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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Junho 14, 2024

Estes textos foram visados pela censura. Além-Mar: a revista suspensa pela ditadura

Miguel Marujo

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O título “Os Missionários e as Pátrias” ficou reduzido a “Os Missionários”. A censura implicava com tudo o que indiciasse um apoio às independências africanas. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

 

Por causa de um texto sobre a visita do Papa Paulo VI a um país de que Salazar não gostava, a Índia, a revista missionária Além-Mar esteve suspensa cinco meses entre 1964-65, tendo depois sido obrigada a sujeitar os seus textos à Censura ditatorial do Estado Novo. Discussões com censores, cartas, cortes absurdos, de tudo a revista e os missionários foram sofrendo. Alusões a independências ou liberdade, textos sobre Luther King ou um “bispo de camisa cinzenta”, frases do Papa ou de bispos que criticavam o poder de uma minoria branca — nada passava no crivo da Censura. Uma história praticamente inédita, aqui contada pelo 7MARGENS a partir dos arquivos da revista, reconstitui o que se passou. 

 

 

Martin Luther King foi morto nos Estados Unidos a 4 de abril de 1968. O pastor batista e ativista americano pelos direitos humanos, em particular da população negra, caiu mas não foi derrotado. “Morto mas não vencido” titulou a revista Além-Mar, dos Missionários Combonianos, nesse ano de 1968. O crivo do lápis azul censor não deixou que fossem publicadas palavras, fotos e mensagens de e sobre Luther King. “Cortado”, lê-se no carimbo em cada uma das três páginas que foram visadas pela Censura. O texto seria para sair no n.º 5 da revista, de maio de 1968, e deu entrada na censura em 18/4/68. Num envelope onde se guardam as provas dessas três páginas, alguém escreveu: “Morte de Luther King – um artigo que não pôde ser publicado…”

Não é de espantar: a ditadura do Estado Novo, regime que mantinha uma guerra contra movimentos que exigiam a independência dos seus países e territórios de África, nunca poderia autorizar que uma revista vertesse palavras de justiça e de dignidade. “O negro precisa de convencer o homem branco que pretende a justiça para ambos; tanto para ele como para o homem branco”, disse Luther King num dos seus sermões, reproduzido de um livro publicado por cá em 1966, Força para Amar (numa edição esgotadíssima da Livraria Morais Editora). Os responsáveis da revista comboniana replicaram estas e outras palavras do reverendo americano, mas a censura não foi de modas: um corte total, sem contemplações.

Na redação da Além-Mar, em Lisboa, há uma gaveta grande de arquivo onde se guardam muitos dos textos cortados a azul. Até 1964, as publicações católicas escapavam ao crivo dos censores. Mas, em 1964, um texto que não agradou ao regime levou à suspensão da revista. O volume que mantém em arquivo os exemplares publicados no ano de 1964 termina em novembro, o de 1965 é retomado em maio. Pelo meio, há cinco meses – de dezembro de 64 a abril de 65 – em que a revista está suspensa, depois da publicação de um artigo sobre o Congresso Eucarístico Internacional, na Índia.

 

Suspensão noticiada no Brasil

 

A notícia da suspensão da revista é dada no Brasil, pelo jornal O Globo, a 16 de novembro de 1964: “O Governo do primeiro-ministro Oliveira Salazar suspendeu, ontem, por tempo indeterminado a revista católica Além-Mar e confiscou sua edição de Novembro, proibindo-lhe a circulação, por haver publicado um artigo sobre o Congresso Eucarístico Internacional, que será instalado no fim do mês em Bombaim.”

 

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A notícia da suspensão da revista não chegou aos seus assinantes, mas foi dada no Brasil,
no dia seguinte à decisão da Censura. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

É por causa do texto sobre a viagem do Papa Paulo VI à Índia que a revista passa a ter de sujeitar os seus trabalhos aos homens do lápis azul. Três anos antes, as tropas da Índia tinham ocupado Goa, Damão e Diu, então colónias portuguesas naquele país. E o ditador não gostou de ver o Papa visitar a Índia, ignorando os protestos de Portugal.

