Março 04, 2024
Este espelho é pouco meigo. E gostamos disso
Miguel Marujo
Entre o fadistão e o corridinho, até nesta música há lugar para o filho da mãe, que aqui se chama Dr. Coisinho, e a letra é contrassenha para sorrisos e uma música que renova a linguagem da intervenção. Cara de Espelho é o novo projeto, que se estreou em disco em janeiro e, em palco, no sábado, 24 de fevereiro, em Braga, na bela sala do Theatro Circo, reunindo alguns dos nomes mais importantes da música portuguesa. Seguiu-se Loulé, agora apresenta-se em Lisboa e depois será a vez do Porto.
Cara de Espelho, nome também do disco, é antes de mais um manifesto, nestes tempos de populismos e extremismos à direita, sem medo de jogar com as palavras e as metáforas, onde se reconhecem atores e políticas que ameaçam direitos e liberdades. Sem medos. Corridinho Português canta o óbvio: “Separando o africano do cigano/ Do chinês, do indiano, ucraniano,/ muçulmano, do romeno ou tirolês/ Como vês/ Sobra muito, muito pouco português, ó pá// Separando o cristão do taoista,/ do judeu do islamita, do ateu ou do budista,/ do baptista mirandês/ Como vês/ Sobra muito, muito pouco português, ó pá”.
Sobra muito do que é isto tudo, os portugueses ao espelho, genuínos, como se canta em Genuinamente, “O bacalhau tão soberano/ Afinal vem da Noruega/ Nem batata, nem azeite/ São de origem cá da terra/ E quem canta o nosso hino/ Será que já viu o nome/ Alemão que o compôs/ Ou que o galo de Barcelos/ Um galego inventou/ Reformula então bem isso”. Não há “português de bem” que não fique de orelhas a arder.
Esta música que é de intervenção nas palavras, também se faz no som, com sabores bebidos na pop, na tradição popular e com pitadas do Brasil e das Áfricas, numa reinvenção que nada deve a saudosismos. Não é de espantar: este supergrupo junta gente que esteve nos Gaiteiros de Lisboa, em A Naifa e Señoritas, Deolinda, Ornatos Violeta e Humanos, experiências e projetos que, na medida justa, contribuíram para algumas belas páginas da música portuguesa.
As canções nascem da pena de Pedro da Silva Martins, também na guitarra, o autor do hino da geração lixada pela troika, que foi Parva que sou, dos Deolinda (2011), e logo se percebe de onde vem a verve cáustica e humorada, irónica e crítica, de cada uma das 12 canções do disco (e dos novos temas levados ao palco). Juntam-se o saber e a voz dos instrumentos criados por Carlos Guerreiro, o baixo de Nuno Prata, as guitarras de Luís J. Martins, as percussões de Sérgio Nascimento (a quem se deve a ideia de um grupo assim), e Maria Antónia Mendes, na voz, ela que é das vocalistas que melhor trata a língua portuguesa.
Em palco, o álbum ganha outra solidez (e o que vimos em Braga foi a estreia absoluta ao vivo), com a banda a ensaiar-se em cinco novos temas (D de denúncia, Roda do crédito, Já vou, O que esta gente quer?, e Aldeia fantasma) que mantêm a língua afiada e as canções sintonizadas numa paleta de soluções musicais criativas e, simultaneamente, tão próximas de quem ouve. Um reflexo feliz. “Nós somos os Cara de Espelho e estamos aqui para vos refletir. Sempre”, como atirou Maria Antónia para o público.
Maria Antónia ganha o palco e o público sem maneirismos desnecessários, nem apresentações a mais, tudo no tempo e modo certos, para saciar um público que talvez anseie por quem cante contra ventureiros de falsas ilusões e ódios exacerbados ou que ouve ali, em primeira mão, dignos herdeiros da melhor música de intervenção (sem pudor da palavra) de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto ou Adriano Correia de Oliveira, entre outros.
Se cada canção é o reflexo das virtudes ou defeitos, das fraquezas, dos pequenos ou grandes poderes, dos tiques, dos vícios, disto que é ser cidadão ou, no sentido lato, do que é ser humano, como é apresentado este projeto, gostamos de nos olhar ao espelho.
Próximos concertos:
4 e 5 de março, segunda e terça: Lisboa – Teatro Maria Matos
16 de março, sábado: Porto – Casa da Música
[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 1 de março de 2024; foto © Adriano Ferreira Borges/Theatro Circo]