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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Outubro 18, 2014

BES, o Novo Banco nascido de uma Caza de Câmbio

Miguel Marujo

 

Aos 19 anos, José Maria dedicou-se ao “comércio de lotarias, câmbios e títulos”. A partir daí foi criando várias casas de comércio bancário que estiveram na origem do Banco Espírito Santo. Uma história de donos disto tudo.

«A porta está fechada, os vidros das montras sujos e o correio acumula-se no chão à entrada da loja. Estamos no número 91 da Calçada do Combro, por onde o elétrico 28 passa a levar turistas acima e abaixo pelas colinas de Lisboa. Uma folha afixada na porta conta-nos que ali se fazia e vendia “encadernação, douração, material de encadernação, decoração, artesanato”, outro pequeno cartão identifica o nome da empresa. Não terá resistido aos anos de crise a Boutique A. Fernandes – em 2009, o Google Maps ainda fotografou a loja de portas abertas, mas vazia de clientes naquele instante e a funcionária na entrada a ver quem passava. Longe, muito longe do ano de 1869, ali naquele mesmo número, quando José Maria do Espírito Santo e Silva abriu a sua Caza de Câmbio, tinha 19 anos, para exercer diversas operações financeiras, dando início a um império que, depois de muitas denominações e empresas associadas, chegaria a 2014 como Banco Espírito Santo. Também não resistiu ao que se sabe: o BES é agora o Novo Banco.

No século XIX, José Maria começou por dedicar-se ao “comércio de lotarias, câmbios e títulos”, antes de fundar várias casas de comércio bancário – nem todas com o seu nome, mas sempre como sócio maioritário. Quando morreu em 1915 está à frente da J.M. Espírito Santo Silva & Cª., e já deixara há muito a “caza” da Calçada do Combro (desde 1880), no limite do Bairro Alto onde nasceu. Os seus herdeiros – com o filho José Ribeiro à cabeça – formam a Casa Bancária Espírito Santo Silva & Cª., em 1916, e quatro anos depois o Banco Espírito Santo. No mesmo dia 9 de abril de 1920 em que nasce este primeiro BES, abre também uma agência em Torres Vedras. Estava definido o objetivo de “levar cada vez mais perto dos clientes os serviços bancários”.

A empresa é, 50 anos depois de fundada, nos anos 1920, uma sólida instituição bancária, como descreve o próprio Centro de História do Banco Espírito Santo. Ninguém teria cunhado ainda a expressão “dono disto tudo”, que os portugueses descobriram como cognome de Ricardo Salgado. E que certamente poderia ter sido o cognome de Ricardo Ribeiro Espírito Santo, um dos filhos do jovem cambista da “caza” da Calçada do Combro. Ricardo sucedeu ao irmão José, em 1932, e cinco anos depois promoveu a fusão do seu banco com o Banco Comercial de Lisboa (fundado a 25 de fevereiro de 1875, com um capital de “2000 contos de réis”). Nascia assim o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL, denominação que se manteria até 1999). Nos anos 1950, Ricardo tornou-se “num conselheiro especial de Salazar para todos os assuntos relacionados com economia política, diplomacia e artes – e acabou por se tornar também um dos melhores amigos do presidente do Conselho”, como conta Pedro Jorge Castro no seu livro Salazar e os milionários (Quetzal, 2009).

Ricardo Espírito presidia ao BESCL, liderava a petrolífera Sacor (que esteve na origem da Galp), controlava a companhia de seguros Tranquilidade e duas sociedades agrícolas em Angola e Moçambique. Às oito da noite de domingo, o ditador recebia o banqueiro e falavam de tudo. Também das viagens que Ricardo fazia – e Salazar via o mundo também pelos olhos dele. “É difícil encontrar um grande investimento que não tenha sido escrutinado e, mais do que isso, aprovado nestes encontros rotineiros de domingo à noite”, lê-se no livro. Noutra ocasião, em março de 1953, o presidente do Conselho recebia o ministro dos Negócios Estrangeiros e o banqueiro para discutir a prenda que no dia seguinte António Salazar iria dar a Franco, num encontro com o ditador espanhol. Uma hora depois, saía o ministro e ficava o banqueiro para mais uma hora de conversa. Ricardo Ribeiro Espírito Santo era também um dono disto tudo. Até à sua morte em 1955.

 Em 1972, o banco internacionaliza a sua atividade, criando em 1973 o Banco Inter-Unido em Angola. A atividade privada desta instituição é interrompida em 1975, quando os bancos são nacionalizados. O regresso do Grupo Espírito Santo a Portugal começa a ganhar forma ainda nos anos 1980, com a criação do Banco Internacional de Crédito (BIC) e, por fim, com a reprivatização do BESCL em 1991. O regresso ao nome mais curto de Banco Espírito Santo (BES) é no fim do século XX. Em maio de 2009, o presidente da Administração Ricardo Espírito Santo Salgado sublinhava – numa entrevista à newsletter interna do banco – que “a confiança é a trave mestra do sistema financeiro” e que, “quando há uma quebra de confiança, o sistema ressente-se imediatamente”. E Ricardo Salgado lembrava de passagem a falência do Lehman Brothers em 2008, nos EUA.

O ex-dono disto tudo antecipava o seu próprio fim: em 2014, a confiança na sua presidência esboroou-se e o império finou-se, 145 depois da caza de câmbios na Calçada do Combro. Só o correio não se acumula no chão. Do BES nasceu o Novo Banco. Hoje, a marca “equilibra elementos de património (como a cor verde) e de novidade”, explicou em setembro ao Dinheiro Vivo a sua diretora de marketing Rita Torres Baptista. “Potencia a familiaridade e proximidade dos seus clientes, ao mesmo tempo que incorpora o compromisso de renovação e superação para voltar a ocupar a posição de liderança que o mercado sempre lhe reconheceu.” Por quanto tempo mais, é a incógnita que se desenha.»

Miguel Marujo [reportagem publicada no âmbito dos 150 anos do Diário de Notícias; foto de cima (Global Imagens): A fachada do balcão do Saldanha com a nova imagem do Novo Banco para substituir o nome do Banco Espírito Santo (BES), uma mudança que se iniciou em setembro passado mas ainda não chegou a todas as agências; foto de baixo (arquivo JN): No dia 25 de abril de 1974, uma multidão acorreu a um dos balcões do então BESCL, no Porto. Em março de 1975, o banco seria nacionalizado, como toda a banca portuguesa. A reprivatização só chegaria em 1991.]