Maio 06, 2020
Coliseu dos Recreios, estação de energia
Miguel Marujo
Na morte de Florian Schneider (1947-2020), fundador dos Kraftwerk, recupero um texto sobre a passagem dos alemães por Lisboa, em 2015, apesar de Florian já não estar no palco.
Há um disco voador que aterra no Rossio lisboeta, depois de ter sobrevoado o Coliseu dos Recreios ali perto, provocando o espanto dos muitos que esgotam a sala de espetáculos. Como num filme dentro do filme, o público de óculos 3D postos acompanha a viagem que os Kraftwerk trazem do seu espaço para Lisboa, na primeira apresentação em Portugal do seu concerto em três dimensões (que repete esta segunda-feira na Casa da Música, no Porto).
O tempo do quarteto alemão é deste tempo, feito de sinais que todos identificam - e a média de idades do público é de quem foi acompanhando o trabalho dos Kraftwerk - mas num registo clássico: o computador de Computer World é um Atari; em Autobahn, o Mercedes Benz é de 1974, como o "carocha" e a carrinha "pão de forma" da Volkswagen; as modelos de The Models saíram de um catálogo de moda dos anos 1950; e mesmo a nave espacial de Spacelab parece saída do Caminho das Estrelas.
A energia nuclear continua a ser uma preocupação na (rara) agenda política da música dos Kraftwerk: Chernobyl já faz parte da letra de Radio Activity há muito, mas a voz de Ralf Hütter agora acrescenta Fukushima a Hiroxima, Sellafield e Harrisburg. Os medos dos anos 1970 não desapareceram, reciclaram-se.
O Coliseu transforma-se numa contínua barragem minimalista de sons em movimento e de imagens sonoras, com os músicos aparentemente reduzidos a mera figuração de uma projeção maior, quase sem se mexerem e vestidos de fatos que são reflexo das formas e luzes que saltam do ecrã. Só que os quatro artesãos das máquinas magnetizam os corpos da multidão presente na sala, mostrando à saciedade que a pop electrónica bebe nesta fonte criada na Alemanha dos anos 70, permanecendo em forma mais de 40 anos depois.
A estação de energia que é a música dos Kraftwerk alimenta-se dos sentidos - e na vertigem das descidas e dos sprints dos ciclistas que alimentam as imagens dos vários temas apresentados de Tour de France Soundtracks (o último álbum de originais, de 2003), o corpo do público parece acompanhar o movimento em cima das bicicletas, uma dança magnética, que se insinua a cada síncope e a cada aceleração de ritmo. Antes do encore, Trans Europe Express retoma as linhas melódicas dos homens-máquina que anteciparam o techno ou o hip-hop.
Cai o pano, literalmente uma cortina que se fecha como se de um filme se tratasse (e não falta a referência ao "estúdio" de realização do que acabou de se ver), para se voltar a abrir para a representação de quatro bonecos mecânicos, The Robots, a máquina sozinha em palco.
Depois de nova pausa, para retirar os robôs de cena, Ralf Hütter, Fritz Hilpert, Henning Schmitz e Falk Grieffenhagen regressam para uma celebração final dos corpos em movimento: Aero Dynamic, Planet of Visions (o tema que compuseram para a Expo 2000) e a tríade sagrada de Boing Boom Tschak, Techno Pop e Musique Non Stop. É com estas palavras que, um a um, os artesãos dos Kraftwerk vão deixando o palco, sob um manto de aplausos. A música não para, a estação de energia continua em funcionamento. Magnético concerto, este, no ano 2015 da era atómica.
[originalmente publicado no DN em 20 de abril de 2015]