Outubro 14, 2025
Israel quer que nos esqueçamos da História. Um aparente beco sem saída
Miguel Marujo
Dois anos depois dos massacres do 7 de Outubro, que deram início ao atual genocídio em Gaza, eis a sugestão de alguns livros que ajudam a entender raízes, história e contexto do conflito. Dificilmente o atual cessar-fogo resultará, se não se for mais além. Estes livros dão pistas.

“É útil para Israel que todos nos esqueçamos da História”. Assim, de uma penada, o historiador Ilan Pappé resume muito do jogo de desinformação, manipulação e omissão que, por estes dias, nos conta o que se passa em terras de Israel e da Palestina ocupada. E este professor, natural de Haifa, em Israel, filho de judeus alemães que fugiram do regime nazi, insiste em tornar legível a história do conflito aberto entre israelitas e palestinianos.
Com o 7 de outubro de 2023, quando o Hamas lançou um ataque contra Israel, que deixou mais de mil mortos entre civis e militares israelitas, para além de mais de 200 reféns, Israel voltou à sua narrativa, tantas vezes repetida: qualquer ato de violência por parte de palestinianos é vista como “uma atrocidade anormal, compreensível apenas através da ótica de quererem aniquilar os judeus”, dando a Israel “carta-branca” para reações desproporcionadas e violentas. “O ataque do 7 de outubro é utilizado por Israel como pretexto parar implementar políticas genocidas na Faixa de Gaza” (p. 146).

Israel vs Palestina – A Mais Breve História do Conflito consegue de forma enxuta, sem ser exaustiva, situar-nos no âmago de uma guerra interminável. Ilan Pappé desafia há muito a narrativa tradicional sobre a fundação de Israel, e com esta centena e meia de páginas desmonta o mito de que a Palestina era uma terra vazia, como a propaganda sionista insiste em vender; refuta a ideia de que os ocupantes da Palestina romana de há 2000 anos eram os antecessores dos colonizadores sionistas que chegaram no século XIX; retrata o desastre diplomático britânico na gestão da autodeterminação e independência, prometida aos palestinianos, abrindo porta a um movimento de ocupação colonial, que é o sionista.
Foi este movimento sionista que burilou e conduziu ao longo destas décadas uma política assente na ocupação de terras e expulsão dos seus habitantes originais. Israel tem procurado confundir – por motivações políticas e ideológicas, para justificar a ocupação – antissionismo com antissemitismo, como se um e outro fossem caras da mesma moeda, mas Ilan Pappé desmonta de forma clara essa confusão.
Também por isso, o historiador (para quem dar contexto não é o mesmo que dar desculpas) abre com uma quase-provocação, ao citar o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que, nos dias seguintes ao ataque do 7 de outubro, relembrou que os palestinianos estavam sujeitos a uma ocupação com mais de cinco décadas. Mas as raízes são mais antigas, avisa Pappé, recuando ao final do século XIX.
O relato obedece a um cadência cronológica, em que a História parece repetir-se, fosse com a tutela colonial britânica, seja com o governo de Netanyahu. Em 1936 como hoje, a revolta dos palestinianos, não é apenas eliminada. “O objetivo não era simplesmente suprimir a revolta – era garantir que os palestinianos não voltariam a ter forma de se revoltar com eficácia.”
A História tem inquietantes pontos de contacto: os bombardeamentos britânicos, que arrasam cidades, como resposta a ataques de palestinianos, a ocupação de terras, a complacência da comunidade internacional, são cenas que se passam diante dos nossos olhos, nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, como no genocídio em curso na Faixa de Gaza. Estávamos em 1948 e estava em marcha “a limpeza étnica da Palestina”.
A cartilha de Netanyahu, nos dias de hoje, é a de Ben Gurion, um sionista e trabalhista, que avançou com a mesma impunidade da atual liderança israelita: ignorou a partilha do território em dois estados, patrocinou castigos coletivos, promoveu a limpeza étnica, deu ordem para arrasar três aldeias, com o massacre de crianças e mulheres (pp. 67-68).
Pappé não tem dúvidas: o movimento sionista é um projeto contínuo de colonialismo de ocupação, e a solução, para este historiador, é Israel esvaziar o seu “etos de colonialismo de ocupação”. Só assim poderá “coexistir pacificamente com os palestinianos”. Parece cada vez mais longe esse horizonte.
Biografias de um povo expatriado

