Em julho de 2018, José Tolentino Mendonça foi nomeado bibliotecário e arquivista do Vaticano. Hoje é cardeal e prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, também no Vaticano. Em entrevista ao DN, o padre e poeta português - que já tinha orientado o retiro quaresmal do Papa, em fevereiro desse ano - recusou então a "lógica das influências" e falava da sede que desinstala. Hoje, quando é anunciada a atribuição do Prémio Pessoa 2023 a Tolentino Mendonça, recuperamos essa conversa de 2018.
José Tolentino Mendonça estava convencido que orientava o retiro quaresmal do Papa - estávamos em fevereiro [de 2018] - e voltava ao seu trabalho em Lisboa. Mas Francisco desinstalou-o e chamou-o a Roma, agora, para ser o responsável da Biblioteca Vaticana e do Arquivo Secreto da Santa Sé, dando-lhe a dignidade de arcebispo.
Depois de ser o primeiro português a pregar os exercícios espirituais ao papa, Tolentino chegará a Roma recusando qualquer influência especial junto de Francisco."Um retiro tem outra natureza, bem distante da lógica das influências. A voz que aqueles que fazem um retiro procuram não é certamente a do pregador. E mais. De uma forma despojada, nem é sequer a sua própria voz. A única voz importante é mesmo a de Deus que ressoa no silêncio do coração. Tudo o resto é acessório", confessou ao DN.
É esta lógica despojada com que responde sobre a sua nomeação. "Eu estava convencido que fazia o retiro e voltava ao meu trabalho em Lisboa, de que gostava muito."
O poder é uma tentação, notou o padre e poeta, no retiro de fevereiro, publicado em livro em abril (Elogio da Sede, ed. Quetzal). "O culto do poder faz do poder um ídolo, qualquer que ele seja", pregou Tolentino, apontando que é "um risco enorme" quando esse poder "deixa de ser claramente um serviço aos irmãos e se torna o delírio da autoafirmação e da autorreferencialidade". E recordou ao Papa e bispos que o ouviam nesse retiro: "Não devemos esquecer que Jesus se recusou determinantemente a ajoelhar-se perante Satanás, mas ajoelhou-se voluntariamente diante dos discípulos para lavar-lhes os pés."
Tolentino Mendonça foi à metáfora da sede para melhor "descrever a vida espiritual": a sede, respondeu ao DN, "volta sempre, desinstala-nos continuamente, faz de nós caminhantes em busca de uma fonte".
"A fé não é um estado de autossuficiência, mas pelo contrário: é uma aguda e por vezes dramática consciência da nossa pobreza, da nossa escassez que nos atira em confiança para a escuta de Deus", acrescentou. Para melhor olhar para o que tem sido este pontificado: "o Papa Francisco diz recorrentemente que um dos maiores perigos para a Igreja é a autorreferencialidade. Ele tem-nos desafiado a todos a tornarmo-nos sedentos, a vivermos com fome e sede de justiça, de misericórdia, de humanidade... E creio que este é um dos traços que tornam a sua figura tão marcante e inspiradora: percebermos rapidamente que ele faz da sua sede o seu tesouro. Onde é que o Papa alimenta e amplia essa sede? Não tenho dúvidas que a oração para ele é uma máquina de criar sede, mas também o é a leitura que ele faz dos sinais dos tempos ou a sua fidelidade à escuta dos pobres e das periferias."
O telefonema que comoveu o poeta
O modo de atuar de Francisco é de alguém que escuta, que tem sede de ouvir. "Ele é um Papa que defende muito a prática da sinodalidade. Seja com os bispos. E, por exemplo, no sínodo da família, o primeiro pedido que ele fez aos bispos foi que falassem e discutissem abertamente todas as questões. Seja com os fiéis, a quem estimula a uma participação mais ativa. Seja com as periferias sociais e existenciais, cuja voz ele tem a solicitude por escutar e trazer para o centro da reflexão", notou Tolentino.
A reflexão do padre português chegou a todos através da publicação do livro, abrindo a porta a que outros se aproximem desta fonte, um caminho que Francisco também tem proposto. "Tenho uma amiga que tem uma livraria, que é completamente agnóstica, e que, há dias, me surpreendeu. "Quero dizer-te uma coisa" - disse-me ela. "O Papa Francisco é a única voz verdadeiramente humana que hoje se faz ouvir no mundo". Não há dúvida que o Papa Francisco é um grande mestre de humanidade, num tempo em que os mestres escasseiam. E é muito escutado também fora do espaço eclesial", concordou Tolentino.
As pregações reunidas em livro também já têm edição em italiano, que o Papa já viu. "Bem, Elogio da Sede começou por ser uma espécie audiolivro (risos), pois reúne as meditações que o Papa ouviu no retiro da quaresma passada. Mas, sim. Enviei a edição do livro em italiano ao Papa Francisco e ele telefonou-me depois a agradecer, coisa que muito me comoveu."
Tolentino começará em 1 de setembro [de 2018], nas suas novas funções. O 48º bibliotecário espera aprender com os seus trabalhadores. "Estou entusiasmado. Não nos faltará que fazer."
[artigo originalmente publicado no DN, em 1 de julho de 2018, com o título "Tolentino Mendonça: O 48.º bibliotecário do Vaticano"; foto de Ricardo Perna/Família Cristã]
Dois nomes maiores irlandeses da música deixaram-nos em 2023. Depois da morte de Sinéad O’Connor, em julho, agora foi Shane MacGowan, o poeta de dentes podres e de voz inconfundível que, entre copos de whiskey, cerveja preta e muitos cigarros, compôs com a sua banda The Pogues belas canções rock de travo folk irlandês, como Dirty Old Town, Rainy Night in Soho, The Band Played Waltzing Matilda, If I Should Fall from Grace with God, ou a mais bela canção de Natal, Fairytale of New York, num dueto com Kirsty MacColl. A lista peca por muito incompleta.
Nascido a 25 de dezembro de 1957, Shane MacGowan morreu esta quinta-feira, dia 30 de novembro, às 3h30, com 65 anos, depois de um longo período doente. Foi a mulher Victoria que o anunciou nas redes sociais. “Shane será sempre a luz que tenho diante de mim e a medida dos meus sonhos e o amor da minha vida… Sinto-me abençoada, para lá das palavras, por tê-lo conhecido e o ter amado e por ter sido tão infinita e incondicionalmente amada por ele”, escreveu.
Os Pogues de Shane MacGowan foram um punk feito poema de amor, inspirando-se em influências maiores nos inícios dos anos 80, dos Clash a Tom Waits, ou no ativismo político e social de um Billy Bragg, e inscrevendo-se numa linhagem de músicos que souberam revitalizar a tradição musical irlandesa, como Van Morrison, The Dubliners — com quem também gravaram juntos Irish Rover ou Whiskey in the jar, entre outros temas — ou The Chieftains. Mas Shane imprimiu nos seus poemas uma dose saudável de literatura, mitologia e Bíblia, como descreveu Laura Snapes, no jornal The Guardian, sem nunca abdicar de uma forte leitura política e social.
Remexeram nas raízes, puxaram da raiva e da emoção e deram de beber a um público acomodado na pop, explicava-se Shane, à New Musical Express, em 1983, citado no artigo do Guardian. Daí uma sonoridade de banjos e harmónicas, gaitas de foles e acordeões, que pedia sempre festa e muitos copos, com piscadelas de olho a outras geografias, como em Turkish Song of the Damned ou no delírio acelerado de Fiesta.
Dos sete discos de originais da banda (os dois últimos já sem Shane), Rum, Sodomy and The Lash é a obra essencial de uma genial discografia, que se foi afundando na adição cada vez mais descontrolada de Shane no álcool e nas drogas. Os relatos de concertos em Lisboa e Porto, de finais dos 1980, demoram-se na descrição de equilíbrios improváveis em palco e de um anel desaparecido.
Despedido da sua banda, no início dos 1990, MacGowan ensaiou regressos com os The Popes, sem a lucidez e o sucesso dos Pogues, ou em duetos e participações especiais. Em 1992, Nick Cave estendeu-lhe a mão para uma versão deliciosa de What a Wonderful World, num single acompanhado de duas versões de Lucy e Rainy Night in Soho. E em 1994, Sinéad juntou-se a Shane e aos Popes para cantarem Haunted. “I want to be haunted by the ghost/ of your precious love”, diziam um ao outro. Assombrados pelo fantasma de um amor precioso e maior — a música que fica, neste caso.
P.S. — Depois de ter escrito este texto, tropecei numa carta em que, interpelado por um leitor dos seus Red Hand Files, Nick Cave evoca Sinéad e Shane: "Sinéad disse uma vez sobre Shane: ‘Ele é um anjo. Um anjo de verdade’. Se é esse o caso ou não, quem é que pode dizer? Mas Shane foi abençoado com um espírito incomum de bondade e um profundo sentido do que é verdade, que foi estranhamente amplificado na sua fragilidade, na sua humanidade. Podemos dizer dele com toda a certeza: ‘ele era amado na terra’, e de Sinéad também — ambos verdadeiramente amados e de quem temos muitas saudades."
Sozinho em palco, Francisco Sassetti pega emHome, o seu primeiro trabalho a solo, e conta-nos a ideia de cada tema, a imagem que acompanhou o compositor e pianista na feitura de cada música, um céu estrelado, como emNocturne I, ou um salão de baile em fim de festa, com os copos vazios pelas mesas e um homem ali sozinho, emGoodbye.
Home(o tema-título) é um regresso à casa em que nos sentimos de facto em casa, e no palco e no disco, Sassetti faz isso mesmo, mete-nos dentro da sua sala de estar, a ouvir as gargalhadas da mulher, o filho a libertar a princesa das garras de um dragão, por entre uma floresta tenebrosa, e os sonhos da filha.
No disco há também assumidamente Bernardo Sassetti, o irmão de Francisco que morreu em 2012:Inocência IeInocência IIrecuperam composições de Bernardo, para uma citação que vai mais além, com Francisco a notar a profunda tristeza desta última versão, que (no concerto) dedicou às mães palestinianas e israelitas e aos pais russos e ucranianos, que veem morrer os seus filhos na guerra. “Podia chamar-seDesolação…”
“Na realidade, a maioria dos temas já tem cerca de dez anos. Depois da morte do meu irmão, em 2012, comecei a compor compulsivamente, quase como se quisesse continuar a obra dele, tão tragicamente deixada a meio. Era uma forma de lamento e, também, um espaço de paz e silêncio. Por outro lado, o exigente trabalho como concertista e professor (na Escola Superior de Música de Lisboa e na Orquestra Metropolitana, entre outras instituições) não me deixava muito tempo para terminar as composições, o que, entretanto, consegui”, revelou Francisco Sassetti.
Este disco – apresentado numa versão mais curta numa breve digressão de quatro datas com o belga Wim Mertens e que será revelado brevemente, na íntegra, em Lisboa – é mais do que aquilo que se ouviu em Leiria (e em Lisboa, Porto e Espinho). Há um espaço de paz e silêncio que se reconhece nos fraseados que Francisco traz neste disco, que (pasme-se) é a sua primeira obra a solo. Há novas composições a serem trabalhadas, promete Sassetti, mas por agora é em casa que nos sentimos com esteHome.
É essencial este livro do “essencial da política portuguesa”, um senhor calhamaço de 934 páginas, com organização de Jorge M. Fernandes, Pedro C. Magalhães e António Costa Pinto. Trata-se da edição portuguesa doOxford Handbook of Portuguese Politics, que em boa hora a Tinta-da-China trouxe à estampa em língua portuguesa, com a contribuição de 68 investigadores.
O peso deste livro não se fica pela sua dimensão. É de facto uma obra essencial para compreender Portugal quando a democracia já tem mais anos de vida do que a ditadura e se prepara para cumprir 50 anos. No prefácio à edição, Gonçalo Saraiva Matias e João Tiago Gaspar, responsáveis da FFMS – Fundação Francisco Manuel dos Santos (que apoiou o projeto), notam que “a democracia portuguesa, tal como a generalidade das chamadas ‘democracias liberais’, enfrenta desafios consideráveis à sua estabilidade e autoridade e, portanto, à sua própria sobrevivência”.
Este livro (48 capítulos, tantos como os anos da ditadura) ajuda a caminhar por entre os desafios que a democracia experimenta, como movimentos e partidos populistas, a participação cada vez menor de cidadãos e a própria erosão dos princípios e valores democráticos, como identificam os autores do prefácio. A estas ameaças, os organizadores deO Essencial da PolíticaPortuguesasomam os “enormes desafios às perspetivas de desenvolvimento de Portugal”, colocando no “centro deste livro” a “economia política e as dimensões políticas subjacentes a estes desafios”.
