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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Janeiro 25, 2022

As causas que sobrevivem às coisas

Miguel Marujo

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O Portugal de A Causa das Coisas e de Os Meus Problemas, publicados nos anos 80, fazem sentido neste século XXI? Miguel Esteves Cardoso ainda nos diz quem e o que somos nós? Haverá coisas que hoje se estranham, nomes fora de tempo, outras que já desapareceram ou caíram em desuso. Já as causas permanecem. Pretexto para uma revisitação a crónicas imperdíveis, agora reeditadas. Um texto originalmente publicado no 7Margens, no passado dia 15 de janeiro.

 

“O chá Noite Suave é o chá de quem abandonou a promiscuidade a favor do carinho” e quem lê o Almanaque Borda d’Água sabe que “por trinta e cinco escudos não é possível pedir mais, ou receber tanto”. Estas são coisas antigas de um Portugal recente, de há 35, 40 anos, nas quais descobrimos prazeres perdidos. “É um prazer anual que quase sempre esquecemos: a nova edição da lista telefónica anual”, aquele que era “o livro mais consultado, utilizado e difundido de todo o panorama editorial português”. Onde já vai isso.

Por outro lado, como não bastava o tédio, a melancolia, o fastio ou o spleen, o português juntou todas estas “mágoas internacionais” a “especialidades caseiras”, como a saudade e o sebastianismo, para criar um “coquetelho implosivo” a que deu o nome de “neura”.

É através de todas estas coisas e causas que Miguel Esteves Cardoso traça um retrato de Portugal, numa coluna semanal do jornal Expresso, nos idos de 1980. O país tinha entrado na União Europeia, Cavaco Silva começava a sua longa governação, que se prolongaria por uma década, Mário Soares chegava a Belém para ser o presidente de todos os portugueses, mas também para fazer oposição aberta ao cavaquismo que se tornou doutrina de um certo modo de vida.

Miguel Esteves Cardoso, lisboeta nascido em 25 de julho de 1955, filho de pai com ascendência judia e mãe inglesa, era um jovem cronista, colunista, crítico, um estrangeirado, licenciado e doutorado em Inglaterra. Nos começos dos 80, fumegavam o punk e a new wave, as suas críticas musicais – no Se7e e O Jornal (que deu origem à Visão) ou na revista Música & Som – despertaram atenção suficiente para assinar na Revista do Expresso uma coluna que muitos classificam de satírica. Nascia assim A Causa das Coisas. MEC seria mais tarde fundador e diretor de O Independente e político ocasional, numa candidatura às eleições europeias de 1987 – e também escritor.

 

O ouriço e a raposa

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No prefácio que acompanha a reedição de A Causa das Coisas (reunidas pela primeira vez em 1986, regressaram agora em 2021 pela mão da Bertrand), José Tolentino Mendonça, hoje cardeal e investido de um forte consenso transversal na sociedade portuguesa, lê nestas crónicas uma fábula da raposa e do ouriço, a partir de um verso do “poeta grego mais antigo de que nos chegou notícia”, Arquíloco: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande.”

Diz-nos então Tolentino que “Miguel Esteves Cardoso disfarça bem” porque “a aparência de raposa esconde afinal um sólido e obstinado ouriço” e este livro é apenas a investigação da “causa de uma coisa: Portugal”. Afinal, “como que a brincar, como se não quisesse”, este é “um dos ensaios mais sérios, mais originais sobre o que somos”.

E este Portugal de A Causa das Coisas, publicado em 1986, faz sentido lido nos anos 20 deste século XXI? Ainda diz quem e o que somos nós, como define Tolentino Mendonça? Haverá coisas que hoje se estranham, nomes fora de tempo, outras que já desapareceram ou caíram em desuso. Já as causas permanecem, ou são antecipadas por MEC, o anagrama que se tornou cartão-de-visita do autor destas crónicas feitas livro.

