Março 30, 2021
Fragmentos soltos de um sorriso
Miguel Marujo
Faltam-me sempre as palavras, quando as notícias pedem recato. E, logo pela manhã, o Carlos escreveu-nos tudo: “A Xexão partiu no silêncio da noite para a margem da aurora.” Já se esperava, mas nunca esperamos, e as memórias assaltaram-me, num atropelo de afetos e histórias e canções e sorrisos – aquele permanente sorriso com que nos acolhia.
Essas memórias permanecem. Como a de um certo dia, num encontro do MCE, em que nos falou de relações – e foi ao francês para nos dizer que “conhecer” se diz connaître, que é como quem diz co-nascer. E deixou-nos essa proposta. Era assim: nunca se impunha, nunca nos impunha uma ideia, sugeria-nos. Mesmo nos momentos em que a minha vida se complicou, não tinha nenhum juízo para fazer, apenas palavras de esperança e uma enorme vontade e disponibilidade de ouvir. E questionar. E interpelar.
Houve uma noite em que nos convidou para jantar em casa, ainda no Príncipe Real – e eu brincava sempre com a toponímia daquela morada, fascinava-me a Travessa do Abarracamento de Peniche – com uma vista de perder o fôlego, a colina a descer o casario fora até ao rio. Pediu ao João Borges para levar a guitarra portuguesa e à Ana Luísa o seu violino, e a noite foi mágica, por entre gargalhadas desgarradas e conversas soltas, saltitando entre as coisas banais do quotidiano e as políticas da cidade, do país e do mundo, uns e outros com a mesma leveza e inquietação de sempre. Em cada gesto punha solenidade e risco, como no poema de Sophia.
Lembro-me de nos contar porque não conseguia ouvir sons repetitivos, como uma simples caneta a bater numa mesa. Relatava aqueles dias de tortura, às mãos de pides, com a serenidade que sempre colocou nas palavras. O 25 de Abril apanhou-a na prisão e por isso dizia ser a data da dupla libertação. Há quase um ano, no dia da Liberdade, escreveu que “não a queremos só mais alguns anos”. Ela, a liberdade, “veio para ficar e nós só temos de a defender sempre. É uma condição da democracia que é o regime que permite viver em comum dignamente.”
Como tão bem escreveu o Carlos Antunes, no 7Margens: “Habitava-a uma genuína alegria pela vida. Alegrava-se com os êxitos dos amigos, com ver os mais pequenos da família a crescerem em autonomia, com uma vida reencontrada, com um gesto de bondade, com os jacarandás em flor… Estava atenta ao acontecer da vida. Alegrava-se muito com o bem, com a liberdade, com a justiça e com a bondade. Amava a vida. E perguntava-nos, aos amigos, que lugar tinha a alegria na nossa vida. Desfrutava do prazer do lúdico e da fruição gratuita. Não alinhava nada com uma certa veneração da tristeza.”
Quando olho para a minha caixa de correio, as suas mensagens metem de tudo, preocupações com notícias, as muitas atividades em que se envolvia, já no bairro de Campo de Ourique, breves perguntas, “como estás? e a nossa Clarinha? tão crescida, ela”, e convites para jantar ou a visitar, e de como este ano nos foi roubando essa vontade. Mais recentemente dizia-me, “não estou famosa, mas estou bem disposta”, e da última vez que falámos, há um par de semanas, falhou-me a voz. “Beijinho, afilhado.” Beijinho, madrinha.
Maria da Conceição Moita (1937-2021). (A foto é de 2007.)