Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Junho 12, 2022

Esta Amélia que anda a monte

Miguel Marujo

amelia_muge_amelias_capa1b.jpeg

 

Amélia Muge é um dos segredos mais mal guardados da música portuguesa — e à conta desse novo Amélias, absolutamente genial, publicado há um par de meses, recupero uma conversa antiga (de 2002, só publicada em 2003) com esta cantora-autora-compositora. Na altura, o Culto!, site de cultura do portal IOL, apresentou esta entrevista, dispensando-se as perguntas, a propósito de a monte, o disco de 2002 (ver texto a seguir: «O mundo é delas»). Num fim de tarde quente em Lisboa, o tema dessa entrevista foi desvelando os territórios de Amélia, quando o disco percorria já os palcos, e que é por onde começou a conversa (que soa muito atual).

 

Os palcos. Tudo seria mais simples se tivéssemos salas de concertos de produção regular, com equipamentos adequados e espaços de riqueza acústica que ajudassem. Hoje tudo se passa ao ar livre e há um determinado tipo de música que fica sem lugar e sem espaço, fica fragilizada. 

Depois pede-se por parte do público uma certa adrenalina. Vai-se para esses concertos para descarregar, para namorar, as pessoas pedem um determinado tipo de reacções — não é para estar a escutar. Por alguma razão, os cinemas não são projetados numa sala às escuras só para ser projetados. Pede-se uma concentração para o que está a ser exibido. Com a música é a mesma coisa. Há música que é feita a pensar na rua e há outra que é feita pensar noutros espaços. 

 

As cumplicidades. [As colaborações com José Mário Branco, Gaiteiros de Lisboa, Camerata Meiga, e outros] Surgem por acaso. O que sinto é que quando os interesses são comuns, as pessoas também acabam por se encontrar. As coisas têm acontecido muito por encontros que, surpreendentemente, parecem muito por acaso. 

Mas também gosto muito de fazer trabalhos com outras pessoas. E mesmo quando não são trabalhos assumidamente com outras pessoas, gosto muito de mediar junto do público coisas de que gosto. Quando gosto de um autor quero que as pessoas, através do meu trabalho, o conheçam melhor. 

 

Laurie Anderson. É para mim um referente. O que faz com a língua inglesa — e que é importante em aprendizagem que faz com ela — é até onde a gente pode ir naquilo que é a fronteira entre o canto e a fala e naquilo que é a criação de um clima linguístico a partir das tecnologias e a partir dos ambientes que cria, para cantar/contar. Para quem se dispõe a ouvir, com essa atitude de aprender, o que é o canto, as fronteiras de uma coisa e outra, o que é a literatura ligada à música aprende imenso com ela. 

Havia indícios já no Todos os dias (1994) e no Taco a Taco (1998) dessa minha devoção grata à Laurie Anderson. As coisas não estão assim tão afastadas como isso. As pessoas vão perceber que temos um mundo todo em gavetas — e não estou só a falar da música, estou a falar dos conhecimentos, das profissões. As artes dão um sinal muito positivo de que há pelo menos vontade de se encontrarem e de se perceberem que irmandades são estas.

 

As vozes do mundo. [Os textos de José Eduardo Agualusa, Mário Cesariny, José Saramago, os sons de Rui Júnior, Pirin Folk Ensemble] As coisas não nascem por acaso. Nem os projetos não são todos definidos na cabeça e depois passam para a prática, para o terreno. Faço discos como talvez se façam livros. Há uma necessidade diária de informação, de entrar em contacto com coisas que já se conhecem, mas se querem conhecer melhor, com coisas novas... 

Não há criatividade sem informação. A criatividade é juntar coisas que aparentemente ainda não se encontraram. A criatividade é sempre uma homenagem às leis da atracção universal. Nós lidamos com coisas que são anteriores ao próprio homem. 

Depois há um esforço de compor — que não tem nada a ver com discos. É completamente por acaso: leio um poema que gosto e passados cinco minutos estou agarrada a um piano, a uma viola ou a um adufe a tentar perceber o que é aquilo me diz em termos musicais. 

Outra coisa completamente diferente é o disco. Aí há uma ideia de base: por um lado, fazer um disco de homenagens (e no fundo é o que é este a monte) é um disco de homenagens, mas também ao mesmo tempo de descobertas, ir mais fundo no contacto com estas vozes todas. Por outro lado, procurar caminhos, onde os encontros sejam mais irreais, onde as pessoas estejam mais disponíveis. O a monte tem a ver com isso. O disco pode dar uma ideia de uma segunda versão de "Santo António aos peixes" — "a monte", vou cantar para os passarinhos! Não é nada disso. 

Há percursos que são facilitados porque há vozes que nos chamam, que de algum modo nos dão apoio nesses caminhos, que são um contraponto aos caminhos já conhecidos - todo um saber que dá nomes a tudo, classifica os géneros musicais todos direitinhos, em várias categorias. 

 

Música tradicional. Esse tem sido um dos grandes problemas: querem pôr-me um chavão qualquer que está dentro de uma gaveta e depois eu não caibo. Depois dizem: "Não gosto do trabalho porque não faz música tradicional!” Mas quem é que disse que eu queria fazer música tradicional?! 

Todo o ser humano necessita de modelos, sejam musicais, ideológicos ou de educação. Mas, ao mesmo tempo, necessita de os transgredir. 

