Fevereiro 04, 2004
Breviário Mediterrânico
Miguel Marujo
«Não sabemos ao certo até onde vai o Mediterrâneo, nem que parte do litoral ocupa, nem onde acaba, tanto em terra como no mar.» É assim que começa o belíssimo livro de Predrag Matvejevitch, que dá pelo nome de Breviário Mediterrânico. «Os sábios da Antiguidade ensinavam que os confins do Mediterrâneo se situam onde a oliveira se detém», continua. E o parágrafo termina com esta bela frase: «O Mediterrâneo não é apenas uma geografia.»
Aconselho profundamente o resto das 264 páginas, cheias de frases que mereceriam ser citadas e que lançariam ainda maior confusão sobre a tal gaffe do Príncipe da Noruega.
De facto, o PortugalDiário tem razão: do ponto de vista geográfico, Portugal não é banhado pelas águas do Mediterrâneo. Mas seria a isso que se referia o Príncipe? Não domino suficientemente a língua norueguesa (prometo perguntar ao meu irmão um dia destes), mas conheço várias línguas em que seriam facilmente confundíveis as ideias de "banhado pelo Mediterrâeno" e "mediterrânico".
Estou muito pouco preocupado em saber se o Príncipe cometeu ou não uma gaffe. Mas, a propósito, lanço a polémica: Portugal é ou não é um país mediterrânico?
Claro que faço esta pergunta com base nos pressupostos de que o Mediterrâneo não é apenas uma geografia, nem apenas uma história, o que equivale a dizer que as suas fronteiras não se inscrevem nem no espaço nem no tempo. Matvejevitch acrescenta: «Não são históricas, nem étnicas, nem nacionais, nem estatais: círculo de giz que se traça e se apaga constantemente, que ondas e ventos, obras e inspirações alargam ou restringem.»
«A Europa nasceu no Mediterrâneo». Hoje, há quem a queira encerrar aí, transformando o Mediterrâneo num muro que proteja os países ricos da União Europeia das hordas de nómadas da miséria: os albaneses que se dirijem a Itália através do Adriático ou os africanos que se dirijem a Espanha através do estreito de Gibraltar, são apenas dois exemplos.
Infelizmente, como nos lembra Bernard Ravenel na sua obra Méditerranée, l'impossible mur, a liberdade de movimentos e de cidadania existe apenas para as mercadorias e os capitais: «pour le reste, entre pays pauvres et pays riches est en train de s'élaborer une nouvelle science de la frontière, une nouvelle technologie de l'exclusion.»
Neste triste sentido, Portugal é, cada vez mais, um país mediterrânico. Ironicamente, do grupo dos ricos.
Mas contra esta imagem triste e descolorida, vale a pena lembrar que o Mediterrâneo, sendo o berço da Europa, é-o também do Magrebe; sendo o berço do cristianismo, é-o também do judaísmo e da islamismo; de Atenas e Roma, mas também de Jerusalém, Alexandria e Constantinopla; das artes gregas e do direito romano, mas também da ciência árabe; da poesia provençal e do renascimento italiano, mas também da cultura dos eslavos do sul (isto é, dos jugoslavos).
Limitar o Mediterrâneo à sua componente europeia/ocidental é «reduzir ou deformar o alcance e o conteúdo do Mediterrâneo.»
Neste sentido tão alegre e tão rico, Portugal parece, cada vez mais, não querer ser um país mediterrânico. Ironicamente, isso faz-nos mais pobres.
Aconselho profundamente o resto das 264 páginas, cheias de frases que mereceriam ser citadas e que lançariam ainda maior confusão sobre a tal gaffe do Príncipe da Noruega.
De facto, o PortugalDiário tem razão: do ponto de vista geográfico, Portugal não é banhado pelas águas do Mediterrâneo. Mas seria a isso que se referia o Príncipe? Não domino suficientemente a língua norueguesa (prometo perguntar ao meu irmão um dia destes), mas conheço várias línguas em que seriam facilmente confundíveis as ideias de "banhado pelo Mediterrâeno" e "mediterrânico".
Estou muito pouco preocupado em saber se o Príncipe cometeu ou não uma gaffe. Mas, a propósito, lanço a polémica: Portugal é ou não é um país mediterrânico?
Claro que faço esta pergunta com base nos pressupostos de que o Mediterrâneo não é apenas uma geografia, nem apenas uma história, o que equivale a dizer que as suas fronteiras não se inscrevem nem no espaço nem no tempo. Matvejevitch acrescenta: «Não são históricas, nem étnicas, nem nacionais, nem estatais: círculo de giz que se traça e se apaga constantemente, que ondas e ventos, obras e inspirações alargam ou restringem.»
«A Europa nasceu no Mediterrâneo». Hoje, há quem a queira encerrar aí, transformando o Mediterrâneo num muro que proteja os países ricos da União Europeia das hordas de nómadas da miséria: os albaneses que se dirijem a Itália através do Adriático ou os africanos que se dirijem a Espanha através do estreito de Gibraltar, são apenas dois exemplos.
Infelizmente, como nos lembra Bernard Ravenel na sua obra Méditerranée, l'impossible mur, a liberdade de movimentos e de cidadania existe apenas para as mercadorias e os capitais: «pour le reste, entre pays pauvres et pays riches est en train de s'élaborer une nouvelle science de la frontière, une nouvelle technologie de l'exclusion.»
Neste triste sentido, Portugal é, cada vez mais, um país mediterrânico. Ironicamente, do grupo dos ricos.
Mas contra esta imagem triste e descolorida, vale a pena lembrar que o Mediterrâneo, sendo o berço da Europa, é-o também do Magrebe; sendo o berço do cristianismo, é-o também do judaísmo e da islamismo; de Atenas e Roma, mas também de Jerusalém, Alexandria e Constantinopla; das artes gregas e do direito romano, mas também da ciência árabe; da poesia provençal e do renascimento italiano, mas também da cultura dos eslavos do sul (isto é, dos jugoslavos).
Limitar o Mediterrâneo à sua componente europeia/ocidental é «reduzir ou deformar o alcance e o conteúdo do Mediterrâneo.»
Neste sentido tão alegre e tão rico, Portugal parece, cada vez mais, não querer ser um país mediterrânico. Ironicamente, isso faz-nos mais pobres.