadura". As ditaduras definiam o rumo dos dois amigos: deixaram o Brasil, onde tinham estado presos seis meses - dois na cadeia, quatro em prisão domiciliária - para chegarem à vida londrina onde experimentaram fundir o tropicalismo e o samba que traziam de Salvador e do Rio de Janeiro com o rock, o funk, o reggae ou o jazz que por esses dias ouviam nas ruas e nos clubes de Londres.
Ao celebrarem por estes dias 50 anos de música, eles têm o Brasil como pano de fundo: o golpe de 1964 assomou nas manchetes dos jornais de 2016 - e Caetano (com Gil) voltou a recordar esses tempos, num programa da televisão brasileira, Altas Horas. "A passeata", disse da manifestação de domingo, dia 13 de março, "não era suficientemente diferente da passeata da Família com Deus pela Liberdade que produziu o golpe de 1964, que ajudou a dar o golpe. O buraco é sempre mais em baixo, mas a gente tem que olhar com objetividade", apontou.
Novo disco
É esta objetividade que um e outro, Gilberto Gil e Caetano Veloso, colocam na música que fazem, celebrada agora numa digressão que começou com 25 canções escolhidas e viu o seu repertório crescer. Pelo meio já houve disco, com o mesmo nome da digressão, Dois Amigos, Um Século de Música (Ao Vivo), publicado em janeiro deste ano, que recupera o concerto de São Paulo, um dos 44 espetáculos que passaram por 35 cidades em 21 países, com uma audiência de umas 135 mil pessoas.
Os "veneráveis velhos da música brasileira", como lhes chamou o crítico da revista da especialidade Songlines, demonstraram bem mais do que aquilo que Alex Robinson ouviu no disco, a voz cansada e rouca dos 73 anos de Gilberto Gil, ou a "melhor forma" da doce voz de Caetano Veloso, também com 73 anos. Quem ouviu Gilberto Gil no verão passado, em Oeiras, a fazer percussão do seu violão e a usar a voz como o instrumento que soou mais alto enquanto cantava "Não tenho medo da morte mas sim medo de morrer", desconfia que seja assim, apesar da versão mais contida registada em CD de Não Tenho Medo da Morte, que vem já na segunda parte do concerto.
Os veneráveis velhos amigos transportam memórias de mais 30 álbuns, cantando à vez ou em conjunto, tocando violão e guitarra, num despojamento instrumental que não afasta a linguagem pouco ortodoxa que os dois sempre imprimiram à sua música, a solo ou em colaboração. Com a ditadura militar que os levou ao exílio, Caetano e Gil também fugiram à obrigação canónica que a esquerda intelectual queria impor contra o imperialismo, fosse na recusa das letras em inglês ou do uso da guitarra elétrica.
Back in Bahia
Hoje são dois corações vagabundos que resistem a adversidades, como aquele vento que assobiava aos microfones ou a inclemente distância de um palco num estádio como o do Parque dos Poetas, em Oeiras, no último verão. Agora, nos coliseus, numa série de quatro concertos que começou ontem à noite, haverá outra intimidade para acompanhar um alinhamento que, sem surpresas, deverá abrir com Back in Bahia, o regresso à Bahia quando em 1972 os dois deixaram o exílio político.
Sempre com os dois no palco, até quando um deles não toca nem canta, de camisa negra Caetano, de roupa branca Gil, estes dois rapazes deverão socorrer-se de composições que não são suas. E à abertura com uma canção de Gilberto - que foi ministro no primeiro governo de Lula da Silva - o concerto deve fechar com A Luz de Tieta, a feliz composição de Caetano que os portugueses reconhecem da telenovela.
Ao exílio, à subversão, ao experimentalismo, um e outro sempre olharam bem de perto para o seu Brasil. Canta Gil, podia também ser Veloso a dizer: "Não tenho medo da morte/ Mas sim medo de morrer/ qual seria a diferença/ Você há de perguntar/ É que a morte já é depois/ Que eu deixar de respirar/ Morrer ainda é aqui/ Na vida, no sol, no ar." Como estes dias que o país vive. E um dia eles voltam para lá, para a Bahia, de onde vieram, para a cantar e contar, como eles cantam. "Agora, os acontecimentos estão se atropelando. Precisamos de ter calma para olhar os acontecimentos. Não temos uma ditadura, mas o Brasil é um país desumanamente desigual e toda movimentação no sentido dessa tentativa de diminuir a desigualdade enfrenta a oposição da elite. Eu desconfio", argumentou Caetano na televisão.
No concerto em Salvador, no dia 2, quando o público se manifestou durante o tema Odeio (e Caetano canta "odeio você, odeio você, odeio você" - é apelativo, entende-se), usando as palavras de ordem dos apoiantes da presidente, "não vai ter golpe", Caetano concordou, "não vai" (mas a Câmara dos Deputados votou mesmo a abertura do processo de impeachment a Dilma Rousseff). Não vai ter golpe, não. Pelo menos nestas noites no Porto e em Lisboa. Sabemos bem com que linhas se tecem estas vozes.
[artigo originalmente publicado no DN, em 25 de abril de 2016, com o título "Não vai ter golpe. Caetano e Gil"]