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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Setembro 25, 2025

Crónicas de uma sombra sem fim

Miguel Marujo

 

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Este é um tempo estranho e de contradições. Regressou o medo do uso da bomba atómica, em particular à Europa (e todos demos por nós a cantar Russians, a canção de Sting que parecia já não fazer sentido), por causa da guerra instalada na Ucrânia, mas também ao Médio Oriente, onde o conflito se eterniza e há demasiadas bombas à solta. E regressou também o debate sobre o uso da energia nuclear, em que se vende como mais fiável, barato e seguro aquilo que sempre pareceu muito pouco seguro, depois de Chernobyl, e na sequência de Fukushima. 

Nem de propósito, chegaram às livrarias duas obras essenciais para nos ajudar a entrar neste debate, sem receio de o fazer através de livros de banda desenhada: A Bomba (em dois volumes) e Fukushima – Crónica de um desastre sem fim transportam dois acontecimentos maiores dos séculos XX e XXI para o universo das novelas gráficas.

Em A Bomba: Parte I – No princípio era o nada e A Bomba: Parte II – A sombra, os desenhos de Denis Rodier e o argumento de Didier Alcante e L.F. Bollée (numa tradução de Isabel Lopes) trazem-nos a história da corrida à bomba atómica, que culminou com o lançamento de duas ogivas sobre Hiroxima, a 6 de agosto de 1945, e Nagasáqui (ambas no Japão), três dias depois.

 

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Num forte traço a preto e branco, o narrador da história é o próprio urânio, adormecido durante milhões de anos e que foi despertado pela pesquisa científica e médica, mas que acabou desviado para a mesa de interesse de governos e militares, que durante a Segunda Guerra Mundial queriam defender-se procurando uma arma de destruição maciça. O entendimento de uns e outros era a de ter na sua posse uma arma que dissuadisse os inimigos.

A bomba atómica produzida pelos EUA nasce da vontade e da resistência de americanos e europeus, que tinham fugido a Hitler e Mussolini, que perceberam melhor do que ninguém aquilo que estavam a fazer. A obra de Alcante e Bollée insiste muito no debate ético que foi assomando nas mentes brilhantes que foram dando corpo a esta arma. E o traço de Rodier, que se demora nos detalhes, que é minucioso na definição das personagens, que voa das paisagens frias da Noruega para as minas na selva do Congo, ou mergulha no oceano Pacífico e levanta voo de Potsdam, não se perde no essencial, que é o de transmitir com nervo o argumento eficaz de Alcante e Bollée. A história é didática (e há um posfácio e outros textos), mas não se refugia numa linguagem hermética, apesar do desafio de ir narrando as experiências científicas dos criadores da bomba.

A ficção que rompe a “veracidade histórica” é trazida por uma família japonesa e uma menina, colocados no epicentro da bomba, que os autores definiram como uma homenagem aos Japoneses Desconhecidos, como se fossem o Soldado Desconhecido que se encontra em tantas cidades europeias. 

A sombra que ficou impregnada no chão de um edifício de Hiroxima, no momento da explosão da bomba atómica, é a sombra que paira sobre o mundo, de um dia alguém usar esta arma. Einstein – que é também um dos que aparece em A Bomba – disse, em 1948, quando lhe perguntaram como seria uma eventual Terceira Guerra. “Não sei como se fará a Terceira Guerra Mundial, mas posso dizer-vos o que será usado na quarta: pedras.”

 

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Em Fukushima – Crónica de um desastre sem fim, o nuclear está contido numa central elétrica. Será a natureza a libertar o mal, num acidente nuclear devastador, de que a humanidade acreditaria já estar longe, depois da irresponsabilidade soviética em Chernobyl. 

A 11 de março de 2011, um forte sismo no nordeste do Japão provocou um maremoto que inundaria a central elétrica de Fukushima Daiichi, apesar de esta ter um dique de seis metros de altura, para evitar esse cenário. Seguindo as atas das investigações ao acidente e relatórios sobre o desastre, Bertrand Galic criou um guião que resume os primeiros cinco dias do acidente, através do desenho de Roger Vidal, procurando mostrar como homens e mulheres foram gerindo a tensão e as (más) decisões que conduziram ao desastre que perdura ainda hoje. Já o traço do ilustrador catalão arrisca carregar nos tons de um ambiente tóxico e tenso, saindo dos limites das pranchas quando o momento exige, mas respeitando uma linguagem mais canónica da banda desenhada.

Fukushima levou, no Japão, à demissão de um primeiro-ministro que se tornou um ativista antinuclear, à reforma profunda das agências nucleares do país, a uma aposta menos tímida nas energias renováveis, a graves consequências no meio ambiente e nos seres vivos e no deslocamento de uma população, que já não quer voltar a uma zona contaminada. Estas duas novelas gráficas levam-nos a pensar que o nuclear continua a não ser uma hipótese. Ou melhor: é uma opção, mas só no desenho.

 

 

A Bomba: Parte I – No princípio era o nada
A Bomba: Parte II – A sombra
Didier Alcante e L.F. Bollée (guião) e Denis Rodier (desenhos), tradução de Isabel Lopes.
Gradiva, 2022, 216 pp. (vol. I), 264 pp. (vol. II), 18€ cada.

 

Fukushima – Crónica de um desastre sem fim
Bertrand Galic (guião) e Roger Vidal (desenhos), tradução de Isabel Lopes.
Gradiva, 2022, 136 pp., 27,50€