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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Maio 22, 2025

O ofício deles é a morte. E foi correndo bem

Miguel Marujo

 

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Quase em simultâneo, o mercado livreiro português conheceu duas obras sobre o Grupo Wagner, a milícia armada de mercenários com base na Rússia que construiu um verdadeiro império de crime e sangue, com uma capa empresarial de opacidade e dinheiros sujos e o apoio invisível do Presidente russo, Vladimir Putin, e do seu regime mafioso.

O Nosso Ofício É a Morte: A história do Grupo Wagner, dos jornalistas Ilya Barabanov e Denis Korotkov (edição Livros Zigurate) e Wagner: A Máquina de Guerra de Putin, dos também jornalistas Rui Pedro Antunes e João Porfírio (Tinta-da-China) propõem-se revelar a história deste bando de mercenários, mas com pontos de partida distintos.

O livro dos portugueses parte das reportagens que Antunes e Porfírio realizaram na Ucrânia, entre agosto e setembro de 2023, no “rasto do temível Grupo Wagner”. Para começar, os jornalistas procuraram protagonistas que lhes deram pistas do que era o PMC Wagner: o mercenário, o “caçador”, o combatente, a enfermeira, a fugitiva. O quadro completa-se com o que vem depois: a reportagem — enriquecida pelas fotografias de João Porfírio — num país em guerra, enquanto se deslocam à vila onde nasceu o número dois da companhia, mas que deu o nome ao grupo, Dmitri Utkin, “Wagner”; e a parte em que se explica a ascensão e queda de Yevgeny Prigozhin, o multimilionário e antigo chef, um criminoso que esteve preso na juventude, o homem que desafiou Putin, acabando morto, que fez de Wagner um nome temido em várias geografias.

É este o ponto de partida dos dois livros: no caso dos jornalistas russos, dá-se conta do funeral de Yevgeny Prigozhin, e dos ardis para enganar a comunicação social do local exato do seu enterro; no dos portugueses, os dois encontravam-se numa sala em Kiev com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, quando se soube da notícia da explosão do avião em que seguiam Prigozhin, Utkin e Valery Chekalov, o homem que conduzia os negócios do grupo.

Barabanov e Korotkov acompanham o PMC Wagner há vários anos, e O Nosso Ofício É a Morte apresenta com notável detalhe o percurso deste grupo mercenário – até onde é possível, num regime como o de Putin – bebendo de uma longa recolha de informação e de entrevistas junto de fontes. As lacunas (assumidas) que não estão preenchidas na história são escondidas por um regime corrupto, nada transparente, uma sociedade que vive uma aparência democrática. A biografia mais recente dos dois jornalistas ajuda a explicar a impossibilidade de ir mais longe: Barabanov e Korotkov vivem atualmente no exílio.

A geografia da atuação dos mercenários da PMC (Private Military Company) Wagner ultrapassa as fronteiras da Rússia, estende-se pela Ucrânia, andou pela Síria garantindo a segurança de Bashar al-Assad, o deposto ditador, e alimenta-se na República Centro-Africana, uma guerra esquecida por todos menos pelos interesses geoestratégicos, comerciais e de delapidação de recursos (como dava conta a reportagem de Rui Araújo em 2021, na TVI/CNN, republicada no 7MARGENS).

Estas duas obras dão-nos conta de como Putin se foi escondendo detrás de mercenários para o trabalho sujo da guerra, alimentando a corrupção e o crime. Hoje, com Prigozhin e Utkin mortos, o futuro do Grupo Wagner pode parecer mais incerto, ou pelo menos com os holofotes desviados dos seus protagonistas, mas dificilmente um império destes se perde, como descrevem O Nosso Ofício É a Morte e Wagner: A Máquina de Guerra de Putin. Um e outro livro são complementares, um cheira a terreno, o outro escava bem fundo nos podres do regime russo. Os dois valem a pena.