Não é coisa pouca, e os autores assumem a empreitada como tal: o livro “tem a ambição de se tornar a referência em Portugal e o seu sistema político”, com um alvo mais especializado identificado – “cientistas políticos, economistas, historiadores e sociólogos”.
Não se assuste o leitor que não vista uma destas camisas. Apesar do tom e do rigor académicos, há (como se aponta) uma “grande diversidade de análises e de dados”, que permitem, também ao leitor “comum”, ler e refletir sobre o percurso exaustivo de uma sociedade que aprendeu a viver a democracia, e em democracia, e fazem desteEssencial…uma obra de consulta obrigatória quando se quer estudar e pensar o país, entre o passado e o presente.
Se hoje a investigação nas ciências sociais portuguesas permite esta “visão abrangente, atualizada e sistemática como nunca”, é pena que a apresentação de cada investigador (com exceção dos três organizadores) se limite a uma linha que explica o lugar académico de origem de cada autor. A diversidade de autores é também política, e vale a pena ao leitor perceber o quadro em que se move o investigador.
Esta é, no entanto, uma falta menor perante a dimensão e a ambição deste projeto, que permite um retrato minucioso (e muito atualizado) nas mais variadas áreas. É, por exemplo, pertinente a abordagem cronológica sobre “as relações entre a Igreja Católica e o poder político em Portugal”, por Madalena Meyer Resende, onde se aponta “a peculiar reserva da hierarquia católica nas suas relações com o campo político”, desde logo “condicionada” pela “sua natureza de instituição religiosa” e também pela sua intensa cooperação e interligação com o Estado”.
As etapas da democratização, a transição para a liberdade religiosa, incluindo a lei de 2001 e a nova Concordata de 2004, a liberalização das leis morais, com a despenalização do aborto, e os cortes de financiamento público nos contratos de associação com o ensino particular, acabaram por traduzir-se num declínio do peso político da Igreja, apesar do apoio social à Igreja e à sua autoridade moral parecerem mais elevados do que noutros países do Sul da Europa.
Este é um exemplo breve (entre os 48 capítulos) da diversidade de leituras sobre a atual sociedade portuguesa. Já se disse:O Essencial da Política Portuguesaé uma obra essencial.
Há mulheres, muitas, que marcham, vestidas de branco, lado a lado, sorridentes, em festa – e fazem-no pela paz. São quatro mil, duas mil israelitas, duas mil palestinianas, que caminharam em direção a Jerusalém, para pedirem a paz numa terra a que muitos chamam santa e vive em estado (quase) permanente de guerra e conflito.
Estávamos em 2016, há sete anos, no dia 19 de outubro, e aquelas mulheres tomaram em mãos a vontade de muitas e muitos naquelas terras do Médio Oriente – a de lutar pela paz sem armas nas mãos. Partiram a 4 de outubro de Qasr el Yahud (a norte do Mar Morto) na “Marcha da Esperança”, até Jerusalém.
A cantora e compositora israelita, também ativista por esta causa, Yael Deckelbaum, juntou-se a esse grupo de mulheres, apresentadas como “corajosas”, que se tinham unido no movimento Women Wage Peace, quando em 2014 se registou uma escalada no conflito, com mais um episódio de guerra entre israelitas e palestinianos. A operação militar de então recebeu o nome deTzuk Eitan, pelo lado israelita – e os objetivos enunciados na boca de políticos foi muito semelhante ao de agora.
Yael Deckelbaum juntou-se então a essas mulheres – incluindo Lubna Salame, Miriam Toukan, e também Daniel Rubin, nas principais vozes – , para cantarPrayer Of The Mothers(“Oração das Mães”), em hebraico, árabe e inglês.
As marchas foram acompanhadas pela Nobel da Paz, Leymah Gbowee, que conseguiu conduzir a Libéria à paz, pondo um ponto final da guerra civil, em 2003, pela força conjunta de mulheres. Na música, Yael incluiu uma gravação de Leymah, em que esta deixa um veemente apelo à paz.
A mensagem permanece mais atual do que nunca. “Do norte ao sul, do oeste para o leste, ouçam a oração das mães, tragam-lhes paz.” Ouvirão os senhores da guerra este apelo?
Nick Cave está de regresso à gravação de um álbum com os seus Bad Seeds, depois de Ghosteen (2019). A notícia foi dada pelo próprio, emThe Red Hand Files, o site que alimenta com respostas à correspondência dos seus fãs.Numa carta publicada a 15 de maio, Nick Cave anuncia “algumas semanas de folga” do site por, a partir desse dia, entrar em estúdio e trabalhar “nas músicas do novo disco do Bad Seeds”.
Antecipando que “as músicas estão a soar ótimas”, o compositor, cantor e músico australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não desvela muito mais sobre como vai ser esse disco. Neste intervalo, Nick não tem estado parado: gravou sozinho, numa emissão ao vivo porstreaming, o discoIdiot Prayer(Nick Cave Alone at Alexandra Palace), em plena pandemia (2020), escreveu o libreto para uma ópera de câmara do belga Nicholas Lens,L.I.T.A.N.I.E.S(2020), juntou-se a Warren Ellis, seu companheiro nos Bad Seeds, para gravar um dos grandes álbuns do ano de 2021,Carnage, e acompanhou o mesmo Ellis em três bandas sonoras:La Panthère des neiges(2021),Dahmer — Monster: The Jeffrey Dahmer StoryeBlonde(ambas em 2022); reuniu os seusB-Sides & Rarities Part II (2021), com os Bad Seeds; por fim, escreveu e leuSeven Psalms(2022) num disco tão breve quanto intenso. E ainda teve tempo para uma longa conversa em livro, com o jornalista Seán O’Hagan, cujo título é uma perfeita síntese da vida, obra e música de Nick Cave:Fé, Esperança e Carnificina(ed. Relógio d’Água, 2022). No meio disto tudo, passou por duas vezes no verão do ano passado pelos palcos do Porto e de Lisboa.
Respiremos: este enunciado burocrático quase esconde o caminho que Cave tem feito, nestes anos mais recentes, no qual parece ter pressa em dialogar com Deus. O músico perdeu dois filhos nos últimos anos, e — a partir da morte de Arthur, em 2015, aos 15 anos — a sua criação artística assemelhou-se a uma erupção violenta em que assomam o amor, a dor, a morte e Deus. Se estes eram temas já recorrentes na sua obra, agora Nick Cave sintetiza o que o guia: “Assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está.”
No livroFé, Esperança e Carnificina, o australiano reconhece: “As canções que escrevo hoje em dia tendem a ser canções religiosas no sentido mais lato do termo. Essas canções comportam-se como se Deus existisse. Essencialmente, argumentam a favor da própria crença, pese embora sejam às vezes ambivalentes ou inconsistentes quanto à existência de Deus.”
E que Deus é este, então? Há tempos, na troca de correspondência com os fãs, à pergunta “o que é Deus?”, a resposta foi assertiva: “Deus é amor”, adiantando que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. E demora-se a explicar: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos dessa ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”
O coração partido revela-se de muitos modos. E neste caso salva — como a música, já se sabe. “Para mim, a canção de amor existe, em última análise, para preencher o silêncio entre nós e Deus, para diminuir a distância entre o temporal e o divino.”
Está instalado o debate – e o medo e a incerteza e a ignorância e a excitação. Tudo à vez, e tudo em separado: a inteligência artificial, que já anda cá há bastante tempo, irrompeu no nosso quotidiano como uma ferramenta ao alcance de todos. Já não é da ordem da ficção, já não é uma coisa de filmes (AI – Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, é de 2001), é obra para nos inquietar.
OChatGPTé uma dessas ferramentas mais reconhecíveis, mas nestas coisas logo se multiplicam que nem cogumelos, e para todos os gostos: os imediatamente comestíveis, aqueles que exigem domínio, nas mais variadas áreas. Filmes, canções, entradas de enciclopédia, até livros ou notícias, eventualmente remissões e orações, são passíveis de criação pela chamada inteligência artificial.
Perante este novo mundo, fica a dúvida se será admirável, como descrevia Aldous Huxley em 1932. Antecipa-se a extinção de profissões, uma artificialização da criação. Será assim? Um dos mais estimulantes criadores modernos na música atual, o islandês Ólafur Arnalds, que faz uso abundante de maquinaria e sons eletrónicos, mesmo nas suas produções mais ambientais ou sinfónicas (só para facilitar a leitura), enfrenta a questão, numa conversa no final de um concerto registadona paisagem seca de Hafursey, um inselbergue na Islândia.
Para um compositor que afasta a vontade de se aborrecer a fazer o que faz e ficar amarrado a uma só coisa, a inteligência artificial “começa a tornar-se um problema”. “Já se está a tornar um problema, mas é mais um problema para a indústria do que para mim, enquanto artista.”
Ólafur Arnalds explica aquilo que é a diferença entre cópia e o criador. “A arte não é apenas a música, tem de ter um sentido, tem de ter um propósito. Claro que a inteligência artificial pode copiar a minha música dentro de cinco anos, mas a inteligência artificial não está a tentar dizer-te nada, não tem nenhuma mensagem para ti, é só uma cópia, não há nenhuma originalidade, não há qualquer substância nem nenhum sentido — e isso é o que procuramos na música, é uma ligação humana, do que sentimos através das mensagens e das expressões, do que vivemos, como eu a tocar o piano aqui, é uma ligação entre mim e ti. A inteligência artificial é apenas uma cópia disto tudo.”
(O islandês fala sempre em “AI”, acrónimo para inteligência artificial, sem necessidade de tradução. Até com este artifício, a inteligência artificial parece querer poupar-nos tempo, simplificando…)
Um fã de Nick Cave — e desculpem-me regressar a ele, mas por estes tempos o músico australiano é também um dos mais interessantes a refletir sobre a arte e a criação — propôs-lhe uma letra “à Nick Cave”, feita com recurso aoChatGPT. Para o frontman dos Bad Seeds, esta letra é “uma porcaria”. Cave notou, nesse texto de 17 de janeiro, que “oChatGPTestá apenas na sua infância, mas talvez esse seja o horror emergente da IA — o de que estará sempre na sua infância, pois terá que ir sempre mais longe e essa direção é sempre para frente, sempre mais rápida. Nunca pode ser revertida ou desacelerada, pois move-nos em direção a um futuro utópico, talvez, ou à nossa destruição total. Quem pode dizer qual?” À sua questão, Nick antecipa a resposta: “A julgar por essa música ‘ao estilo de Nick Cave’, não parece bom.” assume: “O apocalipse está a caminho. Essa música é uma porcaria.”
Mais tarde, em março, numa entrevista àNew Yorker, Nick Cave surpreende-se por “haver pessoas inteligentes que acham o ato criativo tão mundano, que pode ser replicado por uma máquina”. “Sinto-me insultado por isso.” Para este artífice da música, os artifícios da criação são outros: “Não há nenhum motivo para se inventar uma tecnologia que possa imitar o ato criativo mais belo e misterioso. Especialmente no que toca a escrever canções. O que há de bom em compor uma canção, é que te diz algo sobre ti que não sabias antes. Não dá para imitar isso.”
Num futuro próximo, já ao virar da esquina, o caminho da criação e da criatividade poderá tropeçar em muita fake art ou em mais fake news. Mas nenhuma inteligência artificial substituirá a visceralidade das composições de Ólafur Arnalds ou Nick Cave, e de tantos e tantos outros artífices. Nada mais óbvio, nada mais humano.
O convite chegou por email – Virginia Astley anunciava (para o último domingo, dia 15) uma Listening Party do seu novo disco, apresentado na véspera de surpresa, na sua página no Bandcamp. The Singing Places é o título para um conjunto de composições que encontra fortes ecos na sonoridade encantatória de From Gardens Where We Feel Secure, obra-prima absoluta de 1983.
Quarenta anos depois, os jardins dão lugar a singing places, um termo que a compositora e música britânica usa “para lugares que têm uma ressonância particular — seja emocional ou acústica, ou ambas!”
Esta foi uma das breves explicações de Virginia Astley às perguntas que lhe foram sendo colocadas, ao longo da audição do (curto) disco de 26’30”, por fãs visivelmente entusiasmados – com o trabalho atual e, sobretudo, com as memórias de obras antigas. Havia aqueles que diziam estar a preparar-se para dormir, havia quem fizesse o jantar, quem escrevesse de Nápoles, em Itália, ou algures no americano Milwaukee, numa tarde em que a chuva tinha parado momentos antes.
