Agosto 07, 2017
Este Nick Cave é de antologia — from him to eternity
Miguel Marujo
Há um momento no filme no qual o rapaz que está no palco volta para mais uma canção, "mais uma canção e acabou", pensa ele, "mas não lhes vou falar de uma rapariga, não lhes vou falar", e quando se chega ao microfone diz o contrário: "Vou falar-vos de uma rapariga" - e a banda começa a tocar, enquanto ele canta sobre a rapariga que vive no quarto 29, exatamente por cima do dele, onde ela passeia descalça a chorar.
Foi assim que, pela primeira vez, Nick Cave e os seus Bad Seeds apareceram num filme, Der Himmel über Berlin/As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, a interpretar em palco The Carny e From Her To Eternity, a canção da rapariga do quarto 29. E é por este tema, do primeiro álbum homónimo, que nos iniciamos neste acontecimento maior que é a mais abrangente coletânea de Nick Cave and The Bad Seeds, Lovely Creatures: The Best of Nick Cave and The Bad Seeds (1984-2014) — descontados um primeiro best of, curto nos seus 16 temas, de 1998, os discos ao vivo e uma box que reuniu lados B e raridades, em 2005 — que [foi] lançada a 5 de maio.
Esta viagem percorre os 15 álbuns de originais do australiano e da sua banda de From Her To Eternity (1984) até Push The Sky Away (2012), só deixando de fora o mais recente Skeleton Tree (2016) e [chega] às lojas em duas versões que só aparentemente são iguais. A edição standard fica-se por 21 temas, a deluxe atira-se para os 45.
E, senhoras e senhores, como apetece tanto puxar os cordões à bolsa para poder ouvir esta antologia na sua versão de luxo (e falamos só da música): desfiando as canções cronologicamente, os 45 temas permitem parar em cada um dos álbuns com tempo, percebendo a importância de cada um na construção do edifício musical de Nick Cave and The Bad Seeds, da carnalidade dos cinco primeiros discos ao lirismo hipnotizante que o acompanha, com mais ou menos arroubos viscerais, sobretudo desde Murder Ballads (1996) e The Boatman's Call (1997).
Da edição standard à edição deluxe, o embrulho é cuidado. A primeira é um duplo CD, com um booklet de 24 páginas de fotos pessoais e raras da banda. A versão de luxo traz um livro de 36 páginas que acompanha três CD e um DVD de duas horas. Por fim, para fãs, há uma edição limitada super deluxe a pedir a atenção dos sentidos, num livro luxuoso de 256 páginas, com ensaios originais, muitas fotos e memorabilia.
As criaturas adoráveis que são as canções deste álbum mostram um Nick Cave e os seus Bad Seeds em empolgantes hinos rock, como The Mercy Seat ou Deanna, em que órgãos Hammond gingam de forma despudorada com guitarras apocalípticas e coros guturais.
Até 2014 não há álbum de originais que fique de fora, exceto (lá está) na edição standard. Nocturama (2003) é o disco menos amado e quase esquecido nesta coletânea, com um único tema na versão deluxe. Mas não há muito por aferir sobre amores e desamores de Nick Cave na seleção final feita: Your Funeral... My Trial também é quase esquecido (Stranger Than Kindness ouve-se nas duas versões, acompanhada de Sad Waters e The Carny, no triplo que reúne os 45 termas), quando o australiano dizia em 1992 que era o seu disco preferido. "Este disco em particular, que é o meu disco favorito dos que fizemos, é muito especial para mim e muitas coisas espantosas aconteceram, musicalmente, no estúdio", contava então. "Há algumas canções que, no que me toca, são tão perfeitas como as podemos fazer. Canções como The Carny, Your Funeral, My Trial e Stranger Than Kindness, penso que são de facto brilhantes."
O génio atormentado que sobe ao palco em As Asas do Desejo está sempre presente nas letras que fazem este longo percurso de 30 anos, em que o amor, o sexo e a religião se cruzam de forma quase omnipresente. Há The Good Son (2000) e The Boatman's Call, ou ainda Kicking Against the Pricks, o álbum de covers de 1986 que ganhou o nome a partir de um versículo dos Atos dos Apóstolos, que cita um provérbio grego apenas referido numa tradução anglicana da Bíblia.
Mesmo que possamos apontar o dedo a uma ou outra ausência (onde andam o fantástico dueto com PJ Harvey, Henry Lee, de Murder Ballads, ou Black Hair, de The Boatman's Call?) — o que acaba por acontecer naturalmente ainda mais vezes ao olharmos para o alinhamento da edição mais económica — há um esforço para contar o essencial destas ervas daninhas.
Quem aqui chegar pela primeira vez fica a saber com o que conta, desde a história da rapariga do quarto 29 até à de uma outra rapariga, que se passeia pela Jubilee Street. É uma viagem e tanto, de antologia mesmo.
[publicado originalmente no DN de 15/4/17]