 

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O Nosso Ofício É a Morte: A história do Grupo Wagner
Ilya Barabanov e Denis Korotkov (tradução do inglês de Luís Filipe Pontes)
Livros Zigurate, 2024, 256 pp.

Wagner: A Máquina de Guerra de Putin
Rui Pedro Antunes e João Porfírio
Tinta-da-China, 2024, 216 pp.

 

[Imagem: Membros do Grupo Wagner treinam tropas bielorrussas. Foto © Информационное агентство БелТА, CC BY 3.0, via Wikimedia Commons.]

Maio 21, 2025

As memórias guardadas de Abril

Miguel Marujo

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Nestes tempos, ninguém questiona por onde anda a Liberdade, como cantam os Mão Morta. Talvez os livros que aqui se apresentam nos apontem caminhos para saber por onde anda ela, indo à História do 25 de Abril para também nos ajudar a refletir o presente.

À boleia dos 50 anos do 25 de Abril, que se continuam a comemorar (num arco temporal que decorre, pelo menos, até ao cinquentenário das primeiras eleições legislativas de 1976), as edições no mercado livreiro têm continuado a bom ritmo, recuperando textos ou documentos antigos, propondo novas releituras e abordagens inovadoras, sempre com a efeméride festiva no horizonte.

Depois de três (breves) propostas deixadas nestas páginas, voltamos a avançar com mais uma sugestão de seis livros obrigatórios para melhor conhecer as memórias guardadas destes 50 anos e melhor entender a diversidade que nos trouxe Abril. Não se estranhe o facto de todos eles terem a chancela da Tinta-da-China, que mantém uma parceria com a Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, por um lado, e sempre dedicou uma atenção particular à História, e em particular ao século XX.

 

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Por enquanto, o Povo Unido ainda não Foi Vencido

Manuel Vázquez Montalbán deixou-nos como legado essa personagem maior dos policiais que é Pepe Carvalho, que alimentava a sua lareira com livros, e que se confundia tanto com o jornalista e escritor espanhol, morto subitamente em 2003.

Em boa hora a Tinta-da-China, numa cuidada edição de Rita Luís (investigadora em História Contemporânea), recuperou as “crónicas da revolução” que Montalbán escreveu em 1974 e 1975 sobre Portugal, desvelando a sua fina ironia, argúcia e humor na leitura da realidade nacional naquele tempo. Há três textos anteriores ao 25 de Abril, sobre o livro de Spínola que desestabiliza o regime, e depois da Revolução o jornalista acompanha, em nome próprio ou por pseudónimos (ele que foi o homem dos “100 nomes”), os dias festivos e quentes de Abril e os meses que se seguiram até ao final de 1975.

Há um entusiasmo claro pelos dias que Portugal vivia, por oposição a uma Espanha então ainda amordaçada no estertor de Franco e da sua ditadura. As notícias sobre o país, os seus políticos emergentes ou os caminhos a seguir são despachadas com lucidez, apesar do entusiasmo tropeçar nalgumas leituras precipitadas, por vezes corrigidas: Montalbán percebe muito depressa que é no PS e PPD que os portugueses irão concentrar os seus votos, antecipa a necessidade de Portugal aderir à Europa e nota a importância em fortalecer a democracia – assim como se refere a Pereira de Moura como uma “das quatro figuras políticas mais importantes da atualidade portuguesa” e cuja memória se esfumou na História.

Este Por enquanto, o Povo Unido ainda não Foi Vencido: Crónicas sobre a revolução (1974-1975) não é livro que Pepe usasse na sua lareira.

 

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A Guerra Guardada

Este é, antes de mais, um objeto bonito, que os livros também o são, numa edição irrepreensível que nos traz, como se descreve no subtítulo, fotografias de soldados portugueses nas três frentes da Guerra Colonial, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, entre 1961 e 1974. Esta viagem pela memória de tantos homens mobilizados para o combate foi resgatada da “estreiteza dos seus círculos pessoais”, para dar corpo também a uma exposição no Museu do Aljube.

