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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Dezembro 18, 2017

A história de um encontro entre a garagem e a academia

Miguel Marujo

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Novo álbum dos Mão Morta regista os concertos com o Remix Ensemble. "Duas estruturas abertas a trocarem galhardetes e experiências", diz Adolfo Luxúria Canibal ao DN. Uma declaração política

Só os mais distraídos podem estranhar o mais recente trabalho dos Mão Morta, resultado de quatro noites de concerto com o Remix Ensemble, a orquestra contemporânea com residência na Casa da Música. Nós Somos Aqueles Contra Quem Os Nossos Pais Nos Avisaram é o registo ao vivo em que a banda de Braga revisita o seu repertório num choque entre a garagem e a academia. Em entrevista ao DN, Adolfo Luxúria Canibal recordou que "este bichinho" vinha já de 2012, com uma experiência ensaiada na Guimarães Capital Europeia da Cultura.

"Nós não queríamos pegar no nosso repertório e dar-lhe um ar sinfónico, não o queríamos adornar, queríamos pô-lo em causa, de alguma forma suscitar uma espécie de choque entre duas formas de olhar e fazer música, entre a forma da garagem, a forma popular, ligada ao rock, e a forma académica, erudita, dos conservatórios. Para que acontecesse esse choque e desse frutos, não podíamos estarmos numa posição perfeitamente popular e não podíamos chocar contra alguém perfeitamente fechado no seu academismo. Tinham de ser duas estruturas abertas a trocarem galhardetes e experiências."

Os Mão Morta, desafiados pelo Theatro Circo a encerrar as comemorações dos 100 anos desta estrutura cultural de Braga, em 2016, quiseram fazê-lo com a sinfonieta de 15 elementos, dirigidos pelo maestro Pedro Neves, e arranjos de Telmo Marques. Adolfo não lhes poupa elogios. "O Remix Ensemble é, dentro da música erudita e contemporânea, um agrupamento de exceção. Achámos que o Remix seria o nosso oponente ideal."

Não se esperem adornos ou meros ornamentos, os Mão Morta não se domesticaram. Recordando os primeiros anos, na década de 1980, Luxúria Canibal lembra que "todos os concertos dessa época eram muito mais viscerais". "Na altura arranhávamos muito mal os instrumentos, conseguíamos fazer o que queríamos mas era limitado pelo que sabíamos — e sabíamos muito pouco, fazíamos coisas muito mais rudes e primitivas do que fazemos hoje." Mas "a essência dos concertos dos Mão Morta mantém-se. A forma como interpretamos visceralmente os temas continua a ser idêntica, a sua exteriorização é que já não é a mesma. A forma como encarnamos e como levamos a sério, sem nos levarmos a sério, o que estamos a tocar, continua a ser exatamente o mesmo."

Nós Somos Aqueles Contra Quem Os Nossos Pais Nos Avisaram não é só o título deste álbum, é uma declaração política. Mas Adolfo recusa que esta música seja de intervenção, pelo menos no "sentido em que se cristalizou a ideia" desse género. "Não temos nada a ver com esse tipo de intervenção mais imediato." No entanto, "de alguma forma falamos sobre política, temos um olhar social sobre o mundo, isso temos e não escondemos e fazemos finca-pé em ter a liberdade de o fazer. Não distribuímos palavras, não chamamos as pessoas à ação." E regressa ao choque que é este disco. "Quando chegámos ao fim dos nossos espetáculos, sentimos que tínhamos ultrapassado a diferença, a rutura que existe entre estes dois universos, o olhar o outro como o diferente sem ter receio do outro — que é uma banalidade do quotidiano, basta ver como olhamos para os muçulmanos, para minorias, todo este advento da extrema-direita, do Trump..."

E nós podemos ser aqueles que vos avisamos, tomando as palavras de Adolfo. "Uma pessoa ouve estes temas e não diz, 'ah, isto é o património dos Mão Morta com toquezinhos sinfónicos'. Não, não é, há ali uma revisão completa." E funciona muito bem.

[texto publicado originalmente no DN a 12 de março de 2017]