 

Mestiçagem cultural. O [José Eduardo] Agualusa é imprescindível. Temos uma noção de cultura muito rígida, muito ligada ao modelo que pretende dar uma alma portuguesa muito pura, quando a nossa maior riqueza é a mestiçagem. E o rasto dos encontros e olhares que o português foi tendo do mundo e vice-versa. Este a monte abrange estas coisas todas. 

 

As ideologias. Andámos até há bem pouco tempo há procura da ideologia. Mas não me parece que haja uma ideologia que seja capaz de absorver aquilo que são as várias "nuances" das visões do mundo. Não há uma única maneira de abordar o mundo. Os olhares devem ser de descoberta e de confronto — de um confronto saudável. 

Há, em termos ideológicos, vários pontos de partida. Agora, vamos encontrar ideologias de confronto, mais flexíveis, que não sejam cartilhas, que todos têm de seguir. 

Nós fazemos aquilo que somos. O lado mais interessante é esse, é pôr uma marca pessoal nas coisas. 

 

A edição do disco, quase de "autor". Há processos de produção que sinto que não podem ser todos massificados, os projetos têm de encontrar a maneira de se personalizarem, e isto é muito difícil para uma editora. As próprias editoras estão numa situação de crise, que vem no arrasto da tentativa desesperada de apostar naquilo que vende, que permite lucros fáceis e imediatos. 

 

A monte na música portuguesa. Não há condições. Na televisão, por exemplo, nunca há condições especiais para nada: "Diga lá em três minutos o que pensa". E quando se vai a um programa — "ai, tem de fazer em playback e com os nossos cenários", que são iguais para todos os programas. Há a ideia que tudo é facto, que tudo se consome só porque se ouviu. 

Como tudo está voltado para as coisas muito rápidas, sobra a pergunta: onde é que estão as pessoas? Onde é que estão os autores? Onde é que está o espaço para encontros especiais? Parece realmente que anda tudo a monte. 

 

O mundo é delas

Sob o signo da aventura, Filipa Pais abre-nos a porta do seu mundo. Uma viagem acompanhada pela inspiração de outros dois viajantes — Corto Maltese, de Hugo Pratt, e o Principezinho, de Saint-Exupéry — que recupera os sons tradicionais (de Não se me dá que vindimem, Altinho e José embala o menino) ou veste com tonalidades serenas as palavras de Mário Cesariny (Em todas as ruas te encontro) ou Reinaldo Ferreira (Que o mundo é meu).

O som não anda longe de L’Amar (1994, Strauss), o primeiro e — até este À porta do mundo (2003) — único disco a solo de Filipa Pais, também por causa de João Paulo Esteves da Silva, como produtor, compositor, músico e letrista. Mas ainda por causa dos temas assinados pelos irmãos Salomé, companheiros de muitas outras aventuras: Janita, que faz das palavras de Hélia Correia uma entusiasmante viagem pelas "vozes do Sul" (nome de um projeto de Janita que também contou com a voz de Filipa), e Vitorino, com o excelente Meu querido Corto Maltese (um original do álbum Alentejanas e Amorosas, de 2001).

Mas as sonoridades de À porta do mundo transformam-se nas vocalizações mais maduras e seguras de Filipa, que se solta ao longo dos 14 temas e é sublinhada pela produção musical de Ricardo Dias e João Paulo Esteves da Silva.

A edição do disco pela Vachier Associados é cuidada e bonita, pontuada com desenhos inspirados nos originais de Pratt e Saint-Exupéry.

 

Vozes a monte

Com este disco, a Vachier renova uma marca já presente na edição, também ela cuidada e bonita, do álbum de Amélia Muge, a monte, no ano passado. Amélia Muge inaugurou as edições discográficas daquele selo. E depois de Filipa Pais, anunciam-se para breve os Quadrilha. E aos escaparates chegou agora (2003) o novo de Ricardo Rocha, Voluptuária.

Amélia rompeu o silêncio com a monte (2002), depois de Múgica (1992), Todos Os Dias (1994) e Taco a Taco (1998, distinguido com o Prémio José Afonso, em 1999). Atrás das vozes anda então Amélia, que arrisca cruzá-las «sem preocupações de defender este ou aquele género musical, sem preocupações de perceber onde acaba o artístico e começa o tecnológico, sem preocupações de sinalizar heranças culturais ou de carimbar o que é popular ou não é» (ver entrevista acima). 

É verdade: a monte é tudo menos conformista e arrisca sons e palavras que Amélia Muge aprendeu a amar. E que felizmente partilha connosco. Basta ouvir A garra do macaco, que é como quem diz Laurie Anderson vertida (literalmente traduzida) para português. Ou todas as outras vozes que se desvelam neste a monte, como as vozes búlgaras — aquelas que o mundo descobriu nos finais da década de 80 que falavam com Deus — do Pirin Folk Ensemble.

Há poucos discos assim no mercado português. E este foi um dos mais importantes de 2002. Prova disso é a recente nomeação do disco para o Prémio José Afonso (em 2003*). Agora anda a monte pelos palcos portugueses.


[* — O vencedor de 2003 foi Nove Fados E Uma Canção De Amor, de Carlos do Carmo; curiosamente, À porta do mundo, de Filipa Pais, foi o galardoado de 2004; estes artigos foram originalmente publicados no Culto!, em 23 e 24 de julho de 2003, recuperados a partir do Arquivo.pt]