As palavras eram sobretudo de alegria pelo novo trabalho – e a quem perguntou por uma eventual edição física, Virginia Astley prometeu: “Estou a planear lançar The Singing Places em CD e vinil.” A audição conjunta foi uma forma de perceber como reagiam os ouvintes ao novo trabalho, confessou a própria.
Virginia deixou ainda outra promessa, quando questionada por mim sobre se pensa gravar um disco de canções, como o notável Hope In a Darkened Heart (1986), no qual participaram David Sylvian e Ryuichi Sakamoto: “Eu gostaria muito de fazer novamente um álbum de músicas!”
Na sua serenidade deliciosa, The Singing Places percorre os melancólicos caminhos familiares de From Gardens… Há pássaros que voam, os sinos da abadia de Dorchester, as águas de um rio, a chuva provavelmente gravada em Lechlade – quase se adivinha um outono de folhas caídas, naquelas margens. “As gravações de campo foram feitas em primeiro lugar”, explicou Astley. “A música é então escrita em torno delas.” A primeira gravação no terreno foi realizada em Moulsford, Oxfordshire. O campo impregna-se, por entre a trompa barítono, a harpa da filha Florence ou harmónios. Quando se ouvem pássaros, é Virginia que se entusiasma, explicando aos seus ouvintes: “Os abibes que estão a chegar são de Shifford.”
É também Astley que enquadra a imagem da capa: “A capa do álbum é Kelmscott – foi aqui que [o poeta e romancista inglês] William Morris viveu, o seu paraíso na terra.” Se há um qualquer paraíso na terra, o trabalho de Virginia Astley vai escrevendo parte da sua banda sonora. E o outono mora aqui.
Artigo originalmente publicado no Sete Margens, em 16 de outubro de 2023. Foto: “A capa do álbum é Kelmscott – foi aqui que [o poeta e romancista inglês] William Morris viveu, o seu paraíso na terra”, explicou Virginia Astley.
Os gostos discutem-se, não se impõem, que é coisa diferente. Mas, na hora da verdade, acabamos por querer impor os gostos uns aos outros, “tens de ouvir isto” – e gostar, subentende-se. A música tem esta coisa gregária de nos juntar a estranhos e mais ou menos conhecidos, para celebrar, em conjunto, aquelas palavras e aqueles sons. Mas quando ouço falar em música cristã, a minha tentação é de fugir como o diabo da cruz. Não é por mal, é mesmo por gosto.
Nos dias da Jornada Mundial da Juventude, em agosto, pude ir confirmando aqui e ali a minha tese: no palco, havia púlpito a mais, sem rasgo ou criatividade, num aceno a um pop-folk de guitarras dedilhadas e bateria dengosa (e todos, algures, transformaram Simon & Garfunkel e Bob Dylan em baladinhas com poesia de mastigação fácil) ou um rock-fm daquele que acha que os solos de guitarra se fizeram para se estenderem até ao céu, intermináveis. Tomo o todo pelas partes que ouvi, mas facilita ao que venho.
Ryan Tremblayveio a Lisboa, nos dias da JMJ, e diz de si e da música que faz que “é em parte testemunho e em parte convite para quem quiser ouvir”. Em agosto,à Agência Ecclesia, o cantor americano de Nashville confessava-se: “Uma vez um padre meu amigo disse-me: As tuas canções têm mais poder que as minhas homilias. Porque as pessoas não saem a cantar as minhas homilias, mas cantam as tuas canções”, explicava o músico americano. Fui ouvir. As homilias do padre amigo devem ser mesmo muito fraquinhas. Sem pôr em causa a sua entrega: “Rimo-nos frequentemente, temos grande alegria no que fazemos e esforçamo-nos por criar uma atmosfera onde todos os presentes, incluindo nós, se possam lembrar de deixar um pequeno espaço nas nossas vidas para que a graça de Deus nos inunde mais uma vez. Esse é o objetivo de cada apresentação.”
Apesar da transcendência que se sente, a solução não é o regresso ao canto gregoriano, a Bach, Mozart, Monteverdi ou Brahms — ou apenas reutilizar a fórmula de Taizé, que traz uma beleza muito própria. A solução talvez seja mesmo seguir as pisadas de um grupo de gente com raízes em igrejas evangélicas.
Com a graça de Deus, vários músicos apresentaram-se em pleno século XXI a meio caminho entre o palco e o púlpito: assumidamente cristãos, acolitaram-se naeditora FlorCaveira, com o mote “Religião & Panque Roque”,fundada por um pastor batista, Tiago Cavaco, e pelo seu amigo Samuel Úria. A sua carteira de edições é muito respeitável: Tiago Cavaco, que já assinou como Tiago Guillul e integra Os Lacraus e outros projetos, mas também Úria, Jónatas Pires, Manuel Fúria, Diabo na Cruz, B Fachada, João Coração ou Os Pontos Negros, entre outros. Há coletâneas com títulos deliciosos comoCinco Subsídios para o Panque-Roque do SenhorouKaraoke no Mundo das Trevas, um “novo disco no dia da Reforma”, que se antecipava como “o disco, em forma de cassete, [que] sai no dia 31 de outubro [e] que é tanto Halloween como Reforma Protestante”.
Há uma certa heresia na ortodoxia destes evangélicos, na música e nas palavras: guitarras em distorção, canções mais gritadas que cantadas, vozes que sussurram amores impossíveis ou recordam as chamas do inferno, temas que dão pelo nome deToca XutosouSalmo 20,Um coração partido é um coração curadoouSinal da Cruz Invertida, ou versos que nos dizem “Conheci um velho chamado Nicodemos”. Lutero levantou-se de novo para promover uma reforma na música feita por cristãos.
O “trovador de patilhas”, como a própria editora descreve Samuel Úria,confessava numa entrevista para uma tese académica, em 2017: “Eu, apesar de ser duma religião protestante evangélica, não sou evangélico na minha música, mas a minha música reflete naturalmente aquilo que eu sou. A minha preocupação quando estou a escrever canções é ser fiel.” E ensaiava um credo novo, ao recusar uma possível contradição entre os princípios do punk e a condição de protestante batista: “No final do século XX e início do século XXI, não há nada de mais anti-establishment do que uma pessoa falar abertamente das suas crenças e assumir-se dependente duma entidade superior. Nos nossos dias, possivelmente, este é o ato mais rebelde que se pode ter. E, por isso mesmo, é até olhado de lado, com alguma desconfiança. Embora isso hoje já esteja mais esbatido, a verdade é que eu próprio, durante algum tempo, senti bastante essa desconfiança. Portanto, não há nada mais punk, mais rebelde, do que remontar àquilo que, para muitas pessoas, é uma espécie de atitude e de ideário ultrapassados.”
Com Tiago Cavaco é um pouco diferente, mais prosélito. Tiago desce do púlpito da sua igreja para subir ao palco e converter os ouvidos de incautos e incréus. Apresentado,no seu perfil do Spotify, como um “pregador gospel do punk rock, falso tatuador, escritor português aspirante a americano, [que] começou a ensaiar as suas péssimas primeiras bandas grunge em 1992 [e] nunca mais parou. Em 1999 ele e alguns amigos criaram o selo FlorCaveira e desde então vêm fazendo discos, amigos e inimigos”. Haja fé. Como a que Samuel Úria professa: “As minhas questões de fé não são nem culturais, nem sociais. Eu simplesmente uso-as para fazer uma afirmação que julgo necessária.”
Talvez haja por aí alguma música dita católica que valha a pena, mas neste caso quis mesmo trazer-vos esta música que salta do púlpito para o palco, sem pedir licença, e entre a heresia e a ortodoxia nos põe a dançar e a pensar. E é isto que falta nas celebrações e missas católicas, como também nas iniciativas em que se pretende “passar uma mensagem”.Batam palmas na igreja.
Texto originalmente publicado no Ponto SJ, a 6 de outubro de 2023, com o títuloEntre o palco e o púlpito. Será que é recomendável a música (dita) cristã?, e republicado no SeteMargens com este título, a 15 de outubro. Na foto, retirada da página de Facebook da editora, músicos da FlorCaveira em palco (com Tiago Cavaco à direita). A editora define-se pelo mote “Religião & Panque Roque”.
Milan Kundera foi a minha companhia na viagem de comboio por uma certa Europa em 1988, de Aveiro a Oostmalle. Aos 16 anos, tinha sede de ler A Insustentável Leveza do Ser, antes do filme com que me apaixonei por Juliette Binoche. O livro ficou-me, gravado também na memória pelas imagens de Philip Kaufman, e depois percorri as estantes dos irmãos mais velhos em busca de A Brincadeira, A Imortalidade, o Livro do Riso e do Esquecimento ou a Valsa do Adeus. Houve outros, e também houve aquele tempo em que Kundera passou a ser alguém que devorei na juventude. Há autores que nos fazem viajar. Até na sua morte. Esta noite, o céu apresentou-se assim. E eu terei de regressar aos seus livros.
Há 20 anos, em 2003, cruzei-me com a Margarida Ferra no metro, que me falou com entusiasmo desse mundo novo que eram os blogues (ela que escrevia o bonito Ponto e Vírgula). Eram um fenómeno recente, havia umas quantas pessoas que já falavam disso nos meios de comunicação tradicionais, como Pacheco Pereira, que tinha iniciado o seu Abrupto, e mais uns jovens de direita que eram uma lufada de ar fresco numa direita órfã do Independente, Pedro Mexia, Pedro Lomba e João Pereira Coutinho, na Coluna Infame (que acabou com estrondo, seis dias depois de começar esta Cibertúlia) e outros de esquerda que faziam o Blog de Esquerda e com quem mais me identificava, pois claro.
A 4 de junho de 2003, depois da conversa entusiasmada no metro, resolvi experimentar como se fazia uma coisa dessas: inscrevi-me no blogspot e ensaiei uns rudimentos de html, e dei-lhe um nome. Cibertúlia. Foi este o nome que algures tínhamos (um grupo de amigos que gosta de falar de tudo e de nada) dado a uma troca regular de mails, nos finais dos anos 90, sobre tudo e sobre nada: foi aí que saudei o verão ("meus senhores, chegou o verão, minhas senhoras, obrigado"), foi aí que mantivemos intensa atividade em favor da independência de Timor-Leste… E em 2003, quando criei o blogue convoquei esses amigos. No início, uns quantos ainda escreveram por aqui, depois foi cada vez mais sendo o blogue de um só, mas sempre falando de tudo e de nada.
A Cibertúlia saltou do blogspot para o Sapo, numa contratação digna de um qualquer CR7, sem milhões envolvidos. A Cibertúlia trouxe-me novos amigos, velhas amizades, polémicas acesas, piadas pelo tempo fora, músicas e filmes, livros e viagens, e um arquivo cheio de caracteres e imagens. (E algumas saltaram para outro blogue, entretanto acabado.) Hoje, este blogue junta os caracteres que escrevi no tempo de jornalismo e os que vou escrevendo aqui e acolá, daí a sua irregularidade.
A Cibertúlia faz hoje 20 anos. Parece uma eternidade — e no entanto é apenas um dia.
A invasão da Ucrânia pela Rússia abre um capítulo novo na Europa do pós-Guerra. Pela primeira vez, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um Estado soberano é invadido por outro, com o poder russo a pretender aniquilar o país vizinho – Vladimir Putin disse que “a Ucrânia moderna é uma criação da Rússia”, negando assim que a Ucrânia possa existir como país independente.
Este novo capítulo de guerra tem como principal consequência uma militarização acentuada da Europa, em detrimento de um caminho para a paz e a necessária desmilitarização do mundo. É um recuo de décadas, aquele que se viveu no espaço [neste último ano].
Este é, no entanto, um “mundo moldado pela guerra”, na expressão de Margaret MacMillan, cujo livroGuerra – Como moldou a história da humanidade(ed. Temas e Debates, 2021) nos ajuda a melhor entender o que pode também estar em causa nestes dias de início de mais um conflito armado.
Na definição do teórico alemão Carl von Clausewitz, citado pela autora, “a guerra é um ato de violência destinado a obrigar o nosso adversário a cumprir a nossa vontade”. Está aí uma guerra que traduz bem esta definição e, independentemente de pensarmos sobre ela a cores, pode decidir-se a preto e branco (na expressão certeira de Pacheco Pereira), sobre de que lado se está.
