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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Outubro 28, 2021

Até a morte os separa. Como o Parlamento recusa unanimidades nos votos de pesar

Miguel Marujo

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Na hora da morte, as convicções políticas de cada partido acabam por decidir a forma como acompanham o voto de pesar de personalidades evocadas pelos deputados. Não há uma única bancada que não o faça. [E de como se demonstra que, afinal, fazer uma mera soma de votos de uns com outros é enganador.]


Carlos Justino Cordeiro, antigo deputado do PS e autarca em Alenquer, e Sidónio Manuel Vieira Fernandes, ex-presidente do Instituto de Emprego da Madeira, contaram ontem [11 de maio de 2019] com um voto de pesar aprovado por unanimidade dos deputados na Assembleia da República. No momento da morte, a unanimidade é por norma o resultado dos votos de pesar dos diferentes partidos. Mas nem sempre é assim.

À ideia feita de que no passamento de alguém se elogia sempre a sua personalidade, os partidos parlamentares respondem com votos contra e abstenções. Não é preciso pesquisar muito para trás: no dia 26 de abril, um voto de pesar apresentado pelo CDS pela morte do toureiro Ricardo Chibanga teve um voto contra do PAN e as abstenções do BE, dos Verdes e do deputado não inscrito Paulo Trigo Pereira.

Em março de 2018, quando do pesar ao coronel João Varela Gomes, opositor à ditadura e ao fascismo, o CDS votou contra, com quatro abstenções (Ana Rita Bessa, Assunção Cristas, Filipe Anacoreta Correia e Telmo Correia).

Também em maio do ano passado, o Parlamento aprovou um voto de pesar ao capitão de Abril Álvaro Henriques Fernandes, com a abstenção do PSD e do CDS, e outro do antigo deputado centrista Rosado Fernandes (fundador da CAP) que contou com a abstenção do PCP.

Outras votações sem consenso foram mais notadas. Os comunistas votaram contra o voto de pesar ao empresário Belmiro de Azevedo, em novembro de 2017, enquanto BE e PEV se abstiveram.

Um ano antes, também em novembro, era Fidel Castro a dividir o Parlamento. Para começar, havia dois textos para votar na morte do antigo presidente de Cuba. O texto do PCP passou com os votos do proponente, do PEV e do BE; PAN, PS e PSD abstiveram-se e o CDS votou contra (com deputados destas três últimas bancadas a votar de modo diferente). Já o do PS passou com os votos a favor de toda a esquerda, a abstenção do PSD e do PAN e votos contra do CDS.

Em 2013, na anterior legislatura, por exemplo, foi o major-general Jaime Neves, uma das figuras centrais do 25 de Novembro, quem dividiu a câmaraAs bancadas do PCP, do BE e do PEV votaram contra o pesar apresentado por PSD, PS e CDS. Sem se preocupar com a falta de consenso, um pequeno grupo de antigos comandos, que se reconheciam pelas suas boinas, lançaram o grito de guerra Mama Sume (que significa "prontos para o sacrifício").

Os critérios para evocação

Questionados os partidos sobre os critérios usados para as pessoas que evocam e o que pode levar à decisão de se abster ou votar contra, o [à época] líder parlamentar do CDS, Nuno Magalhães, explicou ao DN que "segue o critério da relevância política, académica, económica, social, desportiva da pessoa a evocar, bem como o impacto que o seu percurso teve em Portugal ou no mundo". E acrescenta a "tradição" de apresentar votos de pesar a pessoas que tenham exercido funções como deputados ou dirigentes do partido.

O PCP argumentou que "é muito comedido quanto à apresentação de votos de pesar", notando que "a banalização de iniciativas dessa natureza arrisca-se a desvalorizar a sua apresentação". E defendeu a homenagem de "personalidades cuja notoriedade seja reconhecida".

Na hora de votar contra

A bancada comunista é taxativa na hora de se manifestar contra: "O PCP só se abstém ou vota contra em situações em que considere que a vida e obra da personalidade em causa merecem um juízo de tal modo negativo que impeça o PCP de, em coerência, se associar à sua homenagem."

Os comunistas disseram que votam a favor na morte "de personalidades com quem manteve profundas divergências, mas já seria incoerente votar a favor de votos de pesar pelo falecimento de personalidades cuja intervenção o PCP considere de tal modo negativa que não mereça ser homenageada".

Já o CDS disse que "tem como critério de partida o voto favorável em todos". "Assim foi em 99% das vezes e independentemente das opiniões, percurso ou convicções da pessoa a evocar", explicou Nuno Magalhães. "Só em casos extremos, no nosso entender, é que o CDS não pode votar a favor", exemplificando "no presente milénio" com Yasser Arafat e Fidel de Castro.

Para o PEV "faz sentido" ter "liberdade de votar contra, uma vez que os considerandos que dão corpo ao voto muitas vezes são relevantes para a decisão" desse voto.

Já André Silva garantiu que o PAN não vota contra "por convicções políticas e ideológicas mas admite não votar favoravelmente se o voto de pesar enaltecer ações ou valores que promovam a violência ou tenham atentado contra liberdades e direitos fundamentais".

Os outros partidos (PSD, PS e BE) não responderam ao DN.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias de 12 de maio de 2019; foto de Fidel Castro, o antigo presidente de Cuba, do Arquivo DN]