O autor de “Um Congresso para a Índia – Na União Indiana”, Fábio Pimentel, ignora os acontecimentos de dezembro de 1961 e, apesar de fazer um retrato crítico da Índia, “a terra dos esqueletos ambulantes, dos desnutridos, das crianças atacadas de kwashiorkor”, atreve-se a dizer que o Governo de Nova Deli se esforçava por melhorar a situação social da sua população: “O grande problema (…) é o drama da fome. (…) Em Calecute, (…) todos os dias de manhã os bombeiros passam a recolher os que durante a noite faleceram por falta de um punhado de arroz. Não se exagere, porém, pois lentamente o governo está a debelar o flagelo. Embora a população tenha aumentado, em dez anos [de independência], de 361 para 438 milhões de habitantes, o rendimento individual, a alimentação em calorias e a idade média subiram consideravelmente.”

Mais: o articulista sublinha uma preferência pelo regime indiano, num “desafio” entre China e Índia, que “continua afinal mais vivo que nunca”: “A China não desiste de tentar atrair a si o mundo em desenvolvimento. Religiosamente, porém, é mais provável e preferível que seja a União Indiana a ganhar a batalha. A constituição que Nehru forjou é iminentemente favorável à liberdade religiosa. Ele mesmo afirmou um dia: ‘A ideia de um estado inteiramente hindu é totalmente ultrapassada.’ Isto é um factor muito positivo. Outro motivo de esperança é que em todos os estados de que o país se compõe a hierarquia católica está firmemente organizada, contando 50 dioceses, na maior parte administradas por Bispos indianos. Mas o Congresso de Bombaim, organizado sob o signo do Concílio, não alimenta menos as nossas esperanças. Eu creio que ele fará soar finalmente a hora da evangelização da Índia e da Ásia. Os obstáculos (a que não pude referir-me) são muitos mas a escolha de João XXIII não poderá deixar de ser um gesto providencial.”

 

As desculpas do provincial e a censura prévia

 

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Carta do padre Ramiro Loureiro da Cruz, provincial dos Missionários Combonianos:
o gesto de contrição não comoveu as autoridades do regime. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

Parágrafos como aqueles levaram o Governo de Salazar a impor o silêncio à revista. O superior provincial do Instituto Missionário dos Filhos do Sagrado Coração de Jesus, conhecidos por combonianos, tinha admitido a possibilidade de um “exame prévio” à publicação, para evitar a suspensão da revista, mas de nada valeram os seus ofícios junto das autoridades. A 9 de novembro de 1964, o padre Ramiro Loureiro da Cruz envia uma longa carta ao subsecretário da Presidência do Conselho, Paulo Rodrigues, onde expõe a suspensão da revista, ocorrida a 5 de novembro, assumindo logo que “o autor do artigo [“Um Congresso para a Índia”] foi infeliz na maneira de apresentar este acontecimento da Igreja, não tendo em conta os sentimentos do nosso povo em relação àquele país que tanto nos fez e faz sofrer” e pedindo “imensa desculpa pela grande mágoa que o citado artigo causou”. Apesar da contrição, Loureiro da Cruz afirma: “Cumpre-me todavia garantir-lhe que ele não foi publicado com más intenções da nossa parte.”

O provincial insiste em sublinhar a importância da Além-Mar para os combonianos. “A decisão tomada com a nossa revista vem prejudicar vitalmente o nosso Instituto que se destina unicamente à obra das Missões Católicas nas Províncias Ultramarinas e que tem nesta publicação mensal o seu meio de contacto com os seus amigos e benfeitores de quem recebe as esmolas para poder sustentar os seus alunos portugueses, futuros Missionários do Ultramar, não tendo nós alguma outra fonte de subsídios.” Antes de apontar dois caminhos para o regresso imediato da revista, Ramiro Loureiro da Cruz insiste nas desculpas junto de Paulo Rodrigues: “Profundamente penalizado por termos causado este lamentável contratempo, peço humildemente a V.ª Ex.cia se digne autorizar que a Revista do nosso Instituto continue a sua publicação, até para evitar confusão e desorientamento entre os seus 6.000 assinantes que com certeza ficariam surpreendidos por não receberem regularmente os seus exemplares.”

