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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Outubro 22, 2025

Quando uma bela voz só nos fala de ódio

Miguel Marujo

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Criança palestiniana com fome, na Faixa de Gaza. Foto © PAM/ONU

 

Com as redes sociais veio o advento da estrela de cinema, do músico ou da modelo estarem ali ao virar da página, um clique, um comentário, uma réplica — e a resposta dessa pessoa que antes não imaginávamos ao nosso alcance. Foi assim com pessoas da música, do cinema, da moda, da política, da televisão, portugueses e estrangeiros, uns e outros próximos de nós. Mas também foi assim que percebemos que estas pessoas tinham pés de barro, ou que eram feitos dos mesmos genes que tantos que só espumam raiva e ódio. Hoje, no Facebook, deixei de seguir uma das mais brilhantes cantoras deste país, uma mulher cuja voz admirava, mas que hoje faz da sua voz um instrumento de ódio.

O seu mural é todo ele ódio sionista e racista, empenhado em reescrever a História, sem conhecimentos e formação, e muito menos um qualquer pingo de empatia ou decência pelas quase 20.000 crianças palestinianas mortas pelo genocídio em curso na Faixa de Gaza. Para não falar das que vivem com fome e debaixo das bombas que não cessaram com o suposto acordo de paz. Para ela, são todos terroristas do Hamas, para ela todos estamos enganados com as violações dos direitos humanos, dos crimes de guerra e contra a humanidade, e com o facto daquela terra pertencer única e exclusivamente aos israelitas. As Nações Unidas são uma fantochada, as organizações de direitos humanos idem, historiadores judeus que não compram a cartilha de Netanyahu são desacreditados, e quem lamenta tamanha cegueira e indignidade, é corrido com emojis de palhaço e adjetivos vários. Triste figura.

O seu nome é Né Ladeiras, e tão cedo não conseguirei ouvir Alhur ou Corsária (álbum que em tempos sugeri para reedição ao radialista e promotor Henrique Amaro). “E no meio da noite uma ameaça traz-lhe a cada hora uma traição” — cantava ela nesse álbum, em Madrugada. Ela traiu a humanidade e a decência.

 

 

A música salva, mas neste caso resgato esta Prayer Of The Mothers (“Oração das Mães”), em hebraico, árabe e inglês, cantada por uma mulher israelita e outras mulheres, israelitas e palestinianas, que caminharam lado a lado para pedir a paz. Sem ódio. 

 

 

Outubro 14, 2025

Israel quer que nos esqueçamos da História. Um aparente beco sem saída

Miguel Marujo

 

Dois anos depois dos massacres do 7 de Outubro, que deram início ao atual genocídio em Gaza, eis a sugestão de alguns livros que ajudam a entender raízes, história e contexto do conflito. Dificilmente o atual cessar-fogo resultará, se não se for mais além. Estes livros dão pistas.

 

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“É útil para Israel que todos nos esqueçamos da História”. Assim, de uma penada, o historiador Ilan Pappé resume muito do jogo de desinformação, manipulação e omissão que, por estes dias, nos conta o que se passa em terras de Israel e da Palestina ocupada. E este professor, natural de Haifa, em Israel, filho de judeus alemães que fugiram do regime nazi, insiste em tornar legível a história do conflito aberto entre israelitas e palestinianos.

Com o 7 de outubro de 2023, quando o Hamas lançou um ataque contra Israel, que deixou mais de mil mortos entre civis e militares israelitas, para além de mais de 200 reféns, Israel voltou à sua narrativa, tantas vezes repetida: qualquer ato de violência por parte de palestinianos é vista como “uma atrocidade anormal, compreensível apenas através da ótica de quererem aniquilar os judeus”, dando a Israel “carta-branca” para reações desproporcionadas e violentas. “O ataque do 7 de outubro é utilizado por Israel como pretexto parar implementar políticas genocidas na Faixa de Gaza” (p. 146).

 

 

Israel vs Palestina – A Mais Breve História do Conflito consegue de forma enxuta, sem ser exaustiva, situar-nos no âmago de uma guerra interminável. Ilan Pappé desafia há muito a narrativa tradicional sobre a fundação de Israel, e com esta centena e meia de páginas desmonta o mito de que a Palestina era uma terra vazia, como a propaganda sionista insiste em vender; refuta a ideia de que os ocupantes da Palestina romana de há 2000 anos eram os antecessores dos colonizadores sionistas que chegaram no século XIX; retrata o desastre diplomático britânico na gestão da autodeterminação e independência, prometida aos palestinianos, abrindo porta a um movimento de ocupação colonial, que é o sionista.

