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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Agosto 10, 2017

Humanz, a banda sonora para o fim do mundo

Miguel Marujo

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O aviso vem em letra de forma na capa de Humanz, o álbum que assinala seis anos depois o regresso dos Gorillaz: "Aqueles que têm medo da música são perigosos." Sabe-se que Damon Albarn pediu a Pusha T, ainda antes daquele mau dia de novembro de 2016, que imaginasse "uma festa para o fim do mundo, como se Donald Trump ganhasse". Trump ganhou a presidência americana e o mundo ganhou a banda sonora para esse fim do mundo como o conhecemos.

Quem há muito anda distraído pode achar que vai encontrar neste alter ego de Damon Albarn um pouco mais de Blur, o grupo a que deu voz na explosão da britpop e na guerra alimentada no espaço mediático com os Oasis, sem cuidar que os seus ouvidos vão mergulhar num mundo que atravessa pontes entre o hip hop, o tecno e o dub (e Albarn prometia canções de "125 batidas por minuto e nada abaixo disso") ou o reggae e a pop.

Esta banda virtual de Damon Albarn e Jamie Hewlett, responsável pela imagem gráfica dos Gorillaz, suga os anos 1980, no encontro com os De La Soul (também eles a viver uma segunda vida, como se pôde ou-ver no ano passado em Lisboa), mas também recuperando gente que seria proscrita, insultada e caricaturada por muitos na década final do século XX, como Jean-Michel Jarre (sim, os seus sintetizadores ressuscitam em três temas), a inesperada Carly Simon ou a sempre enigmática Grace Jones.

Também há Vince Staples, Danny Brown, Pusha T, Mavis Staples, D.R.A.M., Jehnny Beth, das Savages (que se mostraram no Primavera Sound de 2016 no Porto) e Kelela, que também no ano passado se apresentou a solo no Super Bock Super Rock, longe do palco principal dos De La Soul. E com Damon quase sumido nas vocalizações, há ainda a voz de Benjamin Clementine, sempre inclassificável, sempre brilhante, apesar de quase discreta nos tons fortes que fazem desta voz um templo sagrado. E, por fim, Noel Gallagher, um dos irmãos desavindos dos Oasis, também acompanha Damon e Jehnny Beth em We Got the Power, um gesto que motivou a fúria de Liam Gallagher.

Há coisa de três anos, este álbum começou a ganhar forma e, em outubro de 2015, Damon Albarn admitia que já estava a trabalhar em novas canções. Elas deviam transmitir três ideias centrais para este registo: "Dor, alegria, urgência." E Albarn era citado numa entrevista a pedir a festa de um mundo que se desfazia. "Eu disse a todos para imaginarem que estavam na América após a tomada de posse [do presidente] e que pensassem no pior cenário: como se sentiriam naquela noite? Vamos fazer um disco festivo sobre o mundo a ficar doido."

O álbum avança entre canções de corpo inteiro e interlúdios que experimentam palavras de ordem para o ritmo dos corpos. Temos o poder de nos espantar num universo que extravasa a música. Os Gorillaz têm uma existência virtual de quatro personagens animadas, completamente ficcionadas, sem qualquer correspondência com a realidade — apenas emprestam os nomes a vídeos e filmes, como também a instrumentos, como 2-D na voz e teclas, Murdoc Niccals no baixo, Noodle na guitarra e teclas e Russel Hobbs na bateria e percussão.

Já no final do álbum (na versão standard, que se fica pelos 20 temas; há uma edição deluxe que acrescenta mais seis canções de bónus), Jehnny Beth toma a palavra para nos dizer que temos o poder de nos amarmos, sem que mais nada importe: "We've got the power to be loving each other/ No matter what happens/ We've got the power to do that/ On a le pouvoir de s'aimer, okay?" E aqueles que têm medo da música são perigosos.

Num ano em que já tivemos Kendrick Lamar no seu Damn e Thundercat com Drunk, este Humanz ajuda a compor uma trilogia destes tempos modernos de inquietação de que qualquer coisa está para acontecer. É este o fim do mundo como o conhecemos — e sentimo-nos bem. Já se sabe: estas canções hão-de afugentar os perigosos que têm medo da música. É a banda sonora perfeita.

[publicado originalmente no DN a 27/5/17]