Outubro 16, 2004
Quem vai à guerra...
Miguel Marujo
[ou pode um cristão defender a guerra?]
Os comentários pertinentes de David, ao meu "post" sobre os algozes que decapitaram um refém no Iraque, obrigam-me a uma reflexão mais prolongada sobre o assunto.
Escreve-nos David (que assume a sua condição de cristão para também rebater os meus pontos de vista), que não consegue «em consciência descartar a possibilidade da guerra, da violência, como resolução extrema para algumas situações». E exemplifica com a II Guerra Mundial.
O argumentário da II Guerra Mundial foi usado à exaustão, no início desta segunda guerra do Golfo, por Bush e muitos dos seus seguidores, incluindo portugueses que imputaram quase exclusivamente a vitória contra a Alemanha nazi de Hitler aos Estados Unidos da América, omitindo ou desmerecendo da resistência organizada por toda a Europa e do contributo de todos os Aliados. Do que não temos dúvidas, é que Saddam não era Hitler, nem a liberdade do mundo estava em perigo, como em 1939.
Mas - e o que me interessa aqui, neste caso concreto do Iraque - é que a situação que se vivia ali não obrigava à «resolução extrema» da guerra. A ONU continuava a exercer a sua inspecção do possível armamento e a diplomacia - incluindo a vaticana - tentava a todo o custo "dobrar" Saddam. Não se tentou tudo, não se esgotaram todas as armas do diálogo e a invasão fez-se sob a capa de uma grosseira mentira e de uma impreparação negligente sobre o futuro do país.
Medir "sanguinários" não é um exercício numérico, como também agora alguns gostam de fazer. "Ele matou mais, ele matou menos" é o debate que não interessa. Qualquer pessoa que morra pelas suas convicções, por ser livre, às mãos de um qualquer ditador deve merecer a nossa luta. E a nossa vontade de combater esse ditador. Seja no Iraque de Saddam (quando foram chacinadas populações curdas, sem que a América ou o Ocidente gritasse a necessidade de o apear), seja no Chile de Pinochet ou na Argentina de Varela. Seja na União Soviética de Estaline ou no Cambodja de Pol Pot. No Portugal de Salazar ou na Espanha de Franco. Mas para combater cada uma destas situações, há hoje outras soluções que não a guerra.
Era então possível outro cenário? Era. E ao argumentário da guerra apetece opor outros exemplos, posteriores à II Guerra Mundial, que mostram que o mundo experimentou novos caminhos para a resolução de conflitos: a não-violência de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King, a revolução de veludo no Leste europeu ou a revolução do arco-íris de Mandela. E, numa escala diferente, a auto-determinação e independência de Timor-Leste, apesar da orgia de violência das tropas e milícias indonésias.
«A Lei aparece exactamente para terminar com a vingança pessoal», escreve-nos o David. Concordo. Mas aparece também para ser respeitada - e, neste caso do Iraque, Bush não o fez. Como não o fazem os algozes que todos os dias se fazem explodir em Bagdad ou Telavive, ou aqueles que decapitam reféns no Iraque ou ainda os outros que demolem casas e atacam bairros com mísseis teleguiados nos territórios ocupados por Israel.
Discordo apenas da leitura de que o "olho por olho" é a Lei, porventura demasiado dura, e de que Jesus não revogou algumas leis. Julgo que revogou, sim: dando outro sentido ao sábado ou dizendo que agora havia um mandamento novo.
Volto a insistir: «com clareza» definimos os agentes do Mal. E não os podemos deixar «impunes», nem «esquecer a Lei». «Profundamente imoral» parece-me fazer o jogo deles: entrar na espiral de violência que eles desejam para se afirmarem como vítimas e libertadores. Nunca podemos ficar pelas intenções. Mas à sombra destes "extremos" também se pratica(ra)m muitos e muitos crimes. Profundamente imorais (como Abu Ghraib ou Guantanamo).
Já aqui escrevi (em Maio): «De uma ditadura ou dos seus algozes, espera-se (quase) tudo. Mesmo um acto bárbaro e inqualificável, como a decapitação de um homem inocente... De uma democracia e dos seus representantes, espera-se outra coisa: o respeito pela liberdade, pelos direitos humanos e pelo direito internacional. Não faço comparações entre terroristas e as forças ocidentais que estão no Iraque, mas - num plano de legítimas expectativas - os actos de tortura dos soldados americanos ou a existência de Guantanamo tornam-se mais "censuráveis" que a decapitação daquele inocente americano. A guerra deve transfigurar as democracias. Por isso, a paz é o caminho. De mãos limpas.»
