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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Junho 03, 2022

a voz que fala com os deuses

Miguel Marujo

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É impossível sair do Coliseu dos Recreios, como saí esta noite, sem que a voz, aquela voz, continue a ecoar na cabeça, uma memória encantatória que nos percorre e permanece — Lisa Gerrard é a alma dos Dead Can Dance (e o público manifestou-o vezes sem fim), o corpo e os sentidos do cerebral Brendan Perry.

Esta voz, aquela voz, fala com os deuses, ou o que se queira chamar a alguém cujo nome não se diz, e na amálgama de sensações os corpos respondem hipnotizados ao chamamento: seja num menear que se insinua, como se ouve logo a abrir em Yulunga (Spirit Dance), seja na convocação de uma oração, como em Bylar — ou também, no momento em que Lisa fica sozinha em palco, imperturbável atrás do microfone, a cantar (e este verbo confunde-se com encantar) Persian Love Song (The Silver Gun). 

No jogo entre a antiguidade e a modernidade, que sempre marcou a sua música, Brendan e Lisa — acompanhados de um quinteto (de múltiplas percussões, várias guitarras, teclas e coros) tão cativante como competente — tecem uma sonoridade dionisíaca, sensual, arrebatadora, contemplativa, com os ritmos a sucederem-se por entre hipnóticas percussões, inesperados sons resgatados da Natureza, numa tensão permanente que ora remete para danças libertinas (e Dance of the Bacchantes foi uma festa em palco), ora nos embala em sonhos de serafins (e The Host of Seraphim foi o remate sublime, antes do encore previsto).

Com o álbum mais recente, Dionysus, publicado já em 2018 (e que deu o mote à anterior passagem dos Dead Can Dance por Lisboa, em maio de 2019), esta digressão europeia, que terminou esta quinta-feira à noite, dia 2, em Lisboa, foi sobretudo uma fantástica viagem pela obra do grupo de origem australiana — Into the Labyrinth, com quatro temas, e Anastasis, com três, são os discos que mais canções forneceram ao espetáculo, o que retrata bem como este concerto foi beber a todos os discos dos Dead Can Dance para compor as 18 canções que se ouviram em palco. 

No Coliseu, o público respondeu à celebração da música como pedem as canções de Brendan e Lisa: com júbilo, que é assim que se recebem os deuses na terra. Ámen.


[foto da conta oficial de Instagram dos Dead Can Dance, do concerto da véspera, 1 de junho, também em Lisboa]