[Abra-se um parêntesis pessoal, um pouco longo, para sublinhar o óbvio. Dizer não à guerra, não significa aceitar uma invasão ou, numa forma mais contida, encontrar uma justificação para essa invasão. Questionar a (pertença à) NATO, que é algo que se deve fazer, não significa colocar no mesmo patamar esta organização e um autocrata-agressor-invasor. Entender que os EUA têm um comportamento demasiadas vezes questionável e criticável, como aconteceu na guerra do Iraque (e na falácia montada das armas de destruição massiva), não nos pode levar a aceitar que uma democracia – a quem exigimos sempre mais – seja moralmente equiparada a uma autocracia e ditadura. Querer a paz não é a mesma coisa que aceitar que a culpa da invasão não é do agressor. Feche-se o parêntesis.]
Este livro parece, no entanto, subitamente desatualizado. A “Longa Paz”, como lhe chama a autora, que a Europa – e o mundo dito ocidental – experimentou, depois de 1945, apesar da guerra fratricida da antiga Jugoslávia, tropeçou nas malhas de um imperialismo bafiento dirigido por Vladimir Putin.
Isto da guerra será coisa de um só homem, de um regime ditatorial? Ou os seres humanos carregam consigo esta “mancha escura indelével”, com esta atração pelo abismo? MacMillan defende que a guerra moldou as sociedades humanas, criou os estados atuais, trouxe uma maior organização e uma ordem às civilizações, e socorre-se da História para o exemplificar. Questiona-se Margaret MacMillan se a “propensão” dos seres humanos para “travar guerras” vem da “avidez ou competição por recursos cada vez mais reduzidos”, ou de “vínculos biológicos e cultura partilhada para valorizarmos os nossos próprios grupos, sejam eles clãs ou nações, e temer os outros”. “A guerra é algo que não podemos deixar de travar ou algo que construímos por meio de ideias ou cultura?” Sem respostas consensuais, até hoje, procurar responder a estas perguntas pode ajudar a “evitar conflitos futuros”.
O “paradoxo da bondade”
Hoje, num “paradoxo da bondade”, título de uma obra do antropólogo Richard Wrangham, que MacMillan cita, os homens e mulheres foram ficando mais amáveis mas também melhores a matar e numa escala mais ampla. Apesar do otimismo, sugerido por académicos, de que o homem tem vindo a matar menos (“mesmo tomando em consideração os grandes banhos de sangue das duas grandes guerras mundiais”), há números que continuam a lançar-nos numa depressão grande. E não é preciso estarmos sob os céus da Ucrânia.
A autora deGuerrasublinha que “um projeto de longa data realizado na Universidade de Uppsala, na Suécia, estima que, entre 1989 e 2017, mais de 2 milhões de pessoas morreram em consequência da guerra e, desde 1945, talvez 52 milhões foram obrigados a fugir em virtude de conflitos”. Ou seja, “a prevalência da violência e da guerra no passado e o facto de persistirem no presente suscita a questão incómoda de saber se os seres humanos têm uma programação genética para lutarem entre si”. Parece que esbarramos sempre na impossibilidade da paz (sim, o título deste texto encerra uma provocação).
MacMillan apresenta uma das linhas de investigação, que é a observação dos “nossos parentes mais próximos no reino animal: os chimpanzés e os bonobos”: os primeiros podem ser “brutais”, como definiu Jane Goodall (a famosa estudiosa de primatas), os segundos optam por “fazerem amor e não guerra”.
EmCondenação – A política da catástrofe, o conservador académico escocês Niall Ferguson argumenta que as guerras, artificiais e humanas, juntamente com as pandemias, foram “os maiores desastres da história humana”.
O professor de Harvard (comentador político que apoiou o Brexit, defendia uma colaboração próxima entre Trump, Putin e Xi, e gostava de ver Marine Le Pen na presidência francesa, por esta defender a saída da União Europeia) já tinha apresentado dois pesados volumes sobre a guerra:O Horror da Guerra 1914-1918(ed. portuguesa Temas e Debates, 2018), centrado na I Guerra Mundial, eA Guerra do Mundo – Uma Idade Histórica de Ódio(reed. portuguesa da Relógio d’Água, 2021).
Agora, emCondenação, muito marcado pela pandemia da covid-19, recupera a teoria do indiano Amartya Sen – Nobel da Economia, “pai” do microcrédito e com um reconhecido trabalho de investigação sobre a pobreza – de que as “grandes fomes” foram fruto de “governos impunes” e dos “colapsos evitáveis dos mercados”, e a “melhor cura” para estas catástrofes “era a democracia”. Questiona-se Ferguson, “porquê aplicar a lei de Sen só às fomes?” E ensaia outra abordagem: “Porque não visar a mais artificial e humana das catástrofes, a guerra?”
Citado por Niall Ferguson, Amartya Sen defende que “nunca na história do mundo nenhuma fome aconteceu numa democracia funcional”, porque os governos democráticos “têm de vencer eleições e enfrentar as críticas do público, e têm grandes incentivos para tomar medidas que evitem as fomes e outras catástrofes”. Exemplos não faltam: a “Grande Fome Irlandesa”, no final da década de 1840, as duas grandes fomes na Ucrânia soviética (1921-1923, 1932-1933) ou a fome provocada pelo “Grande Salto em Frente” de Mao Zedong na China (1959-1961).
Democracia não protege um país contra “desastres militares”
No caso das guerras, regista Ferguson, “é paradoxal que a transição dos impérios para os Estados-nação mais ou menos democráticos fosse acompanhada por tanta morte e destruição”. A Primeira Guerra Mundial aconteceu “porque os políticos e os generais de ambos os lados calcularam mal”. E, insiste o académico, “a guerra matou muito mais britânicos no século XX do que o nevoeiro, e ainda mais do que a fome”, para concluir que “é notável que a democracia fosse totalmente incapaz de impedir isso”. Apesar de se tratarem de democracias incompletas, na sua moderna aceção, Grã-Bretanha e Alemanha envolveram-se numa “guerra prolongada e muitíssimo sangrenta”. E as catástrofes nas guerras sucederam-se ao longo do século XX, o que leva Niall Ferguson a concluir que “a democracia pode proteger um país contra uma crise de fome; claramente, não protege contra desastres militares”.
Nos dias de hoje, com a Rússia a atemorizar todos os dias os países democráticos da Europa, recorrendo inclusive à ameaça nuclear, Ferguson parece ter razão. Já Margaret MacMillan argumenta que “o preço elevado de duas guerras mundiais deixou-nos sem vontade de alguma vez voltar a ver tais baixas” e que “poucas centenas de baixas parecem demasiadas, quando outrora aceitámos muitos milhares”.
“E no entanto… o Ocidente é apenas uma parte, e uma parte cada vez menor, do mundo e as suas prestações e valores não são necessariamente universais”, lembra MacMillan, para completar que esta “apreensão” com as perdas de vidas “não preocupou” outros líderes, da China ao Vietname, do Irão e Iraque ou “atores infraestatais”, como a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico, noutros conflitos pelo mundo. Agora, muito provavelmente a professora canadiana poderia juntar a Rússia de Putin, a esta lista de quem quer saber pouco das vidas que envolve nos seus jogos de poder e imperialismo.
Se Margaret MacMillan não antecipa emGuerraqualquer movimento de Vladimir Putin, como aquele que o presidente russo provocou nestes dias, a própria justifica-se: “As previsões acerca da forma futura da guerra são como apostar em cavalos ou adivinhar o caminho que a nova tecnologia irá seguir.” Ou o facto de que “as previsões feitas no passado sobre a guerra fornecem-nos uma história rica de pessoas que se equivocaram”, mas (avisada) “não deveríamos presumir que guerras importantes entre Estados já não são possíveis”.
A académica canadiana gosta do seu objeto de estudo – faz mover o mundo, argumenta, e por isso precisamos de estudar esse objeto, para “saber sobre as suas causas, o seu impacto, como lhe pôr termo e como a evitar. E, ao compreendermos a guerra, compreendemos algo sobre o ser humano, a nossa capacidade de nos organizarmos, as nossas emoções e as nossas ideias, e a nossa capacidade tanto para a crueldade como para o bem.” Mas tudo isto com uma certeza: “Não podemos deixar que se esfumem as recordações de guerra. Precisamos de lhe prestar atenção porque ela continua entre nós.”
Se ela está no meio de nós, está cada vez mais assustadora, com “novas armas aterradoras”, e MacMillan assusta-se e assusta-nos. “Não é o momento de nos desviarmos os olhos de algo que poderemos achar abominável. Temos, mais do que nunca, de refletir sobre a guerra.” Este fim do livro questiona-nos: como é?
O discurso pacifista ou em favor da desmilitarização perde terreno e atração. Qualquer possibilidade de refletir sobre a guerra esfuma-se em trincheiras difíceis de manter em tempo de discursos simplistas. O pior serviço prestado por Vladimir Putin e a atual clique dirigente na Rússia é fazer desmoronar as ténues tentativas de iniciar uma desmilitarização da Europa, de caminhar para uma pacificação séria do mundo – a Alemanha quebrou um tabu, ao apoiar militarmente um país estrangeiro, a Suécia e a Finlândia ponderam deixar cair a neutralidade e pedem um maior envolvimento com a NATO. Muitos (como Niall Ferguson) apontam o dedo ao contínuo desinvestimento no Reino Unido e na União Europeia em matéria de defesa e segurança (como se aquilo que se gasta em armamento não fosse sempre exagerado).
Abra-se um novo parêntesis. Na América Latina, a Costa Rica e, bem mais recentemente, o Panamá apostaram numa política de proteger a sua soberania sem forças armadas. Curiosamente, ou talvez não, a Costa Rica é o único país da América Central que não experimentou nunca uma guerra civil ou um crescendo de violência social e política no seu território.
Putin espalhou a insensatez do medo da guerra
Por muito que se defenda a paz, que se questione a pertença à NATO, que se queira a erradicação de forças armadas ou da indústria do armamento, neste momento, que garantias se podem dar a quem é invadido por um estado agressor cujo objetivo é a dizimação do país que atacou (Ucrânia, para já, e talvez outros)? Como se pode pedir a um estado agredido que não aumente também ele o seu armamento? Putin não armadilhou apenas a Ucrânia, espalhou a insensatez do medo da guerra pelo mundo e, em particular, pela Europa.
Uma sondagem muito recente diz que os europeus querem o aprofundamento da cooperação em matéria de segurança na União Europeia –o título é doPúblico. O inquérito realizado pelo Conselho Europeu das Relações Exteriores (ECRF, na sigla em inglês) em 12 países da UE, incluindo Portugal, ainda antes de eclodir a guerra na Ucrânia, “mostra que os cidadãos europeus valorizam a soberania europeia e a sua segurança”.
Os 15 mil cidadãos europeus de 12 estados-membros que foram auscultados consideram como “um ponto fundamental” a cooperação mais profunda nesta matéria de segurança. A paz e a não-violência perdem terreno, perante a ameaça concreta que uma ditadura como a de Putin representa. Apesar da chantagem, a resposta a dar pelas democracias é decisiva. A Cimeira de Versalhes, realizada a 10 de março, determinou um aumento “substancial” das despesas de Defesa dos estados-membros.
Tambémnas páginas doPúblico, o ensaísta António Guerreiro lembrava uma troca epistolar entre Einstein e Freud. O físico questionou o médico sobre se “existirá uma possibilidade de orientar o desenvolvimento psíquico do homem de maneira a torná-lo mais imune às psicoses de ódio e de destruição?”. Freud replicou: “Tudo o que promove o desenvolvimento da cultura, trabalha também contra a guerra.”
A paz será então possível, uma utopia demorada, apesar da provocação do título deste texto, e a inevitabilidade da guerra não tem de ser permanente, apesar da armadilha montada por Putin. Afinal, basta pensar nisto: António Guerreiro, na referida crónica, também recupera a “bem conhecida” resposta que Einstein deu, em 1948, quando lhe perguntaram como seria uma eventual Terceira Guerra. “Não sei como se fará a Terceira Guerra Mundial, mas posso dizer-vos o que será usado na quarta: pedras.”
Guerra– Como Moldou a História da Humanidade, de Margaret MacMillan Temas e Debates, 2021 400 pp., 19,90 €
Condenação– A Política da Catástrofe, de Niall Ferguson Temas e Debates, 2021 552 pp., 24,90 €
A guerra escreve-se de muitas maneiras. O jornalismo na sua arte maior pinta-se de imagens e palavras que nos transportam numa fração de segundos e numa frase única para aquele instante. É ver as 11 reportagens que valeram o prémio Pulitzer em Serviço Público a quatro jornalistas da Associated Press, e percorrer cada uma delas, nos seus textos, fotografias e vídeos, realizadas durante o cerco de Mariupol, cidade ucraniana, medievalmente atacada pelo exército russo de Putin.