Foi este movimento sionista que burilou e conduziu ao longo destas décadas uma política assente na ocupação de terras e expulsão dos seus habitantes originais. Israel tem procurado confundir – por motivações políticas e ideológicas, para justificar a ocupação – antissionismo com antissemitismo, como se um e outro fossem caras da mesma moeda, mas Ilan Pappé desmonta de forma clara essa confusão.

Também por isso, o historiador (para quem dar contexto não é o mesmo que dar desculpas) abre com uma quase-provocação, ao citar o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que, nos dias seguintes ao ataque do 7 de outubro, relembrou que os palestinianos estavam sujeitos a uma ocupação com mais de cinco décadas. Mas as raízes são mais antigas, avisa Pappé, recuando ao final do século XIX.

O relato obedece a um cadência cronológica, em que a História parece repetir-se, fosse com a tutela colonial britânica, seja com o governo de Netanyahu. Em 1936 como hoje, a revolta dos palestinianos, não é apenas eliminada. “O objetivo não era simplesmente suprimir a revolta – era garantir que os palestinianos não voltariam a ter forma de se revoltar com eficácia.”

A História tem inquietantes pontos de contacto: os bombardeamentos britânicos, que arrasam cidades, como resposta a ataques de palestinianos, a ocupação de terras, a complacência da comunidade internacional, são cenas que se passam diante dos nossos olhos, nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, como no genocídio em curso na Faixa de Gaza. Estávamos em 1948 e estava em marcha “a limpeza étnica da Palestina”.

A cartilha de Netanyahu, nos dias de hoje, é a de Ben Gurion, um sionista e trabalhista, que avançou com a mesma impunidade da atual liderança israelita: ignorou a partilha do território em dois estados, patrocinou castigos coletivos, promoveu a limpeza étnica, deu ordem para arrasar três aldeias, com o massacre de crianças e mulheres (pp. 67-68).

Pappé não tem dúvidas: o movimento sionista é um projeto contínuo de colonialismo de ocupação, e a solução, para este historiador, é Israel esvaziar o seu “etos de colonialismo de ocupação”. Só assim poderá “coexistir pacificamente com os palestinianos”. Parece cada vez mais longe esse horizonte.

 

Biografias de um povo expatriado

 

 

As edições sobre a história e a política do Médio Oriente, em particular de Israel e Palestina, multiplicam-se por estes dias nas estantes das livrarias portuguesas. Para além da “mais breve história do conflito” de Ilan Pappé, há uma outra História da Palestina Moderna – Uma Terra, Dois Povos, do mesmo autor. O livro foi publicado em Portugal em 2007 e recuperado agora, pela necessidade de ir mais longe na espuma dos dias e dos comentários encartados das televisões.

O tempo e o propósito desta História vai mais longe que o livro dado à estampa no último ano. As suas mais de 400 páginas indicam-no. Esta obra não se confina apenas ao conflito, vai ao início do século XIX, ainda no Império Otomano, percorre a formação da Palestina moderna, demora-se no retrato social, cultural de uma sociedade sem política, nesses tempos, até ao início sionista. O sionismo é um projeto muitas vezes racista, que nasceu também impulsionado por cristãos europeus, que queriam – mais do que dar uma casa aos judeus – pô-los a andar da Europa. Estávamos na época dos nacionalismos egoístas que levariam às tragédias das duas guerras mundiais.

Se Israel vs Palestina pinta com uma cadência informada e breve aquilo que é o conflito entre israelitas e palestinianos, sem descurar o rigor, esta História da Palestina Moderna dá-nos o contexto e o enquadramento para o entender.

 

 

Palestina – Uma Biografia, Cem anos de guerra e resistência é de 2020, e mesmo o prefácio do autor, Rashid Khalidi, para a edição portuguesa (maio de 2022, reimpressa em 2024), é anterior a esta nova guerra entre Israel e a Palestina. No entanto, esta obra vai na linha de Ilan Pappé e traz-nos os elementos suficientes para melhor contextualizar o que se passa na região. Khalidi apresenta-nos os acontecimentos de forma detalhada, no seu contexto global e histórico, notando, como Ilan Pappé, que esta é “uma longa e desigual luta do povo palestiniano para resistir à expropriação de que é alvo”.

Rashid Khalidi, que se dedica aos estudos árabes, na Universidade de Columbia (EUA), apresenta-nos esta história, bebendo nas fontes arquivísticas de uma rica e extensa biblioteca reunida pelo avô e de outras famílias palestinianas, e pintando o retrato desta região a partir das suas próprias experiências pessoais. Os capítulos dividem-se cronologicamente pelas declarações de guerra – e no livro são identificadas seis, de 1917 a 2014, que se traduzem num século de guerra, em que os palestinianos poucas vezes foram ouvidos, e no qual o tabuleiro geoestratégico e político da região se sobrepôs à vontade dos muçulmanos, cristãos e judeus que habitavam estas terras palestinas. O mapa de Khalidi alarga-se ao Iémen, Líbano, Síria, Irão, entre outras geografias, para melhor entender estes cem anos.