As edições sobre a história e a política do Médio Oriente, em particular de Israel e Palestina, multiplicam-se por estes dias nas estantes das livrarias portuguesas. Para além da “mais breve história do conflito” de Ilan Pappé, há uma outra História da Palestina Moderna – Uma Terra, Dois Povos, do mesmo autor. O livro foi publicado em Portugal em 2007 e recuperado agora, pela necessidade de ir mais longe na espuma dos dias e dos comentários encartados das televisões.
O tempo e o propósito desta História vai mais longe que o livro dado à estampa no último ano. As suas mais de 400 páginas indicam-no. Esta obra não se confina apenas ao conflito, vai ao início do século XIX, ainda no Império Otomano, percorre a formação da Palestina moderna, demora-se no retrato social, cultural de uma sociedade sem política, nesses tempos, até ao início sionista. O sionismo é um projeto muitas vezes racista, que nasceu também impulsionado por cristãos europeus, que queriam – mais do que dar uma casa aos judeus – pô-los a andar da Europa. Estávamos na época dos nacionalismos egoístas que levariam às tragédias das duas guerras mundiais.
Se Israel vs Palestina pinta com uma cadência informada e breve aquilo que é o conflito entre israelitas e palestinianos, sem descurar o rigor, esta História da Palestina Moderna dá-nos o contexto e o enquadramento para o entender.

Palestina – Uma Biografia, Cem anos de guerra e resistência é de 2020, e mesmo o prefácio do autor, Rashid Khalidi, para a edição portuguesa (maio de 2022, reimpressa em 2024), é anterior a esta nova guerra entre Israel e a Palestina. No entanto, esta obra vai na linha de Ilan Pappé e traz-nos os elementos suficientes para melhor contextualizar o que se passa na região. Khalidi apresenta-nos os acontecimentos de forma detalhada, no seu contexto global e histórico, notando, como Ilan Pappé, que esta é “uma longa e desigual luta do povo palestiniano para resistir à expropriação de que é alvo”.
Rashid Khalidi, que se dedica aos estudos árabes, na Universidade de Columbia (EUA), apresenta-nos esta história, bebendo nas fontes arquivísticas de uma rica e extensa biblioteca reunida pelo avô e de outras famílias palestinianas, e pintando o retrato desta região a partir das suas próprias experiências pessoais. Os capítulos dividem-se cronologicamente pelas declarações de guerra – e no livro são identificadas seis, de 1917 a 2014, que se traduzem num século de guerra, em que os palestinianos poucas vezes foram ouvidos, e no qual o tabuleiro geoestratégico e político da região se sobrepôs à vontade dos muçulmanos, cristãos e judeus que habitavam estas terras palestinas. O mapa de Khalidi alarga-se ao Iémen, Líbano, Síria, Irão, entre outras geografias, para melhor entender estes cem anos.
Os Holocaustos de 2023 até hoje