As fotografias “banais ou extraordinárias” desvelam um outro olhar sobre a “guerra longa e anacrónica, que foi mandada combater pela ditadura”, e que por vezes parece nem existir naquele quotidiano. Há fotos contadas pelos soldados, ou faladas pelos próprios (explorando o áudio através de um QR code), há os avessos dessas fotos, com breves mensagens ou legendas em letras mais ou menos redondas, há soldados fotógrafos, e a vida na caserna, e também a violência e o racismo que espreitam nas molduras daquelas fotos, na sua maioria a preto e branco.

A estas memórias particulares, junta-se o olhar da academia que debate a várias vozes o colonialismo, a guerra e o fim do império, num diálogo que se revela fresco e franco entre a investigação e a guerra guardada por quem a fez. A completar estas abordagens, a obra coordenada por Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte apresenta ainda as criações artísticas e as composições musicais – de novo, fazendo um uso inteligente de QR codes – que acompanharam a exposição, entrelaçando o olhar sobre a Guerra Colonial. Este livro é, então, um objeto bonito, mas também de leitura obrigatória.

 

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25 de Abril. Revolução e mudança em 50 anos de memória

Este livro vive da memória, traçando uma abordagem inovadora sobre de que forma é lembrada ou esquecida a Revolução de 1974, mas também celebrada ou contestada, apropriada ou combatida.

Nesta obra que não é um livro clássico de História, como definem os seus organizadores, Manuel Loff e Miguel Cardina, os protagonistas não são os soldados que derrubaram uma ditadura podre de quase 50 anos; são aqueles que trazem evocações pessoais e sociais que ajudam a traçar várias dimensões da Revolução, inscrevendo a pluralidade e o conflito como narrativa para melhor perceber a mudança de Portugal nestes 50 anos de liberdade. Por isso, há a proposta das “memórias reacionárias” da Revolução (por Loff) ou das “memórias disputadas” dos retornados (trazidas por Elsa Peralta), e também cabe a leitura de como se construíram as ficções da Revolução, a partir da memória dos acontecimentos (num olhar de Luís Trindade, que já nos tinha trazido o excelente Silêncio Aflito).

A partir da condição da mulher no Estado Novo, Ana Sofia Ferreira  questiona se a Revolução está (ainda) incompleta para as mulheres, traçando um percurso sobre estes 50 anos, no qual regista a tese de Manuela Tavares (dirigente da UMAR) de que “a participação de muitas raparigas na Juventude Operária Católica (JOC) e na Juventude Universitária Católica (JUC) terá sido importante para o despertar de uma consciência feminista na fase final da ditadura”.

A memória do fim do império e do 25 de Abril, entrelaçada com a narrativa das “Descobertas” e do “caráter benevolente do colonialismo português”, que Miguel Cardina desenvolve, e as sombras perenes da Reforma Agrária, decifradas por Paula Godinho, são outras importantes abordagens desta obra.

O livro encerra com uma leitura sobre “o que se esconde atrás da nuvem: imagens em movimento da Revolução Portuguesa nalguns centros urbanos”, uma proposta de Joana Craveiro que é “um exercício de investigação historiográfica construído como uma ficção”, que não é uma ficção, parte antes de “relatos orais” e histórias escutadas em primeira mão, “como fontes primordiais” do texto, para além de notícias dos jornais de então. Memórias imprescindíveis, todas elas.