 

Os Holocaustos de 2023 até hoje

 

 

O cientista político e arabista Gilles Kepel começa a sua narrativa no 7 de outubro de 2023, para apontar os “dois holocaustos que encarnam a maldição da Terra Santa” desde esse dia: “O pogrom cometido pelo Hamas”, nesse dia, “no qual foram massacrados, violados e mutilados 1140 israelitas, mulheres e homens, de bebés a idosos”; e ainda “a hecatombe de Gaza, causada pelos bombardeamentos e pelas operações terrestres do exército do Estado judaico, na qual morreram cerca de 25 mil palestinianos durante os primeiros cem dias da ofensiva”.

Este número já está desatualizado, mas a visão de Kepel em Holocaustos permanece muito atual. Ao usar o termo holocaustos no seu sentido religioso original de sacrifício em massa, o autor francês procura relacionar “Israel, Gaza e a guerra contra o Ocidente”, o subtítulo do livro. E este é um ponto que distingue as abordagens dos outros anteriores. Gilles Kepel aborda o conflito que opõe o Norte – que luta contra o antissemitismo nazi que ainda permanece – a um Sul Global, que está contra o domínio colonial e a perpetuação de regimes de apartheid. Uma guerra global ao Ocidente e aos seus valores, opondo o apartheid à Shoah.

É uma perspetiva desencantada sobre uma política mais interesseira que interessada, “um prelúdio ao Armagedão a que os beligerantes da Terra Santa aspiram”. O mundo que apenas pede justiça e paz fica sem chão.

 

O choque entre o Islão e a modernidade

 

 

O choque de civilizações, tão caro a uma determinada corrente, é ainda mais aprofundado em O Médio Oriente e o Ocidente – O que correu mal?, obra do historiador Bernard Lewis de 2002 (editada em Portugal em 2003 e que agora teve nova edição) que aborda “as consequências do choque entre o Islão e a modernidade”. Para lá das fronteiras do conflito entre Israel e a Palestina, para lá do que separa estes dois povos na mesma terra.

É uma obra de fôlego, que parte da traição da História, que os muçulmanos sentem, por causa da perda de uma liderança civilizacional e do afastamento da modernidade. Para Lewis, nota o tradutor e prefaciador deste livro, Bruno Cardoso Reis, “nenhuma comunidade está isenta de erros e crimes, mas também nenhuma tem o seu monopólio”, e por aqui não se esperam facilidades na leitura dessa História.

Nestas páginas não há Hamas ou Netanyahu, mas há suficientes e densas pistas para uma leitura destes tempos. A esperança deste académico britânico, com raízes judaicas e que morreu em 2018, era a de que os habitantes do Médio Oriente se perguntassem “Onde é que errámos?”, para ultrapassarem a decadência de uma região que foi uma das “maiores, mais avançadas e mais abertas civilizações da história humana”, e que hoje mergulha “num círculo vicioso de ódio e vingança, frustração e autocomiseração, pobreza e opressão”.

Pondo de lado estas “queixas e autocomiseração obsessivas”, talvez o Médio Oriente possa ser “um ponto importante em termos civilizacionais”. Por enquanto, esta é ainda "uma escolha que está nas suas mãos”, argumenta Lewis. No caso dos palestinianos, há quem não o permita. Um aparente beco sem saída.

 

Israel vs Palestina – A Mais Breve História do Conflito 
Ilan Pappé, tradução de Ana Rooney-Magalhães
Ideias de Ler, 2025, 160 pp, 14,99€.

História da Palestina Moderna – Uma Terra, Dois Povos
Ilan Pappé, tradução de Ana Saldanha
Caminho, 2024, 416 pp, 20,90€.

Palestina – Uma Biografia, Cem anos de guerra e resistência
Rashid Khalidi, tradução de Carla Ribeiro
Ideias de Ler, 2024 (reimpressão), 404 pp., 19,99€.

Holocaustos – Israel, Gaza e a guerra contra o Ocidente
Gilles Kepel, tradução de Luís Filipe Pontes
D. Quixote, 2024, 216 pp., 18,80€.

O Médio Oriente e o Ocidente – O que correu mal?
Bernard Lewis, tradução de Bruno Cardoso Reis
Gradiva, 2024, 232 pp., 15,50€.

 

[texto originalmente publicado no 7MARGENS, com o título "Israel quer que nos esqueçamos da História. Estes livros lembram-nos como é", a 6 de outubro de 2024]