De muitas fotos, tropecei nesta, da reportagem com o título 'Why? Why? Why?' Ukraine's Mariupol descends into despair, na qual dois jovens pais choram a morte do filho de 18 meses, num bombardeamento a um hospital (quem pode ainda justificar a invasão de um país e uma guerra, sempre imoral e violenta?). Ao longo destas reportagens, descobrimos muitas outras imagens, de uma guerra óbvia, brutais, violentas, dolorosas (como se pode ainda justificar a invasão de um país e uma guerra, sempre imoral e violenta?): há estilhaços, escombros, mortos, cobertores e sangue, há tanques e armas e ferimentos. E há sempre gente.
Esta reportagem até começa com uma descrição chocante (à falta de melhor palavra): "The bodies of the children all lie here, dumped into this narrow trench hastily dug into the frozen earth of Mariupol to the constant drumbeat of shelling." Mas esta fotografia, em concreto, desvela em todo o seu pudor (a porta entreaberta, o abraço de mãos dadas) a violência da guerra. A legenda aparenta uma fria factualidade, e no entanto sobressalta-nos tanto: "Marina Yatsko and her boyfriend Fedor comfort each other after her 18-month-old son Kirill was killed by shelling in a hospital in Mariupol, Ukraine, Friday, March 4, 2022. (AP Photo/Evgeniy Maloletka)"
Não sabemos mais sobre Marina e Fedor, mas nesta quase pietá moderna, há uma marca indelével: Kirill foi vítima de uma guerra injusta e injustificada. Como todas as guerras. Sabemos que a guerra escreve-se de muitas maneiras: aqui, em forma de espanto e pudor, pela câmara de Evgeniy Maloletka.
Junto às águas do Tejo, uma voz cristalina, exótica e lânguida, umas vezes sussurrada, outras solta, invocou espíritos em volta, as tágides vizinhas, xamãs e deidades de outros continentes, espíritos da floresta ou os deuses Bochica, Bachue e Furachogua, e a deusa-Lua Chia ou o deus-criador Chiminiguagua, resgatados a terras colombinas.
Lucrecia Dalt — é dela a voz da sacerdotisa — regressou a Lisboa (a 3 de abril) para encher com a sua sonoridade um mistério maior que é Ay!, o seu mais recente e espantoso disco, pretexto para a digressão que começou por cá (primeiro, nos Açores, Coimbra e Braga, e depois no palco lisboeta do B.Leza). Se Ay! foi o pretexto, Lucrecia navegou também pelas águas de discos anteriores, numa tensão crescente que dificilmente se fecha em categorias formatadas, entre a pop e o jazz, o experimentalismo e o ambient.
No concerto, Dalt juntou programações e teclas à voz, e a bateria e percussões de Alex Lázaro. Talvez fosse a proximidade da água, mas naquele palco o que se viu foi um concerto levantado do chão, também literalmente: o baterista e percussionista, praticamente sentado, emergia do palco, por entre uma árvore de instrumentos, enquanto Lucrecia abria socalcos em volta, entre Atemporal ou No tiempo, e criava tremores nos corpos que escutavam a música.
É desta mesma massa que se faz Ay!, o álbum de 2022, que descobri por um acaso de algoritmos — e que aprofunda as linguagens de discos anteriores como Anticlines ou No Era Sólida ou da banda sonora The Seed. Em Ay! há uma marca visceral que percorre estrias e canções, palavras e sons, em que a colombiana nos convoca para um transe encantatório. Foi assim no palco do B.Leza, é assim no seu mais recente disco. Há rituais para os quais gostamos de ser chamados.
Há quem goste de fazer crítica assim: somam-se nomes, uns mais conhecidos que outros, mas de preferência relativamente obscuros, citam-se uns quantos géneros musicais, classificações sempre elaboradas e intrincadas, como shoegaze ou neo-psychedelia, que nos remete para uma textura sónica e atmosférica (não inventei, está na wikipedia) — e já está. Brinco, um pouco a sério, mas não resisto ao exercício.
Comecemos por meter numa qualquer mesa de mistura The Sundays, Cocteau Twins, Mazzy Star, His Name is Alive ou Lana Del Rey e talvez descubramos “um dos mais curiosos nomes da nova vaga de dream pop californiana”, como li numa breve apresentação promocional do novo álbum de Winter, What Kind of Blue Are You?, o seu quarto longa-duração, lançado a 27 de janeiro, e o segundo com o selo da Bar/None. E podemos colar shoegaze ou neo-psychedelia a estas dez canções que não vai mal para a crítica de referências (o Spotify já se antecipou, constato mais tarde, e arruma Winter numa lista de “shoegaze now”).
Winter atira-nos para fins de tarde de verão, ou esta primavera quente, em que os corpos pedem praia mas o mar é de inverno e todos os cuidados são necessários: as correntes puxam mais do que os olhos veem, há agueiros traiçoeiros, e sabemos que é preferível a onda ao mar enganadoramente calmo, e as águas de abril ainda não fecharam o inverno.
A biografia ajuda a perceber esta misturada: Winter é Samira Winter, de Curitiba, filha de mãe brasileira e pai americano, que foi viver para Los Angeles e criou uma banda com nome invernoso em Boston.
Afinal de que tons azuis se fazem os nossos dias? Entre a delicadeza das guitarras de wish i knew (a canção de abertura; os temas do disco vão todos escritos em minúsculas), a alegria contida de atonement (com a colaboração de Hatchie) ou as distorções delicadas de good (a meias com SASAMI), e a voz que se lhes cola, mais ou menos deliciada, como em sunday ou lose you, e temos aquele mar de inverno a fazer-se de verão.
Dream pop? Confere: é a própria Winter que se apresenta no seu site como daydreamingwinter. Fez-se um bonito verão esta Winter.
Na hora da morte, as palavras tornam-se acessórias: duas datas num fundo de tonalidades cinzentas, 17 de janeiro de 1952 – 28 de março de 2023. E uma imagem que sobressai depois, um piano carcomido pelo tempo, deixado ao abandono, as teclas em sobressalto, gastas, velhas, partidas. E sem som algum a acompanhar – o silêncio é música, também na hora da morte.
Ryuichi Sakamoto morreu na terça-feira, dia 28 de março, soube-se no domingo, 2 de abril, e o anúncio foi feito daquele modo simplesnas suas páginas das redes sociais. Já se esperava: em 11 de dezembro, o compositor e músico japonês tinha dado um concerto para 30 países emstreaming, antecipando a sua última prestação “ao vivo” e um disco, anunciado para 17 de janeiro, data do seu aniversário.A doença minava-o.
Nesse dia, foi divulgado12, o nome do que é afinal o seu testamento, um novo disco de 12 canções, uma obra de quem sabia que a sua vida vivia o ocaso mas continuava a espantar-se e a espantar-nos com a beleza das coisas.
O disco pede recato, paciência e silêncio (como nesta hora do ocaso), numa “impressionante tapeçaria de teclados, elétricos e acústicos, misturando [música] ambiental e clássica”, “um soberbo ensaio introspetivo”, no qual Ryuichi “examina a morte”,como definiu o crítico daQobuz Magazine. O silêncio sempre a cair sobre este disco.
Este é um registo que mora bem mais próximo do que se espera da sua obra para cinema ou dos registos pop – da Yellow Magic Orchestra a discos comoNeo GeoouBeauty.Sakamoto é, para muitos, o piano e a composição deFeliz Natal, Mr. Lawrence, com David Sylvian a cantarForbidden Colours, uma das mais belas pérolas da pop, mas também o compositor de parte da banda sonora deO Último Imperadore das composições deUm Chá no Deserto/The Sheltering Sky, dois filmes de Bernardo Bertolucci.
Entre discos em nome próprio e bandas sonoras, o japonês também colaborou com muitos outros músicos, instrumentistas e compositores, como o músico alemão Alva Noto, com quem partilhou vários discos (notáveis), David Sylvian, com quem gravou um conjunto de canções extraordinárias (e já falámos deForbidden Colours), Virginia Astley, que reuniria Sylvian e Sakamoto no belo discoHope in a Darkened Heart, ou Jaques e Paula Morelenbaum, com quem partilhouCasa, um projeto com música de Tom Jobim (e Jaques também se junta a Sakamoto em1996eThree).
Muitos outros passaram pelo radar e pelos discos do japonês, como Robert Wyatt, Youssou N’Dour ou os Talking Heads – e todas estas referências são curtas.AoPúblico, em 2006, admitia: “Às vezes as colaborações são mais inspiradoras. Trabalhar com outros coloca-nos em confronto com aspetos de nós próprios que muitas vezes estão ocultos. É mais surpreendente.” Afinal, “compor para filmes, encetar colaborações ou criar álbuns a solo é o mesmo”.
O francês Claude Debussy era a sua influência, o seu “herói”, e disse-o até ao fim. “A música asiática influenciou fortemente Debussy, e Debussy influenciou-me fortemente. Assim, a música dá a volta ao mundo e fecha o círculo”,explicou-se em 2010. E com esta ideia o próprio foi definindo a sua música. Ao ouvir-se Ryuichi, nota-se que há uma forte curiosidade no seu percurso, há muita música do mundo, de vários mundos, há muitas vozes de tantas partes do globo, e o que se ouve é, na sua longa discografia, uma música que soube escutar e absorver sonoridades e foi ganhando um corpo próprio e uma voz única, fosse a solo, em orquestras,ensemblesou colaborações a dois.
Namesma entrevista aoPúblico, questionado sobre se o excesso de música no espaço público se tinha tornado no seu principal inimigo, dizia que era “possível”. E acrescentava: “No nosso estilo de vida, a música é mais um produto de consumo. O excesso de música faz com que estabeleçamos com ela uma relação de quase indiferença. Pelo excesso, nivelamo-la de igual forma – a boa e a medíocre. Precisamos de silêncio, como na peça [4’33”] que John Cage compôs nos anos 50. Não sei se estamos próximos desse espírito, mas há sombras de Cage a atravessar a nossa música. Temos que reaprender a ouvir. Saber estar no silêncio, é o princípio.”
Talvez tenha sido esta ideia, de reaprender a ouvir, que levou Sakamoto a abordar ochefde um restaurante japonês em Nova Iorque, onde ia com muita frequência quando vivia na cidade americana, para lhe sugerir que ele próprio faria aplaylist(sem cobrar por isso) do restaurante em Murray Hill, por não suportar o que ouvia durante as refeições.Ben Ratliff contou a história nas páginas doNew York Times, em 2018, e escrevia que não era tanto o facto de a música estar alta que incomodava Ryuichi, mas que a mesma “era irrefletida”.
Na descrição do jornalista, não havia temas de Sakamoto. Havia solistas de piano, “de várias tradições indistintas; algumas melodias que poderiam ter sido composições de bandas sonoras de filmes; um pouco de improvisação”. E acrescentava: “Onde havia voz, geralmente não era em inglês. Reconheci uma faixa do discoNative Dancerde Wayne Shorter, com Milton Nascimento, e uma pianista que soava como Mary Lou Williams, embora não tivesse a certeza. Não era uma música que estabelecesse uma marca, ou do tipo que dá vontade de gastar dinheiro; representava o profundo conhecimento, a sensibilidade e as idiossincrasias de um cliente dedicado. Eu senti-me espantado e acolhido com sensibilidade. Senti-me em êxtase.”
Sakamoto preferia o silêncio, ou fugir dos sítios onde não gostava da música que ouvia. No seu caso, dois cancros na última década – um primeiro, na garganta, de que recuperou, e um segundo no intestino – foram prolongando os seus tempos de silêncio. O disco que ouvimos em janeiro (e terá edição física nas próximas semanas) nasceu de quase um acaso, um esforço mais do compositor e músico, com os 12 temas a receberem o nome dos dias em que foram gravados.
“Depois de finalmente ‘voltar para casa’, para o meu novo alojamento temporário após uma grande operação, dei por mim a pegar no sintetizador. Não tinha intenção de compor algo, só queria ser inundado de som”,confessou. E inundou-nos de vida.Arigatō, Ryuichi.Sayōnara.
Esqueça o cliché da Veneza portuguesa, ainda que haja canais e barcos únicos. Não se queixe da dieta, ainda que haja ovos moles e muitos doces. Lembre-se que isto é património da humanidade, ainda que a UNESCO ande distraída.