 

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Vozes da Revolução e A Revolução dentro da Revolução

No acervo de livros sobre o 25 de Abril, Vozes da Revolução. Revisitando o 25 de Abril de 1974. Entrevistas e Estudos é uma significativa recolha documental, centrada no “precioso conjunto de entrevistas”, como as define António Costa Pinto, até agora inéditas em Portugal e que foram realizadas nos anos 1990 pelo cientista político norte-americano Paul Christopher Manuel, quando era ainda estudante na Universidade de Georgetown. Este investigador entrevistou intervenientes relevantes na Revolução e durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso), que categorizou como “reformistas anticomunistas”, nos quais incluiu Spínola e Jaime Neves; “um oficial do MFA radical pró-comunista”, que era Vasco Gonçalves; “moderados do MFA”, “três dos quais signatários do importantíssimo documento do Grupo dos Nove”, como Vítor Alves e Vasco Lourenço; “dois populistas do MFA”, que favoreciam um “regime de tipo revolucionário pró-cubano” (Otelo e Mário Tomé); e “dois independentes”, incluindo Costa Gomes). Os pontos de vista únicos dos entrevistados ajudam a compor o mosaico de que se fazem as vozes do 25 de Abril.

Na mesma coleção, “O 25 de Abril visto de fora”, promovida pela Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, com a chancela da Tinta-da-China, e com coordenação de Costa Pinto, é apresentada uma tese de doutoramento da cientista política americana Nancy Bermeo, que avalia a Reforma Agrária portuguesa enquanto processo revolucionário enquadrado pela mudança de regime, centrada no controlo operário dos grandes domínios fundiários. A Revolução dentro da Revolução. O controlo operário no Portugal rural é uma história da Reforma Agrária – que pode, para muitos apressados, parecer datada ou ultrapassada – e, como aponta o coordenador da coleção, “um excelente contributo” para compreender o 25 de Abril e o processo de democratização do país. Com a profundidade merecida, e ultrapassando a caricatura (ideologicamente preconceituosa, na esmagadora maioria dos casos) que tantos hoje transmitem deste processo reformador.

 

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Cabral Ka Mori

Este catálogo de “Amílcar Cabral, Uma Exposição” acaba por viver para lá dessa mostra (apresentada em Lisboa, em 2023, e entretanto mostrada em Bissau, em 2024), ao propor uma viagem pelo mundo do líder independentista do PAIGC, através de 50 peças que apresentam momentos e lugares da vida de Amílcar Cabral.

Os historiadores José Neves e Leonor Pires Martins, comissários científicos da exposição, completam os seus textos com fotografias, ilustrações, livros, jornais, documentos, que traçam um olhar atento também à sua época. Este livro-catálogo acaba por retratar, como se aponta, o passado de Amílcar Cabral mas também sobre quem fez e continua a fazer sentido desse passado, – Cabral “e as suas vidas posteriores”, ele que contribuiu de forma decisiva para pôr um ponto final no império colonial português. O 25 de Abril também foi escrito por Cabral.

 

 

Por enquanto, o Povo Unido ainda não Foi Vencido: Crónicas sobre a revolução (1974-1975)
Manuel Vázquez Montalbán (seleção e tradução de Rita Luís)
Tinta-da-China, 2024, 176 pp.

A Guerra Guardada. Fotografia de Soldados Portugueses em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, 1961‑1974
AAVV, com coordenação de Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte
Tinta-da-China, 2024, 192 pp.

25 de Abril. Revolução e mudança em 50 anos de memória
AAVV, com organização de Manuel Loff e Miguel Cardina
Tinta-da-China, 2024, 312 pp.

Vozes da Revolução. Revisitando o 25 de Abril de 1974. Entrevistas e Estudos
AAVV, com organização de Paul Christopher Manuel (tradução de Myriam Zaluar)
Tinta-da-China/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, 2024, 248 pp.

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A Revolução dentro da Revolução. O controlo operário no Portugal rural
Nancy Bermeo (tradução de Susana Sousa e Silva)
Tinta-da-China/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, 2024, 288 pp.

Cabral Ka Mori. Catálogo de ‘Amílcar Cabral, Uma Exposição’
José Neves e Leonor Pires Martins
Tinta-da-China/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril, 2024, 120 pp.

[Artigo originalmente publicado no 7Margens, a 23 de março de 2025. Imagem principal: instalação na Assembleia da República, com palavras de ordem dos anos de 1974 e 1975, em abril de 2014. Foto © Miguel Marujo]