Janeiro 03, 2020
Às malvas com as convenções
Miguel Marujo
Quando Salvatore recebe a notícia da morte de Alfredo, o projecionista do pequeno cinema da sua aldeia natal, a sua vida passa-nos no grande ecrã: desde os tempos da infância, quando o pequeno Totó, como chamavam a Salvatore, se apaixonou pela magia do cinema, à adolescência em que se enamora de Elena. Mas a melhor síntese da sua vida está num pequeno filme que Alfredo lhe deixou e que não é mais do que uma extraordinária montagem de cenas cortadas dos filmes que eram exibidos no Cinema Paradiso e o padre mandava censurar ao som de um sino.
São beijos e beijos e beijos, e alguns nus, que não passavam no crivo do senhor de batina. É um dos mais belos hinos à história do cinema - e ao beijo!
Às malvas com as convenções, quando aqueles beijos se mostram naquelas películas enxertadas. O cinema sempre nos deu um beijo chamado desejo: quando nos lembramos de Burt Lancaster e Deborah Kerr, deitados na praia, em From Here to Eternity; quando o Homem-Aranha de cabeça para baixo beija Mary Jane; ou quando a misteriosa Rita toca nos lábios da inocente Betty em Mulholland Drive; e ficávamos aqui a ocupar páginas e páginas com exemplos destes. É esse também o sonho do cinema.
Há tratados sobre isto, páginas de filosofia, o beijo contado ao longo da história, fotografias, pinturas, livros, mas nada nos prepara para o momento em que mandamos um recado à professora da nossa filha e ela nos explica o que devemos escrever. "E depois terminas com beijinhos." Não, filha, não se mandam beijinhos à professora. Talvez no cinema.
[texto originalmente publicado no DN/1864, em 16 de abril de 2019]