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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Outubro 28, 2021

As estranhas geringonças na hora de votar no Parlamento

Miguel Marujo

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À geringonça que foi garantindo os votos necessários para que o executivo socialista sobrevivesse a uma legislatura que muitos vaticinavam curta, com os votos de PS, BE, PCP e PEV, somaram-se todas as semanas outras geringonças de geometria variável, em que, por exemplo, comunistas se juntaram a PSD e a CDS para fazer passar ou travar uma proposta. Um artigo de abril de 2019.

Em breve [depois de abril de 2019], há uma matéria que pode gerar uma solução que pode passar com os votos de PS, CDS e PCP. Trata-se de uma proposta de alteração centrista ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, para que o salário dos juízes tenha como teto máximo o do Presidente da República, que foi acolhida pelos socialistas, que tinham proposto eliminar o teto máximo do salário do primeiro-ministro para o vencimento dos juízes. Os comunistas também acompanharão este sentido de voto. Mas falta ainda o trabalho de discussão na especialidade, até à proposta chegar a votos.

Estas geringonças estranhas, ou porventura inesperadas, acontecem de forma bem mais frequente do que se acha, apesar de só serem mais notadas com propostas e projetos mais relevantes. [Eis alguns exemplos.]

Os votos decisivos do PCP no chumbo da eutanásia

Foi uma das últimas questões fraturantes levadas ao Parlamento e os quatro projetos acabaram chumbados com os votos dos deputados comunistas. O PCP foi decisivo: os seus 15 deputados somaram-se aos 19 do CDS e mais de 80 do PSD (seis sociais-democratas votaram a favor, mas não em todos ao mesmo tempo, evitando também assim a sua aprovação). No futuro, para que uma proposta possa vingar (os bloquistas prometeram que voltariam ao tema na próxima legislatura), será necessária uma maioria de esquerda que consiga dispensar os votos do PCP, que disse que não mudaria de opinião. Para que o "sim" à despenalização da eutanásia vingue será preciso que os deputados de PS, BE, PEV e PAN, somados aos do PSD que estão a favor (Rui Rio é um deles), formem essa maioria.

O momento em que a geringonça podia ter caído

A geringonça teve um momento em que "esteve em risco" de não chegar ao fim desta legislatura, revelou em novembro passado a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, quando falava no encerramento da convenção do partido. Dizia Catarina Martins então: "Só houve um momento em que a legislatura esteve em risco." Para logo depois situar esse momento quando o governo socialista procurou "compensar os patrões" pela subida do salário mínimo nacional com a descida da taxa social única (TSU), no final de 2016. Depois de aprovada em concertação social, como a tal contrapartida à subida do salário mínimo, a descida da TSU para os patrões acabaria chumbada na Assembleia da República em janeiro de 2017, pelo voto conjunto de BE, PCP e PEV e... PSD. Esse chumbo obrigou o governo a ter de encontrar uma alternativa, que passou então pela redução do pagamento especial por conta.

Combustíveis: só à segunda a esquerda deu a mão ao PS

Em junho de 2018, o CDS levou a votos uma proposta para eliminação do adicional ao imposto sobre produtos petrolíferos (ISP), que mereceu a aprovação na generalidade, com os votos favoráveis de PSD, CDS e PAN, valendo a abstenção de PCP, BE e PEV. O PS ficou sozinho a votar contra a medida. Quinze dias depois, na especialidade, a proposta acabou chumbada por BE e PCP. Em causa estava um pormenor importante, para bloquistas e comunistas: a eventual inconstitucionalidade da medida, por ter impacto orçamental. A solução seria colocar no articulado que a lei só entraria em vigor a 1 de janeiro de 2019, mas o CDS não o fez.

A reforma florestal que ficou sem o banco de terras

O Parlamento aprovou em julho de 2017, com os votos da esquerda, três propostas do pacote para a reforma florestal. Pelo caminho ficou a criação de um banco de terras, chumbada por PSD, CDS e PCP.

Os muitos pequenos exemplos do dia-a-dia

É um exemplo entre muitos: ontem, nas votações regimentais, o PCP juntou-se ao PSD e ao CDS para viabilizar um projeto de resolução social-democrata que "recomenda medidas urgentes de valorização dos cemitérios dos nossos heróis". Estes projetos, que se limitam a recomendações para o governo, são exemplos que se multiplicam no dia-a-dia de geometrias - e geringonças - muito particulares na hora das votações.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias de 27 de abril de 2019; foto © Reinaldo Rodrigues/Global Imagens]