Este texto de 2012 propunha um roteiro para 24 horas, ou mais, e está obviamente datado nas recomendações mais práticas - de restaurantes e bares, por exemplo, e até de empreitadas duvidosas que se anunciavam, mesmo que a cidade esteja ainda esburacada no Rossio para um parque de estacionamento ruinoso e a Avenida tenha sido tomada de assalto por obras de Santa Engrácia e dona estragação. Boas novas: a Maria da Apresentação já está posta também ao lado da Costeira. E há mil e uma outras coisas boas a fazer.
Ovos moles, caramujos e cartuchos, castanhas de ovos, lampreia de ovos, tripa de ovos ou com chocolate. Tome nota: 24 horas em Aveiro têm de incluir estes doces. Não se queixe da dieta que as calorias gastam-se a pedalar. O passeio que agora está a começar é de buga, que é como quem diz a bicicleta gratuita que o leva a (quase) todo o lado deste roteiro de um dia só. A cidade dos canais também pode ser vista de barco — mas falta-lhe a dimensão épica de Veneza, onde a água se intromete em todas as vielas e cantos — ou percorrida a pé, tarefa facilitada numa cidade plana.
Para chegar à terra de cagaréus e ceboleiros, o melhor é o comboio que permite ver logo à chegada a Estação da CP, edifício que em 1916 foi decorado com os azulejos que o tornaram um dos cartões de visita de Aveiro. Depois desça a pé "a Avenida", que não precisa de outro nome, até chegar ao antigo Cine-Teatro Avenida, onde a Oposição Democrática à ditadura de Salazar saiu à rua. É hoje um bingo.
Está perto da loja das bugas, onde pode recolher a bicicleta para passear. Para os ouvidos, banda sonora também há: a "Menina da Ria" que "encheu de elegante alegria" o baiano Caetano Veloso.
Depois já sabe, trilhe os seus roteiros. O das pastelarias, com montras de comer e chorar por mais. Na Avenida, que os aveirenses também chamam de Ramos, pare, veja e coma: cartuchos e caramujos. Há quem fique cheio só de olhar. Na Costeira, compre uma barrica de ovos moles, enquanto não chega à fábrica deles — nas ruas da Beira-Mar, antigo bairro de pescadores e marnotos — a de Maria da Apresentação e herdeiros, cujas partilhas se traduzem desde 1882 nas castanhas, nas broas e nos obos móis, também em hóstias com que, diz a lenda, a freira castigada por gula embrulhou os ovos e o açúcar.
Leve a bicicleta pela mão e perca-se até à Praça do Peixe, local a que voltará à noite — é aí a movida noturna aveirense, com bares de todas as bebidas e feitios, que transbordam para a rua. (Atenção ao Bucha e Estica, onde os copos como Laurel e Hardy engordam ou emagrecem.) Não estranhe que por aqui se meta em atalhos e tropece nos canais em que a ria namora a cidade. O Cais dos Botirões, a desaguar na praça, é o mais emblemático — nas cores refletidas na água.
Está próximo do Canal de S. Roque, por onde correm antigos barracões de sal, os salineiros ali encostados pela pouca serventia, que o sal hoje definhou, e os moliceiros que levam turistas sem o moliço que antes alimentava as hortas das populações anfíbias.
Vai acabar por chegar ao Rossio e ao Canal Central, entaipados para uma ponte de duvidosa utilidade e estética. Faça uma pausa para uma tripa (de ovos ou chocolate ou mista, e não pergunte o que são: coma!), na casa delas.
Mora ali também a Casa Major Pessoa, belíssimo objeto de arte nova (e museu), em que Caetano também notou.
A arquitetura da cidade não se reduz a este e mais alguns exemplares vizinhos de arte nova. O campo universitário é uma montra dos nomes maiores da arquitetura. Siza Vieira, Souto Moura, Carrilho da Graça, Gonçalo Byrne, Alcino Soutinho e muitos outros. Um catálogo vivo que se deita junto à ria que foi durante séculos vida e morte de Aveiro.
Esse é mesmo o último roteiro a fazer: explorar as redondezas, a ria de Norte a Sul, ver a obra de engenharia que foi a barra do porto, na Praia da Barra (e o seu Farol, o maior do país), a praia da Costa Nova e os seus palheiros às riscas, e São Jacinto das dunas.
A jornada pede alimento. Recomendações locais indicam O Batel ou O Marujo (declaração de interesses: não é da família), La Mamaroma ou a Pizzarte (ai os crepes de ovos moles!) e o hambúrguer do Ramona (fama local que merece o mundo). A noite pode ainda acabar no Olaria, um bar na antiga Fábrica Campos, de cerâmica. Se não derem 24 horas, use mais tempo. A UNESCO anda distraída, mas Aveiro é património da humanidade.
Em 1992, José Tolentino Mendonça assinou um manifesto que abalou a política e a Igreja da Madeira, na altura de João Jardim, esteve numa iniciativa contra a troika e achava que "o catolicismo sem uma inscrição à esquerda perde uma potencialidade profética que lhe é absolutamente indispensável". Recupero este texto de 2019, quando Tolentino foi elevado a cardeal.
Poeta e padre, teólogo e biblista, como tantos apresentam o novo cardeal português, José Tolentino Mendonça irrompeu com estrondo na política madeirense em 1992, quando um grupo de jovens padres da região - que incluía também o atual líder do PCP regional e ex-candidato presidencial, Edgar Silva - publicou um texto muito crítico do poder da época. Alberto João Jardim era então o senhor todo-poderoso da Madeira e Teodoro Faria o bispo tantas vezes acusado - como foi o caso desses padres - de acolitar o poder laranja.
Por entre as palavras que dão sentido à vida e fé de Tolentino Mendonça, esta é uma dimensão que nunca esteve ausente do seu discurso, mesmo que de forma discreta. O arcebispo, filho de pescador, que hoje é o arquivista e bibliotecário do Vaticano, colocou-se no lugar de fazedor de perguntas, em fevereiro de 2017, para questionar onde anda um "catolicismo de esquerda".
Num colóquio do Centro de Reflexão Cristã (que se assume como espaço de diálogo entre cristãos de diferentes sensibilidades e entre cristãos e não cristãos) sobre "católicos à esquerda", o novo cardeal preferia lançar dúvidas. "O meu papel é o de formular a pergunta. O que é hoje ser católico à esquerda em Portugal? E por que é que é tão difícil, tão rara, a presença pública de um catolicismo à esquerda, que também ajude a equilibrar a própria prática eclesial", apontava.
A preocupação tem uma razão de ser, na leitura de Tolentino: "Fazendo um diagnóstico da Igreja portuguesa, sente-se claramente um certo vazio, uma ausência de atores que possam trazer para o interior do debate eclesial um conjunto de questões que normalmente, geneticamente, estão associadas à esquerda, e essa ausência provoca um fechamento da Igreja ou um alheamento da Igreja em relação ao debate público."
Falando de Alfredo Bruto da Costa, ministro da Coordenação Social e dos Assuntos do governo de Maria de Lourdes Pintasilgo (em 1979), que se destacou no estudo da pobreza, como uma referência sua, também política, Tolentino é assertivo: "Acho que o catolicismo sem uma inscrição à esquerda perde uma potencialidade profética que lhe é absolutamente indispensável."
Se esta intervenção é de 2017, o tema permanece atual. Dizendo-se apenas uma "antena" que "fareja" a realidade, Tolentino Mendonça nota que, "sociologicamente, o catolicismo português é arrumado à direita" e, "quando se fala de uma sensibilidade católica", essa é "imediatamente" tida como "um alinhamento à direita, salvo raras exceções que são identificadas como aves raras no panorama político ou cultural".
Para o futuro cardeal, que será nomeado em 5 de outubro, isto é "um problema": "Parece que o catolicismo português contemporâneo está a gerar uma monocultura [em que] o alinhamento intelectual e político da maior parte do corpus dominante dos católicos vai à direita e que a esquerda se tornou um lugar esporádico de inscrição de cristãos e de cristãs, que possam fazer a partir daí um caminho de compromisso político e de diálogo com a sua fé. Os católicos à esquerda entraram numa espécie de clandestinidade - são clandestinos."
"Há uma nova geração que é capaz de uma militância à esquerda", regista, mas não sente "essa vitalidade à esquerda". "Acho que francamente é pena."
José Tolentino Mendonça diz que se há debate instalado com o atual Papa é este e estranha "que, na sociedade portuguesa, este debate ainda não tenha acontecido", apesar de notar que, à esquerda, há "uma aproximação ao Papa Francisco, uma citação permanente das suas palavras no espaço público", enquanto, num "certo setor colocado à direita", existe "um incómodo muito grande" com o bispo de Roma "e uma necessidade de estar sempre a traduzir o seu magistério, como se ele não falasse claro e fosse necessário mitigar o impacto do seu posicionamento e do seu magistério".
Entre as aves raras que intervêm à esquerda, de que fala o arcebispo, pode incluir-se Edgar Silva, que deixou o exercício sacerdotal em 1997 para se dedicar à política. Da Madeira, onde anda em campanha para as eleições regionais de 22 de setembro, Edgar Silva recorda ao DN o vínculo que Tolentino mantém com a região. "Ele sente muito esta necessidade de regressar sempre ao chão a que pertence, a este chão vulcânico."
"Sermão ao Jardim dos pecados"
Edgar Silva recua a 1992 para contextualizar o manifesto Mais Democracia, Melhor Democracia, que indispôs Alberto João Jardim e o bispo do Funchal, Teodoro Faria. "É um documento que faz parte de uma sequência de documentos, ainda éramos estudantes de Teologia e depois padres", explica.
Aquele que hoje lidera o PCP madeirense lembra que todos os anos esse grupo de dez jovens, às vezes mais, se juntava, em julho ou agosto, no Porto Santo ou no Funchal, para uma semana de reflexão, onde discutiam a "realidade regional, a situação social, política e cultural, o estado da Igreja e os desafios para a Igreja". De cada uma dessas semanas de verão foram saindo documentos, "preocupações com a situação pastoral" da Igreja local ou "desafios que o Concílio [Vaticano II] colocava à diocese do Funchal".
Nesses anos, Edgar Silva identifica três textos "de teor mais político", incluindo o de 1992, que bebia na doutrina social da Igreja e na realidade social concreta da região. "Foi o que teve maior impacto político e mediático", aponta. O Expresso (22-8-1992) apelidava-o de "sermão ao Jardim dos pecados".
Alberto João não gostou, enviando recados ao bispo. O então presidente do governo regional disse, lembra-se Edgar, que "esta gente não tem perdão", questionando o que faria o prelado aos dez padres. "A pressão foi muito forte e o bispo chamou um conjunto de subscritores para os inquirir individualmente." Teodoro Faria aproveitou as movimentações pastorais para "tentar dispersar ao máximo o grupo", colocando alguns em paróquias mais afastadas ou difíceis. Alberto João dizia, no Telejornal regional, que o desenvolvimento "tem de ser feito com medidas económicas e não com poesia".
Os jovens padres pediam que "o debate seja estimulado e não evitado; que os direitos de oposição e de discordância sejam considerados aspetos essenciais da democracia; que, em consequência, a unanimidade não seja erigida em valor ou objetivo final de uma sociedade democrática". A poesia era de facto outra aos ouvidos de Jardim.
Tolentino Mendonça estava em Roma, a estudar, mas assinava o documento, juntamente com Edgar Silva, que também já tinha seguido para Lisboa, onde acompanhava o Movimento Católico de Estudantes, e outros oito padres, incluindo Francisco Caldeira, Paulo Silva e Rui Nunes de Sousa.
Hoje, como em 1992, Tolentino Mendonça "acompanha de forma muito direta a situação da sua terra", sempre "de forma muito contextualizada", confirma Edgar Silva, que o vai encontrando na ilha. "É um dever de fidelidade, e ele tem isso presente, é quase identitário."
É a atenção de quem "tem um gosto particular em fazer pontes", que o faz estar "com pessoas que não têm as mesmas convicções ou a mesma visão do mundo", como o definiu Pedro Mexia ao DN. Tudo somado, não espanta que Tolentino tenha participado, em 2013, numa conferência à esquerda contra o governo PSD-CDS, falando sobre "A situação da Cultura em Portugal".
Eram tempos de troika e os seus subscritores denunciavam "as opções, os conteúdos e as consequências de uma orientação política que vem arrastando o país para uma dependência crescente, avolumando injustiças e desigualdades, hipotecando as suas possibilidades de crescimento, estrangulando o presente e comprometendo o futuro das jovens gerações". Tolentino também esteve lá.
PERFIL
O cardeal português é um reconhecido poeta, biblista e teólogo. Desde 5 de outubro de 2019 tem lugar no Colégio Cardinalício.
