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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Novembro 08, 2022

Lou desceu à terra. E nasceu Loaded dos Velvet Underground 

Miguel Marujo

Loaded Velvet Underground.jpg

 

Loaded vai fazer 52 anos, a 15 de novembro — mas este texto foi publicado à passagem dos 45 anos, daí o arranque e o final datados do texto, que aqui recupero. Foi o último álbum de Lou Reed nos seus Velvet Underground. A editora pediu-lhes um disco carregado de sucessos e a banda respondeu com Sweet Jane e Rock & Roll. Sorte a nossa.

 

 

Quarenta e cinco não é número redondo de que se faça grande festa, sobretudo quando aquilo que se celebra começou por ser uma grande dor de cabeça. 

Nos tempos do streaming, em que a música nos chega às fatias no telemóvel ou pelo computador, a edição especial com que se assinala o 45.º aniversário da edição original de Loaded, o quarto álbum dos Velvet Underground publicado em novembro de 1970, é um acontecimento. Não por causa da dor de cabeça que foi para Lou Reed, Sterling Morrison e Doug Yule, mas sim pelo que esta edição nos poderá desvendar mais deste que seria o álbum que marcaria a saída de Reed. 

A caixa de seis discos — e é com estes luxos que se renova o interesse pela edição discográfica — inclui o álbum original remasterizado na versão estéreo e na versão mono, uma seleção de demos e remisturas, um DVD áudio com três remisturas do álbum, uma nova remasterização do LP ao vivo Live at Max’s Kansas City (gravado em agosto de 1970, dias antes de Lou Reed deixar a banda, e editado em maio de 1972) e a gravação inédita de outro concerto de maio de 1970, no Second Fret de Filadélfia, onde a banda se apresenta em formato de trio — a baterista Moe Tucker estava grávida e Yule dividiu o seu tempo entre as baquetas e o baixo. 

Já sem John Cale, o grupo assinaria logo no início desse ano de 1970 pela Atlantic, deixando a Verve (etiqueta que já então apostava no jazz que faria dela uma editora conceituada) onde os Velvet Underground tinham editado os três primeiros álbuns, The Velvet Underground & Nico (1967), White Light/White Heat (1968) e The Velvet Underground (1969), com grande reconhecimento crítico e vendas pouco entusiasmantes. 

Entre este terceiro álbum e aquele que seria o seu quarto trabalho, os Velvet Underground ainda entraram em estúdio, em maio de 1969, mas em agosto o responsável da MGM dispensava-os por querer uma direção mais saudável para a editora. Em novembro, o álbum, ou pelo menos o que havia dele, desaparecia. 

Em 1970, já na Atlantic, conta a história que lhes foi pedido um álbum carregado de sucessos — “loaded with hits”, o loaded que o grupo fixou como título — e que o editor Ahmet Ertegun terá exigido a Reed canções livres de sexo e drogas. Acabaram cheias de rock’n’roll, com uma produção mais macia que lhes trouxe desta vez fama e proveito. Foi Sterling quem desabafou, anos depois, que Loaded mostrou que podiam “ter feito, naquele tempo todo, discos com um registo genuinamente comercial”. 

É Lenny Kaye quem escreve, a 14 de dezembro de 1970, nas páginas da Rolling Stone, com o disco acabadinho de sair, que “a coisa mais surpreendente sobre a mudança no grupo é que não houve de facto nenhuma mudança”. “Loaded é apenas um refinamento da música dos Velvet Underground, que tem crescido ao longo do percurso dos seus três últimos álbuns, e se desta vez eles parecem ser uma versão próxima dos seus vizinhos roqueiros do bairro, só tem que voltar para o seu primeiro álbum e ouvir coisas como I’m Waiting for the Man e There She Goes Again para qualquer resposta”, escreve o crítico musical da Rolling Stone. 

A canção de abertura, Who Loves the Sun, com as suas várias camadas vocais, parece de facto afastar os Velvet Underground dos seus “muitos seguidores avant-garde”, como descreve Kaye, mas Sweet Jane ou Rock & Roll, os temas que se seguem e que se transformaram em autênticos hinos do grupo (e também da carreira a solo de Lou Reed), abalam a produção mais limpa que o álbum denuncia desde a primeira hora. A cedência comercial, que a editora lhes terá pedido, parece ser apenas frase feita dos responsáveis discográficos — o génio de Reed não admite concessões, não facilita nos acordes e nas palavras, e apesar da interferência de Doug, é a Lou que se atribui hoje a composição dos temas (depois de uma batalha legal). 

Sterling Morrison reconheceu em tempos, numa entrevista, que tinha “fortes sentimentos” sobre a presença cada vez mais evidente de Doug Yule, deixando escapar um (quase eterno) lamento sobre Reed. “O álbum saiu bem, e ao nível da produção é o melhor, mas podia ter sido ainda melhor se tivesse tido boas vocalizações de Lou em todas as canções”, apontou Sterling, citado por Michael Bonner na revista britânica Uncut. 

Yule canta em quatro temas e Morrison continuava às avessas com Reed. “Eu mal falei com o Lou durante meses”, admitiria Sterling ao New Musical Express, em 1981, também citado por Bonner. “Acho que nunca lhe perdoei o facto de querer pôr o Cale fora da banda. Estava tão zangado com ele, por ofensas reais e imaginárias, que eu apenas não queria falar”, contou. Para acrescentar que também não foi de grande ajuda psicológica para Lou. 

Eram dias pouco meigos entre todos. As sessões de abril a julho de 1970, nos estúdios da Atlantic, em Nova Iorque, iam compondo o alinhamento das canções mas também, escreveria o jornalista da Uncut, quando os Velvet Underground decidiram gravar Loaded, não seria de estranhar que alguém se perguntasse “se eles realmente terminariam o álbum ou se entrariam simplesmente em combustão no estúdio”.

Essa combustão resultou na música e nas letras — felizmente para os nossos ouvidos, felizmente para a história da música, com mais esta obra fundamental. Lou Reed pode ter evitado o sexo e as drogas nas suas letras mas desceu as escadas do metro nova-iorquino, como se vê na ilustração original da capa, para descobrir os sons e as histórias dos habitantes da sua cidade (que, muitos anos depois, elogiaria de forma brilhante no seu opus a solo New York). 

Lenny Kaye notava que a música de Lou se tinha preocupado “sempre” com o “problema da salvação”, mas em Loaded descia à terra. “É como se ele tivesse decidido regressar onde ele mais pertence”, e em sua defesa traz-nos os versos de Sweet Jane: “Standing on the corner,/ Suitcase in my hand,/ Jack is in his corset, Jane is in her vest/ And me, I’m in a rock ‘n’ roll band.” 

Em Rock & Roll, parece ser Lou Reed que sintoniza aquela frequência de rádio, na pele de Jenny, 5 anos. “Then one fine mornin’, she puts on a New York station/ You know she couldn’t believe what she heard at all/ She started singin’ to that fine, fine music/ You know her life was saved by Rock ‘n’ Roll”. Lou foi salvo pelo rock’n’roll. Nós também — e Loaded é uma das provas materiais. Tem 45 anos. Belo número redondo! 

 

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, a 24 de outubro de 2015]