Neste livro, MEC, ou seja, o ouriço disfarçado de raposa, distingue causa, “tudo o que determina a existência de uma coisa ou acontecimento”, de coisa, “tudo o que existe ou pode existir real ou abstractamente”. E, para a raposa, “tudo é mesmo tudo”, constata Tolentino Mendonça, com exemplos de coisas de que fala o cronista: “Dom Afonso Henriques e o Totoloto, o mata-bicho nacional e Joyce, a neura e o sebastianismo, a farinha Predilecta e Lévi-Strauss, a maledicência e o mimo, o verbo «haver» e as couves, a Cartilha Escolar de Domingos Cerqueira e Strindberg, o chá e o papel selado, a lista telefónica e o luto.”

 

Um jogo de reconhecimento

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Este livro é também um jogo de reconhecimento, para o leitor mais ou menos velho, que tenha lido ou não estas crónicas, que tenha vivido naqueles anos de 1980. Logo a abrir, o autor discorre sobre alcatifas e fala-nos da pomada Encerite. Como disse? Isso. Mas também nos fala, virada a página, do Borda d’Água, um almanaque antigo, que vem de 1929, mas que ainda hoje se vende (a edição para 2022 custa 2,50 euros; então custava os tais 35 escudos, que seriam hoje 17 cêntimos), e é “uma instituição portuguesa que se autodescreve, legitimamente, como «repertório útil a toda a gente»”. E MEC esclarece que são “páginas cheias de informações sem as quais não se imagina ser possível sobreviver”.

Também as páginas destas suas crónicas estão cheias de informações sem as quais não se imagina ser possível sobreviver — basta seguir o alfabeto: “A” é de alcatifa, em boa hora contestada por MEC, para quem as carpetes são um dos “grandes equívocos” deste país na segunda metade do século XX. Hoje, escreve o cronista, “felizmente, tem-se vindo a esboçar um movimento de reação ao dogma da alcatifa”, e atrevemo-nos a pensar que, tirando hotéis que insistem em atapetar os seus corredores, o dogma foi vencido.

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Miguel Esteves Cardoso bem o sentenciava: “Estamos a sair da longa noite fascista do regime do matte, das fotografias baças, dos filmes com demasiado grão, dos sapatos inengraxáveis e dos móveis de pinho sem verniz.” Que é como quem diz, do Portugal cinzento, sem graça, herdeiro da ditadura que ditou também um gosto conservador, velho e gasto, sem ousadia nem imaginação, o que é próprio das ditaduras. Tudo acompanhado de Encerite, a cera para soalhos cintilantes.

(Sim, também existe ainda, em determinados circuitos. Em 2007 foi criada uma casa que se especializou neste mercado de nostalgia, muito depois destas crónicas, e que assegura no seu site que “desde 1927 que a cera Encerite garante «a beleza e a saúde das madeiras»”, desafiando o eventual comprador, num registo poético-publicitário que MEC não desdenharia: “Escolha entre uma bela paleta de tons, que vai do convencional castanho ao poético alfazema.”)

 

As coisas que se estranham

Já se disse. São as coisas descritas por Esteves Cardoso que mais se estranham. Ainda reconhecemos a Pasta Medicinal Couto (apesar de já não ser “medicinal”, por causa das regras de boa convivência europeia), ou as Pastilhas Valda, que aclaram a voz para “poder desconversar-se com clareza”, ou a Água Castello — que “atingiu a raríssima fama de vir a significar todas as águas minerais gaseificadas que se servem com whisky”. No entanto, já serão muito poucos os que sabem o que é um “anis escarchado”, nomeadamente o Creme de Anis Escarchado da firma Henriques & Henriques, ou a Araruta do Brazil, farinha alimentícia tão antiga quanto o z de Brasil e que, para MEC, é “uma forma aceitável de ingerência cultural brasileira na vida portuguesa”. Foi-se a farinha, chegou o guaraná e o rodízio e outras manifestações culturais, que dividem sempre o paladar e as opiniões.

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A nostalgia percorre as páginas destas coisas, seja a do Chá Li-Cungo, que Miguel já antecipava perder para “a concorrência dos chás comercializados” (e consta que desapareceu de vez das casas da especialidade), seja a do Emplastro Exclavil, que era “claramente futurista”, na sua publicidade exclamativa (“Sem dor e sem derrame de sangue!”, “Penetra até ao osso!”, “Extra Forte!”), mas finou-se algures com o peso da modernidade da CEE, a União Europeia de hoje. Fiquemo-nos por aqui nos exemplos.

