Setembro 16, 2016
Lloyd Cole e os amigos em Portugal
Miguel Marujo
foto Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens
Há uns 20 anos, um britânico descia ao Cais do Sodré, quando o Cais do Sodré não era o que é hoje, e sentava-se no British Bar a beber cerveja. O tipo atrás do balcão que servia o rapaz nunca sorria - e, com o passar dos anos, mesmo depois de terem ficado amigos continuou sem sorrir ao rapaz. “Gosto disso”, conta o britânico, hoje já menos rapaz - já tem 55 anos.
Lloyd Cole é esse rapaz e vive hoje as angústias próprias de quem começou a ter de usar óculos para afinar a guitarra. O britânico entra no palco, garrafa de água na mão, um pano preto com que vai limpando o braço e as cordas do instrumento e um caderno preto, onde alinha as canções deste concerto, the classic songbook, e aproveita as pausas entre as canções para ir debitando, numa fina ironia e humor, pequenas histórias das suas passagens por Lisboa com que pontua cada corda afinada.
Na segunda parte do concerto terá a seu lado o filho, William, 22 anos, “e como imaginam levou muitos anos” até poder ter alguém tão parecido como ele a tocar a seu lado. O mimetismo repete-se: Will também bebe a sua garrafa de água entre as canções, limpa o braço da guitarra e o cabelo solto e grande a cair nos olhos remete-nos como num flashback a preto e branco para o rapaz que, em 1983, lançou o single Perfect Skin. É um rapaz da sua idade, diz o pai, que revela que o filho aproveitou uns dias de férias em Lisboa para se deitar às 5, 6 da manhã, enquanto Lloyd já dormia. “Não me posso queixar, também fazia isso há uns 20 anos, quando ia para o Bairro Alto.”
Sente-se que Lloyd retribui a devoção que os seus amigos em Portugal lhe demonstram. É o único sítio onde o cumprimentam na rua, “Mr. Lloyd”. Gosta de Portugal, ele que vem cá com frequência e por estes dias se apresenta em quatro palcos (começou na quarta em Aveiro, atuou na quinta-feira à noite no CCB em Lisboa, hoje à noite está na Guarda e amanhã vem no Porto) em formato acústico recuperando o seu livro clássico de canções de 1983 a 1996.
Classic Songbook é pois tudo aquilo que se ouviu no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém: de Patience, que abriu o concerto, a Forest Fire, com que fechou já no final do encore, Lloyd Cole despe as canções ao osso (primeiro a solo, depois acompanhado de William) e apresenta-as em versões em que a voz só se faz acompanhar de guitarra.
Todas as palavras - e que poeta é Lloyd Cole! - ganham em ser escutadas quase sem mais, ainda para mais perante um público que as reconhece muitas vezes logo aos primeiros versos mas que as bebe num silêncio cúmplice de quem viveu afetos e desamores adolescentes ao som de My Bag, Jennifer She Said, Perfect Skin ou Are You Ready To Be Heartbroken?
Lloyd Cole não canta só canções deprimentes, lembra o próprio. Mas a depressão não é para ali chamada: o humor pontua cada afinação das guitarras nas pausas entre canções e a noite é de nostalgia, sem qualquer receio, numa revisitação cheia de gosto, em que a voz continua cristalina, e as guitarras substituem sem falhas o som pop dos Commotions. O rapaz que sabe dizer duas palavras em português (“Super” e “Bock”, e ainda acrescenta “Sagres”) deixou o palco perante um público rendido. Os seus amigos em Portugal.
[versão revista e aumentada da crónica original publicada no DN]