Novembro 24, 2024
A próxima guerra civil americana está em preparação
Miguel Marujo
Este texto foi escrito e publicado dias antes das eleições presidenciais americanas. E se a sua frase final já tem uma resposta, cada uma destas linhas vertidas a partir do livro A Próxima Guerra Civil — Notícias da América do futuro antecipa muito daquilo que se começa a desenhar com uma insistência assustadora, sobretudo quando lemos sobre as nomeações do indigitado Presidente, e de como o mesmo Donald Trump pretende exercer o seu cargo: pelo ódio e pelo ressentimento.
A América que vai a votos na terça-feira, 5 de novembro, não é apenas uma América dividida. Os Estados Unidos da América são hoje um país à beira da guerra civil, em que a insurreição está já a acontecer. Tal e qual como no século XIX, em que ninguém viu chegar a primeira guerra. A catástrofe depois era inevitável. Hoje, os preparativos já estão em curso, mas como ninguém quer o que aí vem, ninguém quer ver o que aí vem: uma guerra civil.
A tese de Stephen Marche, escritor canadiano, que colabora com publicações americanas, não é do mundo da ficção, ainda que em A Próxima Guerra Civil – Notícias da América do futuro, um livro de 2022, publicado já este ano em Portugal pela Zigurate, o autor ensaie notícias ficcionadas para articular com aquilo que já acontece no terreno.
Esta América em crise é um país fortemente armado, em que há forças milicianas (armadas até aos dentes) empenhadas em derrubar o governo, que odeiam, e é uma sociedade profundamente desigual, hiperpartidarizada, economicamente insustentável, com crises iminentes na segurança alimentar e ambiental das cidades, e em que a cor, a religião, o dinheiro, o género, o território, o clima, tudo é motivo para discussão, também ela bastante polarizada.
Para Marche, de ambos os lados (leia-se: republicanos e democratas), as diferenças de opinião cristalizaram numa mentalidade de cerco. São dois países que convivem nas mesmas fronteiras, entre vermelhos e azuis, ricos e pobres, progressistas e reacionários, Norte e Sul, litoral e interior… Tudo é uma fortaleza: política, sociedade, ideologia, geografia. “Nenhum americano quer ter o outro lado por perto e, sempre que possível, escolhe não ter.”
A Guerra da Secessão, de 1861 a 1865, acabou numa união forjada no ressentimento e na desconfiança. Por isso, nota Marche, “os Estados Unidos já arderam no passado”, uma e outra vez: “A Guerra do Vietname, os protestos a favor dos direitos civis, os assassinatos de John F. Kennedy e de Martin Luther King, o escândalo Watergate, todos foram catástrofes nacionais que permanecem na memória contemporânea.” Mas, e a grande diferença nos dias de hoje é esta, “os Estados Unidos nunca se confrontaram com uma crise institucional como a atual”. Afinal, “a confiança nas instituições era muito maior nos anos 1960 e 1970”. Para o autor canadiano, os EUA precisam de reformar as suas fundações, como a Constituição (“idolatrada como um documento religioso”) ou o sistema eleitoral, e não apenas de caras novas.
Stephen Marche parte de notícias ficcionadas, cinco cenários possíveis, como já se disse, para contar a América atual. E nada parece ficção porque o escritor optou por basear esses cenários “nos melhores modelos de projeção disponíveis”. Só os “incidentes catalisadores” sugeridos no livro “são produtos da imaginação”, “escrupulosa e exaustiva”, mesmo que a realidade se aproxime ou ultrapasse a ficção. Basta pensar na invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro de 2021, a imagem que ilustra a capa do livro.
Não se pense que esta é uma obra de um autor de esquerda a bater em Trump e os seus extremistas. Stephen Marche é um moderado, aponta ao centro, defende o diálogo como ponte necessária para a América dar a volta, tanto critica os conservadores do Tea Party, como os esquerdistas do Occupy Wall Street, mas conclui que a violência armada e organizada mora na ultradireita radical, “patriota antigovernamental”, que põe a mão no peito enquanto canta o hino de um país em que não acredita. Trump é uma distração, como nota Marche: “A coisa mais inteligente que o próprio afirmou acerca da sua carreira política foi dita numa conferência de imprensa em 2017: «Eu não cheguei e dividi o país. Este país já estava gravemente dividido antes de eu cá chegar.» Na melhor das hipóteses, Trump é um sintoma.”
Há uma existência documentada e provada “entre extremismo político e épocas de dificuldades económicas”, como se prova na popularidade do fascismo com as causas mais profundas da Grande Depressão. Hoje, como ontem: “A ascensão da direita radical e o hiperpartidarismo patentes em Washington são também um efeito indireto do colapso do mercado imobiliário em 2008.”
O sintoma que é Trump, e toda a direita patriota antigovernamental, pode ser combatido com uma nota de esperança, argumenta Marche no final, esperando ser levado a sério: “Os Estados Unidos precisam de recuperar o seu espírito revolucionário”, porque as crises que o país vive “exigem um novo começo”. “Uma vez mais, tal como antes, a esperança da América são os americanos.” Terça-feira, 5 de novembro, pode ser um primeiro passo. Para a secessão ou para a esperança.
A Próxima Guerra Civil — Notícias da América do futuro
Stephen Marche (tradução de Ilda Luís)
Livros Zigurate, 2024
224 pp., 19,30€
Artigo originalmente publicado no 7MARGENS, a 2 de novembro de 2024. Imagem: Assalto ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, por apoiantes de Trump, que queriam impedir a tomada de posse do Presidente Joe Biden. Foto © TapTheForwardAssist, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.