O cientista político e arabista Gilles Kepel começa a sua narrativa no 7 de outubro de 2023, para apontar os “dois holocaustos que encarnam a maldição da Terra Santa” desde esse dia: “O pogrom cometido pelo Hamas”, nesse dia, “no qual foram massacrados, violados e mutilados 1140 israelitas, mulheres e homens, de bebés a idosos”; e ainda “a hecatombe de Gaza, causada pelos bombardeamentos e pelas operações terrestres do exército do Estado judaico, na qual morreram cerca de 25 mil palestinianos durante os primeiros cem dias da ofensiva”.
Este número já está desatualizado, mas a visão de Kepel em Holocaustos permanece muito atual. Ao usar o termo holocaustos no seu sentido religioso original de sacrifício em massa, o autor francês procura relacionar “Israel, Gaza e a guerra contra o Ocidente”, o subtítulo do livro. E este é um ponto que distingue as abordagens dos outros anteriores. Gilles Kepel aborda o conflito que opõe o Norte – que luta contra o antissemitismo nazi que ainda permanece – a um Sul Global, que está contra o domínio colonial e a perpetuação de regimes de apartheid. Uma guerra global ao Ocidente e aos seus valores, opondo o apartheid à Shoah.
É uma perspetiva desencantada sobre uma política mais interesseira que interessada, “um prelúdio ao Armagedão a que os beligerantes da Terra Santa aspiram”. O mundo que apenas pede justiça e paz fica sem chão.
O choque entre o Islão e a modernidade

O choque de civilizações, tão caro a uma determinada corrente, é ainda mais aprofundado em O Médio Oriente e o Ocidente – O que correu mal?, obra do historiador Bernard Lewis de 2002 (editada em Portugal em 2003 e que agora teve nova edição) que aborda “as consequências do choque entre o Islão e a modernidade”. Para lá das fronteiras do conflito entre Israel e a Palestina, para lá do que separa estes dois povos na mesma terra.
É uma obra de fôlego, que parte da traição da História, que os muçulmanos sentem, por causa da perda de uma liderança civilizacional e do afastamento da modernidade. Para Lewis, nota o tradutor e prefaciador deste livro, Bruno Cardoso Reis, “nenhuma comunidade está isenta de erros e crimes, mas também nenhuma tem o seu monopólio”, e por aqui não se esperam facilidades na leitura dessa História.
Nestas páginas não há Hamas ou Netanyahu, mas há suficientes e densas pistas para uma leitura destes tempos. A esperança deste académico britânico, com raízes judaicas e que morreu em 2018, era a de que os habitantes do Médio Oriente se perguntassem “Onde é que errámos?”, para ultrapassarem a decadência de uma região que foi uma das “maiores, mais avançadas e mais abertas civilizações da história humana”, e que hoje mergulha “num círculo vicioso de ódio e vingança, frustração e autocomiseração, pobreza e opressão”.
Pondo de lado estas “queixas e autocomiseração obsessivas”, talvez o Médio Oriente possa ser “um ponto importante em termos civilizacionais”. Por enquanto, esta é ainda "uma escolha que está nas suas mãos”, argumenta Lewis. No caso dos palestinianos, há quem não o permita. Um aparente beco sem saída.
Israel vs Palestina – A Mais Breve História do Conflito
Ilan Pappé, tradução de Ana Rooney-Magalhães
Ideias de Ler, 2025, 160 pp, 14,99€.
História da Palestina Moderna – Uma Terra, Dois Povos
Ilan Pappé, tradução de Ana Saldanha
Caminho, 2024, 416 pp, 20,90€.
Palestina – Uma Biografia, Cem anos de guerra e resistência
Rashid Khalidi, tradução de Carla Ribeiro
Ideias de Ler, 2024 (reimpressão), 404 pp., 19,99€.
Holocaustos – Israel, Gaza e a guerra contra o Ocidente
Gilles Kepel, tradução de Luís Filipe Pontes
D. Quixote, 2024, 216 pp., 18,80€.
O Médio Oriente e o Ocidente – O que correu mal?
Bernard Lewis, tradução de Bruno Cardoso Reis
Gradiva, 2024, 232 pp., 15,50€.
[texto originalmente publicado no 7MARGENS, com o título "Israel quer que nos esqueçamos da História. Estes livros lembram-nos como é", a 6 de outubro de 2024]