 

Os problemas de MEC

Em Os Meus Problemas – que reuniu, em 1988, as crónicas que se lhe seguiram, também no Expresso, e que foram agora também reeditadas – o labor de olhar os portugueses é idêntico. Num prefácio bem mais comezinho que o de A Causa das Coisas, Maria Filomena Mónica acaba a olhar mais para si do que para a obra que tem em mãos. E estes textos voltam-nos a devolver o que de mais cáustico e revelador tem o espelho quando nos olhamos.

Quando se lê a crónica sobre “As classes automóveis” percebemos como há coisas que pouco mudaram: “Os motoristas de táxi (pelo menos, os de Lisboa) são invariavelmente fanáticos de uma espécie ou de outra. Ao contrário dos barbeiros, que observam o devido respeito e silêncio, os «choferes de praça» utilizam os clientes que transportam como tempo de antena para as opiniões mais estrambólico-radicais que há.”

Só a evolução das coisas pode mudar a perceção. Afinal, quem ainda escreverá cartas? E será que, em 2022, MEC ainda receberá cartas? Os portugueses são “bastante bons” nesta “via epistolográfica”, sentencia o cronista. “Ao contrário dos outros povos latinos, os portugueses, quando a mostarda lhes sobe ao nariz, não explodem in loco. Mordem o lábio, pegam num papel e numa caneta e deitam a raiva toda para a tinta”, aponta. Para mais à frente concluir que, “no silêncio ensimesmado da escrita, usam as linhas do papel como rastilhos curtos para bombas grandes”. Talvez hoje estes rastilhos incendeiem as caixas de comentários dos jornais online ou as redes sociais. Só se terá perdido a qualidade da veia epistolar.

Quem não perde a veia é MEC, que neste seu segundo tomo de crónicas regista dez páginas sobre “Nomes da nossa terra”, uma das mais notáveis prosas que cartografam lugares, aldeias, vilas e cidades portugueses. Vale cada uma das suas linhas, seguir o mapa por Deixa o Resto, Monte da Má Coisa, Margalha, Vergão Fundeiro, Filha Boa, Fonte do Bebe e Vai-te, Ferido de Água, Cima de Pele, Cuide de Vila Verde e… sim, tudo terras portugueses esmiuçadas com saber, sabor e humor.

 
A pandemia desafiada

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Nestes tempos de pandemia em que aprendemos a fechar-nos, confinados, e a abster-nos de quase saudar as pessoas, com distanciamentos físicos, sabe bem voltar à Causa das Coisas com que há quase 40 anos se cosiam as crónicas de Miguel Esteves Cardoso.

Em “Beijinhos”, MEC defende que “há uma latinidade para respeitar, um sangue quente para circular, um património cultural para transmitir”. E desafia: “Olhemos à nossa volta. Há centenas de pessoas por abraçar, mas abraçar a sério, e não à Moçambique”, atira, referindo-se a uma campanha humanitária da época. "Há bochechas por toda a parte, excelentes na sua generalidade, a passear por aí em pessoas vivas. Urge desatar a beijá-las à mínima oportunidade. E há milhões de palmas de mãos, e bons costados, braços e lombos, todos eles de boa estirpe lusitana, ideais para bacalhaus e xi-corações. Que nem um nos possa doravante escapar!” É só deixar passar a ómicron e tal.

Em “Zero”, há “uma pergunta que há muito preocupa quem ainda se preocupa em fazer perguntas sobre Portugal” e “é: porque será que, em Portugal, as nulidades são as maiores sumidades?” MEC não sabia, mas o Big Brother iria ser inventado, influencers e youtubers seriam profissões, e aqui chegados é impossível não pensarmos em aventesmas e venturas.

Portugal deslumbrou-se com um ouriço, prefacia Tolentino Mendonça. “Um caso de amor correspondido que dura até hoje.”

 

 

A Causa das Coisas, de Miguel Esteves Cardoso
Ed. Bertrand Editora
432 pág., 18,80 €

Os Meus Problemas, de Miguel Esteves Cardoso
Ed. Bertrand Editora
216 pág., 16,60 €