Na carta, Loureiro da Cruz indica ainda: “para evitar, no futuro, desgostos análogos [ao do texto publicado], já substituí o corpo redactorial da Revista dando-lhe novo director e novo redactor e declaro-me absolutamente disposto a acatar quaisquer disposições que os Serviços da Censura hajam por bem indicar-me inclusivamente a censura prévia que até preferiria”. De pouco valem estes gestos do superior dos combonianos. Não há nos arquivos nenhuma resposta do subsecretário de Estado da Presidência do Conselho. Num breve texto disponibilizado no site do Parlamento, José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues, que foi deputado na Assembleia Nacional, é descrito, no seu “perfil político-ideológico” como “católico militante”, “membro da Ação Católica: Presidente geral da Juventude Universitária Católica e Vice-presidente nacional da Juventude Católica Portuguesa; [e] membro das Conferências de S. Vicente de Paula, ficando sempre ligado à obra”. Nem este perfil ajudou. A suspensão mantém-se por mais cinco longos meses.

 

Depois da suspensão, a censura

 

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A censura podia atingir títulos, frases, textos inteiros ou fotografias. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

A partir desse maio de 1965, começa a aventura quotidiana de enviar os textos à censura e de discutir os cortes com os funcionários do lápis azul. “Às vezes deixavam passar na primeira prova e cortavam na segunda, outras cortavam só por causa do título ou porque se falava em países pouco gratos ao regime português”, recordava em fevereiro de 2001, ao jornal Público, um antigo jornalista da Além-Mar, Rogério Nunes. Mas nem só de razões políticas se faziam as objeções dos censores. Textos ou frases que atentassem contra a moral e os bons costumes também eram riscados pelo grosso lápis azul dos zeladores.

O regresso da publicação faz-se sem se mencionar explicitamente a suspensão. No editorial, sob o título “O Novo ‘Além-Mar’”, o articulista inicia o texto com uma breve história: “Um jovem dizia-me há dias: «Já tenho saudades de «Além-Mar».» Após longos meses de letargo «Além-Mar» apresenta-se de novo em público. Este primeiro número abrange forçosamente um longo espaço de tempo.” E segue por aí fora, apontando que, “durante estes meses «Além-Mar» robusteceu-se, (…) mas também tomou consciência de si mesmo. Definiu o seu rumo.” E nesse rumo adivinha-se a continuação da subtil abertura a temas e áreas sensíveis para a ditadura. “«Além-Mar» como órgão de expressão missionária, no desejo único de melhor servir Cristo e a Igreja, quer tomar um lugar bem determinado no grande «Diálogo» entre a Igreja e o Mundo, diálogo que foi reaberto e reforçado por Paulo VI e pelo Concílio em hora feliz oportuna qual suspirada resposta a uma exigência de intercomunicação leal, aberta e confiante. Agora é preciso continuá-lo e alimentá-lo.” E este diálogo passa pelo contacto com as pessoas e os povos da África negra, insiste o editorialista, nomeadamente fazendo sentir “os problemas que os afligem, os pensamentos que os preocupam, as aspirações que querem concretizar. Eles são nossos irmãos, irmãos mais pobres. (…) Afinal têm um ser «ser humano» igual ao nosso, filhos do mesmo Deus a quem ousamos chamar Pai (Pai-Nosso: de nós e deles).”

O ano de 1965 é, dizem-nos os documentos guardados no arquivo comboniano, um ano de vigilância apertada aos textos da Além-Mar. A mudança do corpo redatorial não atenua a abertura da revista a temas sensíveis para o regime. Só a ida ao “exame prévio” da Censura travava a publicação desses textos.

Um artigo crítico da eventual islamização do Sudão, de junho, em que se reproduz um editorial do jornal sudanês em língua árabe, Al-Sahafa, que ataca o Papa, é cortado nesses parágrafos. Depois o corte é levantado. Noutros casos, é “mantido o corte”, como o título de um artigo sobre “Os missionários e as pátrias”, que fica só “Os missionários”. Ou um outro texto breve, que cita Paulo VI na encíclica Ecclesiam Suam. “É necessário que nós nos identifiquemos, até certo ponto, com as formas de vida daqueles a quem desejamos levar a mensagem de Cristo. É necessário, ainda antes de falar, auscultar a voz e mesmo o coração do homem, compreendê-lo e, na medida do possível, respeitá-lo…” Não passou. E apesar de um pedido para rever este corte, o censor não quis saber: “Mantém-se o corte”. Outro texto sobre “o que foi escrito pelos intelectuais africanos nas vésperas do Concílio Vaticano II” é também ele todo riscado. Três páginas que se guardam numa gaveta do arquivo da Além-Mar. “Mantém-se o corte”, repete-se.