O MADEIRENSE José Tolentino Mendonça nasceu em 15 de dezembro de 1965, no Machico, na ilha da Madeira. Cresceu no Lobito, Angola, onde viveu com a família até aos 11 anos e onde o pai era pescador.
O POETA O novo cardeal é um homem das letras desde muito novo. Escreveu textos no antigo DN Jovem, no qual antecipava: "Não quero ser escritor, quero ser feliz." Mas é poeta, escritor e ensaísta, autor de mais de 20 livros desde Os Dias Contados (1990).
O PADRE Ordenado padre em 1990, estudou Ciências Bíblicas em Roma. Regressou a Lisboa, foi capelão e, mais tarde, vice-reitor na Católica, dirigiu o Secretariado da Pastoral da Cultura. Chegou ao Vaticano como consultor do Conselho Pontifício da Cultura. Elevado a arcebispo titular de Suava, é bibliotecário e arquivista da Santa Sé desde 2018.
Nós os vencidos do catolicismo que não sabemos já donde a luz mana haurimos o perdido misticismo nos acordes dos carmina burana
Nós que perdemos na luta da fé não é que no mais fundo não creiamos mas não lutamos já firmes e a pé nem nada impomos do que duvidamos Já nenhum garizim nos chega agora depois de ouvir como a samaritana que em espírito e verdade é que se adora Deixem-me ouvir os carmina burana
Nesta vida é que nós acreditamos e no homem que dizem que criaste se temos o que temos o jogamos «Meu deus meu deus porque me abandonaste?» Ruy Belo, Nós os vencidos do catolicismo
Roubo o título para este texto ao poema de Ruy Belo e a um livro de memórias de João Bénard da Costa, que nos tumultuosos anos 1960, num país mergulhado numa guerra injusta e obscena e amarrado a uma ditadura podre e miserável, perderam a fé (Ruy Belo) ou apenas a esperança (Bénard da Costa), vencidos por uma Igreja velha, autoritária e que ia de mãos dadas com o mais obscuro e imoral regime, o Estado Novo. Deixaram de lutar, perderam-se na luta da fé. Talvez como eu, sim, nestes tempos mais recentes, que me sinto soçobrar nesta incredulidade que toma conta de todos, uma revolta que se instala.
Nas últimas décadas, íamos ouvindo com crescente apreensão os relatos, os números e as denúncias de casos de abusos sexuais na Igreja, vindas de outras partes do mundo, na Irlanda e nos Estados Unidos, na Austrália e no Chile, em França e Espanha, na Itália e na Alemanha. Era lá longe, acreditávamos que haveria uma qualquer exceção portuguesa. Não havia, nem nunca houve – e tivemos alguns alertas num passado recente, como o caso do padre Frederico na Madeira, no qual o bispo do Funchal de então não teve qualquer pudor em comparar a prisão do seu secretário pessoal à prisão e morte de Jesus Cristo. Outro tipo de ocultação, numa clara manifestação de um autoritarismo clerical.
Os casos lá fora destaparam uma realidade ignóbil, absolutamente oposta ao Evangelho. A defesa da vida que tantos bispos, padres e leigos gostam de bater no peito, batia de frente com a maior afronta à vida. A comunicação social avançou com investigações que forçaram aquilo que muitos bispos não queriam assumir, mantendo um discurso (por vezes patético, como algumas das declarações do bispo do Porto, Manuel Linda, por exemplo) de excecionalidade.
A necessidade de varrer a história, as sacristias, os confessionários, perscrutar abusos, romper com um ciclo imoral, encontrou eco na corajosa decisão (e honra seja feita ao homem que a impôs, o bispo José Ornelas) de constituir a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que produziu agora um relatório demolidor: 4815 crianças foram identificadas como vítimas de abusos na Igreja entre 1950 e 2022, e este é o número mínimo. Terão sido muitas mais.
O que sobra desta montanha de escombros é a necessidade profunda de rever esta Igreja (ia a escrever que somos, mas sinto-me vencido, como aqueles católicos dos anos 60). A Comissão Independente deixa importantes propostas para o futuro, para a Igreja e para a justiça. Eu prefiro insistir no óbvio, na necessidade de recuperar uma pequena centelha na credibilidade de uma comunidade que me acompanha desde sempre. Para não me sentir um vencido para toda a vida.
A revisão da formação nos seminários é um dos caminhos apontados, mas esta é, por si só, curta e inconsequente. Nunca será suficiente retirá-los da redoma em que vivem e na qual crescem. A sexualidade tem, de uma vez por todas, de ser vivida de forma totalmente diferente, aberta, sem condicionantes nem celibatos, sem pecado e sem estigma. Pecado e estigma é tudo isto que agora nos foi apresentado. E a moral sexual que o Magistério nos tenta impingir há décadas está não só ultrapassada pela prática da grande maioria dos católicos (graças a Deus), como permanece fechada num armário de perversão, omissão e pecado, sem qualquer ligação à vida concreta das pessoas, à responsabilidade individual de cada um dos indivíduos, homens, mulheres, jovens, crianças, em que a igualdade de género e a forma como se vive a sexualidade é motivo de acolhimento e partilha, nunca de exclusão.
Há já 30 anos, em setembro de 1993, um grupo de mais de uma centena de jovens católicos estudantes criticou substantivamente a doutrina da Igreja no campo da moral sexual. Ali não se falava desta dimensão tenebrosa que nos atinge por estes dias, mas antecipava-se o óbvio em matéria de sexualidade, do corpo e do desejo. “A inoperacionalidade [do] discurso oficial da Igreja [sobre moral sexual] advém da sua desarticulação com o real e, portanto, da sua inaplicabilidade. Resulta daqui a sua ausência de credibilidade tanto junto da comunidade cristã como perante a sociedade em geral. Mais ainda, entendemos que a utilização deste tipo de discurso, que tira partido das inseguranças e fragilidades das pessoas na sua vivência da sexualidade ao insistir em prescrições particulares, é uma manifestação de vontade de poder profundamente imoral.” Confrontámo-nos sempre “com um discurso sabre aspetos particulares e questões pontuais, com pretensões de universalidade, perenidade e de quase infalibilidade, dificultando o acesso aos valores e princípios que diz pretender afirmar”.
Hoje, confrontados que somos com esta “ponta do icebergue” (quase cinco mil crianças, em 70 anos, o número mínimo), gostávamos de ouvir mais do que um mero pedido de perdão. Lembrando que a formação de padres e religiosos se faz numa idade crucial para o crescimento pessoal, para a formação individual de cada um, impor a castração de uma vida sexual, plena e adulta, com um celibato forçado e artificial é perigoso. Já sei que há quem diga que não é o celibato que leva ao abuso de menores, mas viver um celibato imposto em idades centrais do desenvolvimento social e pessoal é distorcer essa vida, é introduzir uma anomalia e uma não-experiência que também ajuda à disfunção. Acabar com o celibato obrigatório é apenas um caminho, mas é necessário.
Ressalva importante: há muitos que experimentam e vivem um celibato consciente e sério, sendo assumido de forma muito válida para quem o deseja de coração.
As disfuncionalidades que encontramos na forma como se vive a sexualidade também se podem esconder por detrás do celibato, não sendo devidamente escrutinadas no tempo de formação. Uma vida celibatária – cujas implicações nem sempre são conscientes para o próprio – não pode ser validada, simplesmente, porque a pessoa está disponível para não ter relações sexuais e há uma superficialidade com que muitas vezes estes temas são tratados na formação. E, neste campo, o facto de tanto ser pecado e proibido, não ajuda a afrontar com claridade estas questões.
Outras estruturas de poder, como as das igrejas protestantes e evangélicas, não são minadas por tamanhos sismos. Dizem os números (e a ele se agarram muitos que protegem o celibato) que 80% dos casos de pedofilia e abuso de menores acontecem na família ou por próximos da família. Aqui podemos associar uma ideia que é muito cara à própria Igreja – a de comunidade, uma família ampla – onde as coisas se vivem em partilha, onde a autoridade clerical e eclesial (para incluir também professores de religião e moral, catequistas, chefes de escuteiros, etc.) se mantém muitas vezes intocável, apesar do Vaticano II, onde nos disseram que o bispo era tantocomo o leigo.
A dimensão desta tragédia explica-se ainda por uma cultura instalada de poder autoritário, em que a impunidade se instalou de forma obscena, uma expressão abjeta em que o padre é visto como a voz de deus – de um Deus que não é o dos cristãos. Esta autoridade insana é também terreno fértil para semear uma sexualidade pervertida.
Ouvir os testemunhos das vítimas não pode significar apenas uma comoção passageira, uma raiva servida em hora de telejornal. As pessoas que foram atormentadas por este pecado tremendo merecem mais. Merecem que a Igreja reformule a sua teoria e prática da sexualidade e do corpo, em que um certo discurso de defesa da vida se restringe apenas a uma motivação ideológica e partidária, sem cuidar que estas vidas destruídas o foram em nome de uma autoridade que desfez a comunidade que nos ensinaram que éramos. Nesta vida é que nós acreditamos e no homem que dizem que criaste se temos o que temos o jogamos «Meu deus meu deus porque me abandonaste?»
Este texto contou com a leitura atenta e crítica de fr. Carlos Maria Antunes, José Manuel Pureza e Nuno Alves. Originalmente publicado no SeteMargens, em 18 de fevereiro de 2023. Imagem: Infância. Abusos. Série “Childhood Fracture” (V), de Allen Vandever. Reproduzido de Wikimedia Commons.
Há 50 anos, aquele instante em que disse "peço a palavra" mudou a sua vida?
Sim, em alguma medida sim. Terá mudado a vida da gente da minha geração da Universidade de Coimbra porque foi o desencadear de uma grande e grave crise académica em Coimbra. Foi um momento tão forte na universidade. No fundo é uma greve às aulas e greve a exames, num momento de grande pressão política e simultaneamente de grande consciencialização política, numa altura e numa situação, em 1969, em Portugal, em que a Guerra Colonial tinha começado oito anos antes, estávamos num país pobre, subdesenvolvido, desigual, o grau de analfabetismo da ordem dos 33%, com uma Guerra Colonial, com uma ditadura.
Foi um momento muito forte da academia de Coimbra. Obrigou a mudar a vida de todos nós porque as opções que foram feitas - da greve às aulas, a greve a exames... Esta, por exemplo, tem uma coisa única: foi um momento coletivo, mas era um momento que implicava uma opção de natureza individual, e fazer a greve a exames implicava a perda de ano, eventualmente a incorporação militar, a perda de bolsas de estudo nalguns casos, os estudantes das ex-colónias com a perda das bolsas de estudo e eventualmente a impossibilidade de continuar os estudos em Portugal, aos brasileiros também...
E ir contra a vontade dos pais, em muitos casos.
Exatamente isso. O estudante não tem autonomia financeira e económica e dependia da vontade dos pais. Há um traço interessante em Coimbra... Coimbra é uma cidade universitária, 15% dos habitantes na altura eram estudantes universitários, nós éramos nove mil. Tudo o que se passava em Coimbra tinha muita força, mas um dos fatores que contribui para aquilo que foi único na vida da resistência à ditadura na universidade portuguesa - uma greve a exames -, foi o facto de 70% dos estudantes da Universidade de Coimbra serem de fora da região. Havia três universidades na altura, Porto, Lisboa e Coimbra - Lisboa tinha 13 mil na Universidade Clássica, uns dez ou oito mil no Técnico, Porto era mais pequeno, tinha uns oito mil. Contrariamente a Porto e Lisboa, que eram da ordem dos 50%, em Coimbra 70% eram de fora, o que lhes permitia ter uma maior distância em relação às pressões familiares, pressões sociais do meio em que estavam inseridos. E isso foi um fator muito importante, julgo eu, na decisão da greve a exames.
Naquele momento em que pediu a palavra, na altura ao Presidente Américo Tomás, imaginava que pudesse atear o rastilho que provocou?
Não (risos)! Isso foi absolutamente imprevisível. O ato de pedir a palavra foi decidido coletivamente na noite anterior, pelos meus colegas, foi feita a sugestão de pedir a palavra se houvesse condições para isso. Eu fui-me deitar, dormi mal nessa noite (risos), preocupado... Tinha mais ou menos previsto o que era previsto, com alguma angústia, devo dizer: "O que é que me vão fazer? Vão-me prender? Vão-me bater? Vão-me deixar falar? Vão abafar aquilo que vou dizer?"