E os crentes - cristãos, judeus, muçulmanos, budistas,... - deviam estar sempre prontos a servir este outro caminho.
Os comentários pertinentes de David, ao meu "post" sobre os algozes que decapitaram um refém no Iraque, obrigam-me a uma reflexão mais prolongada sobre o assunto.
Escreve-nos David (que assume a sua condição de cristão para também rebater os meus pontos de vista), que não consegue «em consciência descartar a possibilidade da guerra, da violência, como resolução extrema para algumas situações». E exemplifica com a II Guerra Mundial.
O argumentário da II Guerra Mundial foi usado à exaustão, no início desta segunda guerra do Golfo, por Bush e muitos dos seus seguidores, incluindo portugueses que imputaram quase exclusivamente a vitória contra a Alemanha nazi de Hitler aos Estados Unidos da América, omitindo ou desmerecendo da resistência organizada por toda a Europa e do contributo de todos os Aliados. Do que não temos dúvidas, é que Saddam não era Hitler, nem a liberdade do mundo estava em perigo, como em 1939.
Mas - e o que me interessa aqui, neste caso concreto do Iraque - é que a situação que se vivia ali não obrigava à «resolução extrema» da guerra. A ONU continuava a exercer a sua inspecção do possível armamento e a diplomacia - incluindo a vaticana - tentava a todo o custo "dobrar" Saddam. Não se tentou tudo, não se esgotaram todas as armas do diálogo e a invasão fez-se sob a capa de uma grosseira mentira e de uma impreparação negligente sobre o futuro do país.
Medir "sanguinários" não é um exercício numérico, como também agora alguns gostam de fazer. "Ele matou mais, ele matou menos" é o debate que não interessa. Qualquer pessoa que morra pelas suas convicções, por ser livre, às mãos de um qualquer ditador deve merecer a nossa luta. E a nossa vontade de combater esse ditador. Seja no Iraque de Saddam (quando foram chacinadas populações curdas, sem que a América ou o Ocidente gritasse a necessidade de o apear), seja no Chile de Pinochet ou na Argentina de Varela. Seja na União Soviética de Estaline ou no Cambodja de Pol Pot. No Portugal de Salazar ou na Espanha de Franco. Mas para combater cada uma destas situações, há hoje outras soluções que não a guerra.
Era então possível outro cenário? Era. E ao argumentário da guerra apetece opor outros exemplos, posteriores à II Guerra Mundial, que mostram que o mundo experimentou novos caminhos para a resolução de conflitos: a não-violência de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King, a revolução de veludo no Leste europeu ou a revolução do arco-íris de Mandela. E, numa escala diferente, a auto-determinação e independência de Timor-Leste, apesar da orgia de violência das tropas e milícias indonésias.
«A Lei aparece exactamente para terminar com a vingança pessoal», escreve-nos o David. Concordo. Mas aparece também para ser respeitada - e, neste caso do Iraque, Bush não o fez. Como não o fazem os algozes que todos os dias se fazem explodir em Bagdad ou Telavive, ou aqueles que decapitam reféns no Iraque ou ainda os outros que demolem casas e atacam bairros com mísseis teleguiados nos territórios ocupados por Israel.
Discordo apenas da leitura de que o "olho por olho" é a Lei, porventura demasiado dura, e de que Jesus não revogou algumas leis. Julgo que revogou, sim: dando outro sentido ao sábado ou dizendo que agora havia um mandamento novo.
Volto a insistir: «com clareza» definimos os agentes do Mal. E não os podemos deixar «impunes», nem «esquecer a Lei». «Profundamente imoral» parece-me fazer o jogo deles: entrar na espiral de violência que eles desejam para se afirmarem como vítimas e libertadores. Nunca podemos ficar pelas intenções. Mas à sombra destes "extremos" também se pratica(ra)m muitos e muitos crimes. Profundamente imorais (como Abu Ghraib ou Guantanamo).
Já aqui escrevi (em Maio): «De uma ditadura ou dos seus algozes, espera-se (quase) tudo. Mesmo um acto bárbaro e inqualificável, como a decapitação de um homem inocente... De uma democracia e dos seus representantes, espera-se outra coisa: o respeito pela liberdade, pelos direitos humanos e pelo direito internacional. Não faço comparações entre terroristas e as forças ocidentais que estão no Iraque, mas - num plano de legítimas expectativas - os actos de tortura dos soldados americanos ou a existência de Guantanamo tornam-se mais "censuráveis" que a decapitação daquele inocente americano. A guerra deve transfigurar as democracias. Por isso, a paz é o caminho. De mãos limpas.»
E os crentes - cristãos, judeus, muçulmanos, budistas,... - deviam estar sempre prontos a servir este outro caminho.