 

Um governo zangado com o Papa

 

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Paulo VI fala de liberdade e independência? Corte-se a frase do Papa. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

O Papa Paulo VI é também visado, como já se viu. A notícia da presença de dois bispos de Angola em Kampala (Uganda), por ocasião da visita papal, em 1969, é também cortada. “Contrariamente ao que chegou a ser difundido pela Imprensa, dois bispos da África Portuguesa deslocaram-se ao Uganda por ocasião da visita de Paulo VI”, escreve a Além-Mar, que entrevista Altino Ribeiro Santana. “Cremos que as suas palavras ajudarão a desfazer alguns equívocos.” Nova revisão da Censura: “s/ efeito o corte”.

A atenção a Paulo VI vem de trás, como se viu, por causa da Índia. Depois de levantada a suspensão da revista, em 1965, para o número de agosto, há uma pequena notícia sobre a entrega de credenciais do novo embaixador da Zâmbia ao Papa que é, toda ela, cortada. As palavras de Paulo VI eram impossíveis de passar: “Aproveitamos desta ocasião para dar, mais uma vez, as nossas melhores felicitações à África, o grande continente que está ingressando na liberdade e na independência (…)”.

O Governo do Estado Novo continuava zangado com o Vaticano, apesar de se afirmar “como defensor da Igreja Católica”, como recordou o historiador João Miguel Almeida, num texto no 7MARGENS. Estávamos ainda longe da ferida reaberta por Paulo VI ao receber, a 1 de julho de 1970, os três líderes dos movimentos de libertação das então colónias portuguesas – Amílcar Cabral, do PAIGC, Agostinho Neto, do MPLA, e Marcelino dos Santos, pela Frelimo –, mas a política portuguesa de ocupação de territórios africanos colidia com o que a Santa Sé ia afirmando, provocando” incómodo e crispação” ao governo de Salazar.

“A encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, fora publicada em Portugal com a referência ao direito de autodeterminação dos povos cortado. A ida de Paulo VI à ONU fora considerada um acontecimento “horrível” por Salazar e a deslocação do Papa à Índia fora qualificada por Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, como um “agravo”, por causa da anexação de Goa pelo Estado indiano. No entanto, a hábil diplomacia portuguesa conseguira varrer as sombras da imagem das relações entre Portugal e o Vaticano, explorando a visita de Paulo VI a Fátima em 1967. A chegada de Marcelo Caetano ao poder pareceu anunciar uma melhoria nas relações entre o Estado Novo e a Santa Sé, como fim do exílio de dez anos do bispo do Porto, em 1969”, sintetizou João Miguel Almeida. Em vão. A Censura também aperta nestes anos.

Paulo VI é um dos nomes que mais engulhos causava ao regime, por causa dos ventos que sopravam no Vaticano. E por várias vezes a Além-Mar tinha cortes dos coronéis da Censura nas notícias que dava sobre o Papa. O jornalista César Príncipe, que em 1979 publicou Os Segredos da Censura (Editorial Caminho, 2.ª edição, 1994, entretanto reeditado pela Afrontamento), revelava nessa obra que “milhares de nomes (nacionais e internacionais) constavam dos ficheiros do ostracismo oficial”. Na nomeação de uma ínfima parte dessa lista, César Príncipe identificava “a viúva de Luther King”, Coretta King, mas também vários dignitários da Igreja, “fosse o bispo de Cádis, a hierarquia da Rodésia, do Brasil e do Peru, fosse Paulo VI, em Roma, Bombaim, Hong-Kong ou Kampala”. “O contencioso entre o Estado [português] e a Igreja (mau grado a Concordata e os Acordos Missionários) ia enrolando, na curva descendente do fascismo, em bola de neve ácida: padres e católicos presos, desterrados, torturados e «suicidados», templos «escutados» ou assaltados por polícias e cães, acções empreendidas em defesa da «civilização cristã»”, resumiu César Príncipe.