Eu tinha decidido pedir a palavra, achava que era uma questão de honra. Tinham dito para pedir se tivesse condições, eu para mim iria criar as condições, estava com essa determinação. Mas a determinada altura comecei a pensar para mim: "Vou fazer isto, o que é que vai ficar deste gesto? Isto vai-se perder, porque é um ato de reivindicação dos estudantes de Direito a intervir na vida da sociedade." Mas entretanto começam a entrar os meus colegas, mil, mais de mil, e então a minha alma subiu. É um momento de grande tensão.
Naquela pausa de discursos, pede então a palavra.
Eu estou num momento de grande tensão, por um lado a imaginar que palavras ia usar. Estou de capa e batina que é para se saber que sou um estudante, a minha condição de estudante ser afirmada logo que me levantasse, saberem que era um estudante que estava a levantar-se... A maior parte daquela gente, os ministros, o Chefe do Estado, os chefes militares, as altas autoridades académicas, eclesiásticas, os pides, ninguém me conhecia.
Eu tinha de pedir a palavra de forma a que não seja uma provocação porque isto tem de ser visto como um exercício de uma legitimidade de pedir a palavra, por parte de um estudante, do presidente da Associação Académica, na circunstância, que é pedir a palavra em nome dos estudantes e quer fazê-lo de uma forma solene, firme, rigorosa, mas respeitando as regras da urbanidade, que era forçoso respeitar, era isso que eu queria.
Eu tinha a consciência de que os setores mais retrógrados, mais ultras, o fascismo mais duro, iam tentar colocar aquilo como uma arruaça, e eu tinha de pôr aquilo como um gesto de legitimidade do uso da palavra. Por isso, estou aqui numa grande indecisão de qual é o momento de pedir a palavra: falou o reitor, falou o decano da faculdade e a seguir ia falar o ministro das Obras Públicas, estava a soerguer-se e eu disse bem, "é aqui o meu momento", porque estou entre a universidade e o governo, era mais uma forma de evitar a leitura da provocação...
Quando me levanto, há uma salva de palmas brutal dos estudantes e eu digo: "Neste momento, em nome dos estudantes de Coimbra, peço a palavra a Vossa Excelência", qualquer coisa assim, e fico de pé. Aquela gente levanta-se toda, há uma salva de palmas dos estudantes, dentro e fora da sala, que é uma coisa impressionante, a minha alma voa, porque tinha cumprido a honra da academia, tinha conseguido vencer todas as resistências, o medo. O ambiente era difícil, estávamos em ditadura e o destino estava traçado para quem fizesse uma coisa dessas. Aos aplausos, há gritos de "fora! fora", dos fascistas, há um burburinho.
O Chefe do Estado Américo Tomás tem uma pausa, acho que fala com um ministro, assim um bocado indeciso, e faz-me um gesto e "mas agora fala o ministro das Obras Públicas". Eu sento-me e fico na dúvida se a palavra me seria dada. Nas declarações da PIDE, os tipos ficaram sempre com a ideia de que eu estava a tentar ludibriá-los, mas não era verdade. E depois constatei que muitos professores, no inquérito que foi instaurado, também ficaram na dúvida. E muitos dos meus colegas...
Aquele "mas agora" abre essa dúvida.
Sim, fiquei tanto na dúvida que fiquei a arquitetar mentalmente o que é que iria dizer. Eu tinha umas notas, ia falar dos 33% de analfabetos em Portugal, de uma universidade elitista, onde o número de pessoas que chegavam à universidade era muito pequeno, da degradação do país, de uma universidade arcaica, da juventude do país, era o que eu ia falar...
Estava a arquitetar mentalmente, acaba a falar o ministro e o Américo Tomás sai com toda a comitiva, abruptamente, e aí é que é um coro brutal, "queremos falar! queremos falar!", e eles saem com os pides à cotovelada. A malta estudante ia deixando-os passar mas sempre a dizer "queremos falar! queremos falar!" Eu estou dentro da sala, só ouço "queremos falar! queremos falar!", e depois começam outros ditos, "palhaços, fantoches".
Fico na sala, entram estudantes que dizem para falar e levanto-me, ponho-me de pé... E depois falei. E falou o Carlos Batista, da junta de delegados de Ciências; o Celso Cruzeiro e o Barros Moura, que nós considerámos a verdadeira inauguração do edifício. As autoridades do regime foram para uma sala, mas os altifalantes estavam ligados para o exterior, eles provavelmente ouviram aquilo que não queriam. (risos)
"Quando sou preso, há estudantes que os insultam, 'assassinos', 'fascistas'. E insultos menos adequados à luta política."
Acaba por passar essa noite na prisão?
Sim. Nessa noite eu estava na Associação Académica, estávamos todos muito satisfeitos, tinha sido um grande momento. Eu tinha dormido no dia anterior muito mal, e às duas eu disse que me ia deitar e temos a informação de que a PIDE estava a cercar as portas de saída da Associação Académica, havia agentes em todas as portas. Saem alguns estudantes para ver qual é a reação deles e não acontece nada. E às 02.00 eu saio com muitos estudantes, mulheres e homens, e dirigem-se-me uns sete agentes da PIDE, com um crachá e uma pistola, "é o sô fulano de tal, está preso, acompanhe-me à sede da PIDE" e lá fui. Quando sou preso, há estudantes que os insultam, "assassinos", "fascistas". E insultos menos adequados à luta política (risos) e sou interrogado durante a noite, "quem é que estava por trás", queriam saber...
Com ou sem violência?
Sem violência. A conversa era sobre quem estava por trás disto, que organização tínhamos. Nós não tínhamos organização nenhuma.
Eram os estudantes...
Eram, eram os estudantes.
Cinco dias depois, há estudantes que são suspensos.
São estudantes que eles consideravam os responsáveis. Na PIDE, inicia-se um processo-crime contra mim, um crime de segurança interna contra a honra e a consideração devida ao Chefe do Estado, que de acordo com o Código Penal, se fosse provado - e naturalmente era provado, eu tinha-me levantado em público contra o Chefe do Estado - dava prisão efetiva de um a três anos. Iniciaram logo o processo-crime, por ordem do diretor nacional da PIDE, Silva Pais. A 22 de abril, todos os estudantes da Direção-Geral, o Osvaldo de Castro, o Celso [Cruzeiro], a Fernanda Bernarda, o José Gil [Ferreira], o Matos Pereira, mais o delegado de Ciências, o Carlos Baptista, e o Barros Moura, que tinham falado na sessão - é uma sequência direta dos acontecimentos de 17 de abril.
Isso faz precipitar uma maior contestação?
Na noite em que sou preso, cerca de duas, três centenas de estudantes são barbaramente espancados na sede da PIDE. Coimbra era uma cidade muito noctívaga e, quando sou preso, a notícia correu muito célere, pelas repúblicas, pelas casas de estudantes. Passado um quarto de hora, meia hora, estavam duas, três centenas de estudantes à sede da PIDE e os tipos fazem uma carga violentíssima, com cães-polícias, sem qualquer aviso prévio. Foi muito chocante e revoltou muito a academia e durante a noite foram distribuídos comunicados por Coimbra a dar conta desses factos.
Entretanto, a 22, há essa suspensão desses oito estudantes que dá origem a uma assembleia magna, onde há grande participação de professores. A suspensão tinha sido decidida pelo ministro da Educação: suspensão de frequência das aulas e de todos os atos da universidade até apuramento das responsabilidades. Isto na prática significava a expulsão da universidade.
A assembleia magna decide-se por uma greve às aulas, transformando-as em debates e discussão sobre a situação da universidade. Nós defendíamos uma universidade nova e a greve é estrategicamente radical e taticamente moderada nos meios que utilizamos. A diferença de Coimbra. E daí ter sido a maior greve na universidade portuguesa, é porque foi uma greve de massas, a greve a exames com 85% de adesão dos estudantes da Universidade de Coimbra.
Note-se que se vive um período de transição, estamos em 1969, cai o Salazar e está Caetano e é talvez o primeiro momento em que Caetano acaba por revelar a identidade repressiva do regime [depois da sua posse]. A suspensão que nos é feita é contra mesmo as regras da ditadura, sem contraditório, não ouviram a outra parte, sem processo disciplinar.
Há uma inabilidade do ministro José Hermano Saraiva em lidar com tudo isto ou é apenas a faceta repressiva do regime?
É uma faceta, é a identidade repressiva do regime: ele é um homem autoritário, é um ultra, ele é o "quer, posso e mando". José Hermano Saraiva prestou um grande serviço à luta de Coimbra no dia 30 de abril, quando ao fim de dias, desde 17 de abril, ele vem fazer uma comunicação ao país, num período de ditadura, com censura...
... sem saber do que se passava.
Sem saber do que se passava e ele vem anunciar que a Universidade de Coimbra está desde o dia 17 de abril sujeita a grandes perturbações, agitadores, os estudantes não estudam, as famílias e tal... Vem fazer um apelo demagógico e termina com um ato impositivo, garante aos portugueses que a ordem será restabelecida.
Foi uma declaração de guerra forte. Que teve uma resposta brutal: no dia seguinte, numa assembleia magna, recrudesceu a movimentação estudantil, de tal forma que a greve às aulas continuou e o Saraiva vê-se na necessidade de, em 6 de maio, encerrar a Universidade de Coimbra, um gesto repressivo muito forte. E diz que só quando houver exames é que a universidade será reaberta e isso colocou-se a nós, o que quero fazer.
E decidiram-se pela greve aos exames?
É uma decisão lenta, muito maturada porque havia os que defendiam que se devia fazer um ato de repúdio, de relevo público. Mas tínhamos de garantir uma assembleia magna com muita gente, e tivemos seis mil. E no dia 2 de junho a universidade está cercada pela Guarda Republicana, com jipes com arame farpado, polícia a pé, a cavalo, estudantes a começarem a ser presos e a serem absolvidos no tribunal da comarca, acusados de um crime que era o de perturbarem exercícios fundamentais previstos na Constituição.
No fundo eram os piquetes de greve para evitar as idas aos exames, mas nunca condenaram ninguém porque isso implicava ser preso em flagrante delito. Mas isso nunca se verificou dada a velocidade dos piquetes, quando a polícia chegava (risos). Prenderam uma centena de estudantes. A Direção-Geral acabou por ser presa em agosto... E depois há a incorporação militar de 49 estudantes em outubro.
Pelo meio, há acontecimentos que têm muita importância na cidade de Coimbra: fazemos a operação Flor e a operação Balão, para conquistar a população; não se faz a Queima das Fitas, e explica-se à população porquê. A Queima das Fitas tinha uma importância brutal na vida comercial, nos serviços de Coimbra e nas contratações de artistas.
E temos também a felicidade da final da Taça de Portugal, Académica-Benfica, que é uma vitrina fantástica. Distribuímos 35 mil comunicados, passamos as tarjas no intervalo do jogo, a equipa da Académica, que era constituída esmagadoramente por estudantes universitários, estava de luto, e entraram com as capas em sinal de luto. O Tomás, o governo, os ministros, os secretários de Estado, ninguém apareceu e a TV também não transmitiu.
Depois há um regresso à normalidade?
Há uma delegação de Coimbra que é recebida pelo Chefe do Estado, cai o reitor, que é do regime, ultra, cai o ministro da Educação e vem o Veiga Simão e há um novo reitor, que aliás é um democrata, o professor Gouveia Monteiro. E a Associação Académica é reaberta... E a vida académica continua. Há um recuo brutal do governo, nessa altura.
Cinquenta anos depois há alguma mensagem daqueles dias que permanece?
Sim, acho que há muitas coisas: o fim da ditadura, o fim da Guerra Colonial, o fim de um país subdesenvolvido, isso foi alcançado. Agora, uma sociedade desenvolvida, economicamente sustentável, uma dimensão de realização da universidade, dos jovens, do sonho que vivia em cada um de nós, continua por cumprir. Mas isso é a ideia de que o essencial de 1969 foi o que o movimento gerou e esse movimento continua sempre: é o movimento da juventude, do sonho, de uma sociedade mais justa, menos desigual, mais solidária, que de alguma medida nós vivemos naqueles momentos. Que se projetam numa dimensão muito mais ampla, a nível local, nacional, planetário.
E 50 anos depois esta memória é tão presente que só pode ter sido muito marcante para si.
É um momento muito marcante. Tenho a noção de que cada um de nós, que estivemos em Coimbra nessa altura, e que estivemos do lado certo da história, viveu como um momento libertador e um momento galvanizante. E cada um de nós viveu numa dimensão própria. Sendo um movimento coletivo, foi também um movimento interior que nos interpelou muito, que nos obrigou a grandes decisões. Foram momentos duros, difíceis, mas foram também momentos de grande exaltação e de festa.