 

Os cortes das palavras dos bispos da Rodésia

 

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Os bispos da então Rodésia (hoje Zimbabué), críticos do regime da minoria branca,
também não passaram no crivo zeloso dos censores. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

Os bispos da Rodésia também são um alvo a cortar, como tinha notado Príncipe. A Além-Mar coleciona vários exemplos de artigos sobre este país – que é hoje o Zimbabué e que, de 1965 a 1979, foi um Estado não reconhecido, liderado por uma clique de colonos brancos, sob o governo de Ian Smith – que foram alvo de censura, na reprodução de textos do episcopado rodesiano.

Em 1966, por exemplo, o artigo “O problema da Rodésia”, no qual se dá nota da posição dos bispos católicos, é cortado. Um outro, de novembro desse ano, é autorizado com cortes. Uma única frase é extirpada ao artigo: “Não podemos deixar de dizer que o «apartheid», moralmente considerado, é caminho errado, porque «contrário [à] Lei divina», como afirmaram há pouco os Bispos do país.”

Em 1970, há dois artigos com sortes distintas. “Rodésia: de novo a Igreja diz não” é “autorizado com cortes”. Um outro, “Rodésia: «crise de consciência»” é cortado. Começou por ser “Autorizado com cortes”, como se lê no carimbo posto na página, com uma nora manuscrita: “Válidos os cortes a vermelho”. Depois é tudo cortado com lápis azul e carimbos. Num deles lê-se: “Suspenso”. Um só parágrafo descrevia o que era este texto, e deixava adivinhar o corte da Censura: “Gastou-se muita tinta para traçar as dimensões do regime racista de Ian Smith: uma minoria branca (230.000) que domina e subjuga uma minoria negra (mais de 4 milhões). Mas nenhuma tomada de posição foi tão convincente, tão firme e tão clara como a dos bispos rodesianos, que condenaram por mais de uma vez a segregação governativa.”

Em 1972, o artigo “Rodésia – Acordo ou traição” é enviado à Censura em 20 de janeiro, e recebe a autorização de publicação com o corte do último parágrafo: “E, ao fim e ao cabo, quem perderá a partida neste jogo de interesses serão os cinco milhões de negros subjugados, uma vez mais, pelos 250 000 brancos muito ciosos da sua soberania.” Outro artigo merece também substantivos cortes. Em “Rodésia – A Igreja local condena o Acordo anglo-rodesiano”, a “carta pastoral do presidente da Conferência Episcopal da Rodésia e bispo de Umtali, Mons[enhor] Daniel R. Lamont” leva duas grandes talhadas, que vale a pena reproduzir.

“[As duas partes] Em vez de exprimirem um tratamento uniforme de justiça e uma preocupação imparcial pelo bem comum, as propostas reflectem o modo de pensar da minoria que governa e a sua preocupação em assegurar a atual posição de privilégio. E confia-se que a população africana, pouco consultada sobre a matéria, se conforme com aquelas pequenas concessões que os seus amos europeus lhes outorgam… (…)

Além do mais, a escandalosa e injusta distribuição da terra – que historicamente foi fonte contínua de descontentamento onde quer que se tenha imposto – continua ainda a ser essencialmente a mesma, enquanto se podiam ter tentado esforços generosos e iniciativas para a rectificar. Numa palavra: esperar que toda uma população, que ultrapassa os que governam numa proporção de 20 para 1, se sinta satisfeita com uma condição de vida que lhe concede apenas uma existência marginal na vida social, económica, política e cultural do seu país, e a que por razão da sua raça se nega a possibilidade do desenvolvimento integral, é simplesmente multiplicar o descontentamento e provocar o último desastre. Como é possível admitir-se que um povo, com um mínimo sentido de justiça, feche os olhos perante tais iniquidades? Como é possível exigir-se razoavelmente a seres humanos que permaneçam especificamente cidadãos de segunda categoria na sua própria terra? Como é possível que homens e mulheres cristãos se mostrem insensíveis às humilhações que, em nome de uma superioridade racial, se infligem aos seus irmãos?…”

Num país que se dizia defensor da Igreja, a voz de bispos como os da Rodésia não tinha lugar. Afinal, um Estado que segregava a população negra das suas então colónias não podia deixar que fosse publicado um artigo que poderia ser visto como falando, a papel químico, da realidade de Angola, Guiné ou Moçambique, por exemplo. Bastava fazer corta e cola e era Portugal o alvo da crítica.

 

Vigilância constante aos artigos da revista

 

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O editorial do primeiro número depois da suspensão: a paragem forçada não era referida explicitamente, apenas de forma velada. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

A vigilância não abrandaria, ao longo dos anos. A 7 de julho de 1969, o diretor dos Serviços de Censura, escreve ao diretor da revista questionando o facto de não terem sido atendidos todos os cortes que os censores tinham imposto: “Verificando-se pela leitura das 1ª e 2ª colunas da págª 5 do N.º 7 dessa revista, relativo ao mês corrente, que não foram inteiramente cumpridos os cortes efectuados por estes serviços na respectiva prova, solicito a V. Exª que se digne informar-nos do que se lhe oferecer acerca do assunto”.

O padre Carlos Neves Sobrinho responde na volta do correio, a 8 de julho. Os cortes “foram realmente e rigorosamente respeitados”, argumenta. “Apenas tive conhecimento dos cortes, desloquei-me pessoalmente à Sede desses Serviços e solicitei uma audiência do Sr. Director. Fui recebido por um Senhor Oficial a quem expliquei a minha estranheza por tais cortes, tendo obtido o levantamento de alguns deles.” E como prova do que diz, o diretor da revista junta uma fotocópia da “prova censurada da página em causa, onde claramente se podem ler os “Sem efeito” escritos à mão pelo Sr. Oficial que me atendeu na vez do Sr. Director e cujo nome ignoro”.

A Censura recua outras vezes. Um texto de quatro páginas, sobre os dez anos da independência da Guiné-Conacri, escrito pelo comboniano Nazareno Contran, para a edição de maio de 1969, que deu entrada nos serviços a 12 de abril desse ano, é cortado. Depois vem a revisão de um oficial, em nome do diretor: “Autorizado, mas o título do artigo e as gravuras devem ser submetidas a censura prévia”, e assina “Lx. 26-4-969. Pelo director, J Chaves”.

Outras vezes os cortes são quase milimétricos, em breves frases, mas bem cirúrgicos naquilo que se quer esconder dos leitores da revista. Num texto sobre a fome, para o número de março de 1969, o censor mandou retirar duas frases: “Foi este o caso da colonização. Com o colonialismo, chegou a fome aos países do Terceiro Mundo porque os seus recursos foram explorados vergonhosamente por alguns poucos.” E parte de uma outra:“(…) contra a opressão que há quatro séculos e meio sofrem, desde que começou a colonização, o domínio das potências europeias.”

 

Os leitores escrevem, os censores cortam

 

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“Os leitores escrevem”, como diz o título da secção, mas a revista não pode publicar,
manda a Censura. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

Os responsáveis da Além-Mar questionam muitas vezes os censores sobre os cortes feitos, e insistem no seu levantamento, com mais ou menos sucesso. A 9 de novembro de 1971, o diretor da revista, Carlos Neves Sobrinho, escreve ao “Dr. Geraldes Cardoso, Diretor-geral da Informação”, para protestar por cortes na secção de cartas dos leitores. “Com grande surpresa minha, as duas provas em causa regressaram com duas cartas e duas respostas cortadas. Além disso, uma terceira carta sofreu um corte nos últimos períodos. Não me conformei com os cortes, por os julgar fruto de demasiada severidade da parte do oficial censor, e tentei falar com o Sr. Director dos Serviços de Censura, mas não consegui.” Sem sucesso, os cortes mantiveram-se, por isso Carlos Neves Sobrinho recorria hierarquicamente. “Sinceramente, no momento de entrar em vigor a nova Lei de Imprensa recentemente aprovada pela Assembleia Nacional, parece-me que os cortes feitos à nossa revista revelam um rigorismo exagerado.”

Uma das cartas cortadas era sobre essa nova lei de Imprensa, com um leitor do Funchal, não identificado, a agoirar que a mesma “não garante mais liberdade de expressão de pensamento que a Censura”, pelo que ia deixar de assinar jornais e revistas. E a outra era de um padre de Chaves, a partir de um testemunho de uma senhora que tinha estado em Moçambique, que se queixava que andaria a financiar padres missionários italianos “que coadjuvavam a campanha contra Portugal”. “Se julgando auxiliar as Missões Católicas entre infiéis estou a auxiliar inimigos do meu País, desde já faço marcha atrás e começo a recusar todo o meu auxílio material e moral a tão nefastos agentes da Civilização Cristã!”, indignava-se o padre Adolfo Augusto Magalhães Júnior. A resposta do articulista da Além-Mar a um e outro foi dura. Foi tudo cortado. Não consta do arquivo da revista qualquer resposta de Geraldes Cardoso, diretor-geral da Informação, a interceder pela sua publicação, mas nenhuma destas cartas de leitores foi publicada no número de dezembro de 1971.

Outra leitora que viu a sua carta cortada foi Maria do Rosário Neves Ferro, de Lisboa, que curiosamente surge num outro espólio, o dos “Documentos Felicidade Alves” (disponibilizado pela Casa Comum, da Fundação Mário Soares), com uma carta de maio de 1970, dirigida a Nuno Teotónio Pereira, a solicitar “a junção da sua assinatura ao abaixo assinado dirigido ao Ministro do Interior para a libertação do Padre Felicidade Alves”. À Além-Mar, Maria do Rosário Neves Ferro dá conta que tomou conhecimento “com grande alegria” de uma “Mensagem do Conselho de Presbíteros da Beira”, assinada em primeiro lugar pelo bispo de Nampula. “Dela me fica uma impressão de amor a Nosso Senhor e aos irmãos, que me fez ter mais esperança de novo. Porque no vosso jornal ainda não vi a mínima referência a este documento, permito-me transcrever algumas partes para reflexão dos leitores.” Não passou, nem uma linha.

 

No estertor da ditadura

 

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O artigo sobre “o bispo da camisa cinzenta” também não resistiu ao lápis azul
e ao carimbo vermelho da Censura. Foto © Arquivo 7MARGENS.

 

O número de abril de 1974 ainda sai visado pela Censura. Nesse n.º 195, do Ano XIX de publicação, o editorial tem sinalizados “cortes apenas a vermelho”: “Há também quem expulse os missionários sob a acusação de colonialismo religioso e cultural ou de interferências nos negócios políticos da nação” – é a frase proibida no estertor da ditadura, numa referência à expulsão, decretada pelo regime, de nove missionários combonianos e do então bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto.

A Além-Mar não foi a única publicação católica a ter de ir ao “exame prévio” da Censura. A Voz Portucalense, criada a 1 de janeiro de 1970, também passou pelo mesmo calvário, em que “as instruções superiores para os agentes da ação censória manifestavam especial atenção a temas como a paz, a justiça social, aspetos da moral comportamental, a violência, a ação governativa, a ação da justiça e mesmo aspetos do universo internacional”. Tal e qual o jornal da diocese do Porto, a revista missionária comboniana via o mais inócuo dos seus textos cortados ou enxertados.

Num artigo a sair no número de abril de 1972, que deu “entrada na censura em 6/3/72”, “Impressões de uma visita às missões dos Capuchinhos em Angola”, há uma frase cortada, na quarta página: “Para subir é preciso passar pelo posto de controlo dos soldados de guarda à zona da barragem.” E mais abaixo, outra: “Pouco antes de Viana, a uns dez quilómetros da capital, deparamos com uma longa coluna militar que vai para o Norte substituir outros militares na zonas mais ameaçadas pelo terrorismo.” O censor evitava referências à guerra. “Autorizado com cortes”.

No ano de 1968, um texto que relata uma visita a D. José Dalvit, um comboniano que é bispo de S. Mateus, uma “pequenina cidade perdida no Estado do Espírito Santo”, no Brasil, é cortado de alto a baixo. O texto de duas páginas não aparenta ter particulares pecados contra a ditadura, mas o carimbo do censor é taxativo: “Cortado”. Título do texto: “O bispo da camisa cinzenta”. O autor, o padre Domingos Andriollo, confessa no final do artigo que não o mostrou antes ao bispo. “Quero que ALÉM-MAR lhe traga esta surpresa”. A censura não deixou.

 

[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 7 de maio de 2024]