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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Outubro 28, 2024

Um encontro com a alegria e o riso. Senhoras e senhores, Nick Cave em Lisboa

Miguel Marujo

 

 

Este texto foi escrito antes do concerto de Nick Cave & The Bad Seeds, em Lisboa, na noite de domingo. Não seria muito sensato publicá-lo depois, sobretudo quando assistimos a mais um espantamento e estremecimento em forma de concerto — melhorando de cada vez que o vemos, uma e outra vez. Faltando-nos as palavras para o que vimos, um momento tão íntimo quanto gigante, recupero aquilo que antecipava, que Nick Cave iria insistir em semear as melhores bad seeds deste mundo. Foi o caso.

 

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Arregalar os olhos e pôr os ouvidos à escuta: aquilo que se promete para domingo, dia 27, à noite, em Lisboa, é uma celebração da alegria e do riso, a adrenalina do melhor rock-pop que se ouve por aí e que se tem feito de dor, alegria e humor, sobre as ironias da vida e da morte.

É uma promessa já cumprida: Nick Cave traz, com os seus companheiros Bad Seeds, o mais recente disco – e que estará entre os melhores do ano, nas contas de 2024 –, Wild God, resgatando a alegria na vida do cantor, que perdeu dois filhos nos últimos nove anos, e que exorcizou a sua dor em público, em dois notáveis discos (Skeleton Tree, 2015, e Ghosteen, 2019) e tantos concertos memoráveis (e o Porto e Lisboa puderam ver nestes últimos anos toda esta catarse ao vivo). Wild God resgata também para a alegria a composição do músico de origem australiana, destilando a energia que lhe descobrimos sempre em palco, mesmo que haja marcas que permanecem de um passado recente (incluindo apontamentos da sonoridade dos seus dois últimos discos com os Bad Seeds, e também de Carnage, de 2021, a obra composta com Warren Ellis).

“A alegria foi cultivada dentro da mecânica do desgosto. Este registo foi feito por alguém que passou por perdas, mas que está fundamentalmente feliz na existência. Não poderia ter dito isso há cinco anos”, descreveu Nick Cave ao Le Monde, sobre este novo Wild God. E percebe-se.

Este é também um disco que caminha sobre as águas, de Song of the Lake, o arrepiante tema de abertura, a As the Waters Cover the Sea, uma peça delicada que exulta em coros e piano, no final do disco, enquanto se canta And as you wake and turn to me/ Peace and good tidings He will bring/ Good tidings to all things (“E quando acordares e te voltares para mim/ Paz e boas novas Ele trará/ Boas novas a todas as coisas”).

Os coros com reminiscências ao gospel americano já tinham alimentado Conversion, um relato que navega entre um mar chão e a violência das ondas, como uma verdadeira experiência de conversão. E este é ainda o disco em que ouvimos Anita Lane – recuperada de uma gravação feita antes da sua morte – a perguntar a Nick se ele se lembrava de como antes se divertiam mesmo muito. Há alegria e saudades e risos, neste disco.

Ao vivo, Nick Cave é muitas vezes visceral, até nas águas calmas de Into My Arms, a canção com que tem fechado os seus concertos pela Europa. Muito provavelmente será assim em Lisboa, no 21.º concerto europeu da The Wild God Tour. Nesta digressão, têm sido tocados quase todos os temas de Wild God, embora As the Waters Cover the Sea só por seis vezes tenha sido ouvida nos palcos neste ano de 2024. Os temas que sobem ao palco percorrem muitos dos seus discos, em doses únicas, incluindo duas canções de Carnage. Veremos do que se fará a lista de Lisboa.

Será possível antecipar que Nick Cave vai insistir em semear as melhores bad seeds deste mundo – de fato negro e gravata, camisa branca, numa noite apocalíptica e cheia de raiva e amor, profeta e vendilhão do templo, crente e cético, num jogo constante de contradições maiores, como aquele que se ouve no arranque de Frogs, o tema com que o concerto deve começar: Ushering in the week he knelt down/ Crushed his brother’s head in with a bone/ It’s my great privilege/ Oh babe, to walk you home (“No início da semana, ajoelhou-se/ Esmagou a cabeça do seu irmão com um osso/ É meu grande privilégio/ Oh querida, levar-te a casa”).

Ele é o pastor que exorciza demónios e vergonhas, um culto em que se sabe ao que se vai e mesmo assim nos surpreende, e a banda que é um bando de amigos acólitos e o coro naquele altar que dança, bate palmas, grita aleluia, faz a festa, é uma festa, uma imensa fé esta, entre as descargas das sementes ruins e a voz que vocifera just breathe, just breathe, como em I Need You, e todos respiramos, bebemos deste sangue e deste cálice. Deus é selvagem. Senhoras e senhores, Nick Cave chega a Lisboa para um encontro com a alegria e o riso.

 

 

Foto © nickcave.com.

Outubro 25, 2024

Músicas para calar as armas

Miguel Marujo

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A capa do disco Passion Sources, coletânea organizada por Peter Gabriel.

 

No Afeganistão, a música foi proibida, e as mulheres nem em casa podem cantar. Os talibãs têm medo da música, e ainda mais da voz das mulheres.

Há uns anos, por causa de uns cartoons, houve quem sublinhasse a superioridade da civilização europeia e ocidental, e há quem continue a grunhir contra a vida de pessoas de outras paragens ao nosso lado. Nessas alturas, procuro exemplos dessa superioridade — e são muitos dizem-nos, e quase nos convencem: o tratamento das mulheres, a perseguição política e religiosa, as ditaduras, a pobreza classista. Mas será assim? Há um filme egípcio, “Al-Massir” (O Destino), que já, em 1997, nos colocava as questões de hoje, de amanhã, a partir do confronto de ideias entre moderados e radicais nos califados andaluzes do… século XII. Já então o confronto de civilizações, com guerras e aparentes superioridades, se desenhava nos céus da Europa.

Também há quem diga que Johann Sebastian Bach é o maior compositor de todos os tempos. Mas vacilo quando ouço Prélude de la Partita pour Violin nº 3 precedido de Pepa Nzac Gnon Ma. Estou a meter no mesmo saco Bach e um tema tradicional gabonês, interpretado por Elugu Ayong?! Sim, estou — deixem-me blasfemar. Na música, descobrimos, desarmados, que Bach desenha uma melodia que se entrelaça na perfeição com os sons da selva africana, vozes, percussões, violoncelo, música, beleza e a dança do povo Fang, do norte do Gabão, derrotando discursos de falsas superioridades civilizacionais. (Ouçam então Lambarena — Bach to Africa, de 1995.)

Arrisquemos nova pauta, antes de retomar a partitura: numa altura em que se democratizou o gosto de viajar, a bagagem não tem lugar para a música — mais ainda quando o streaming já praticamente derrotou o CD. Sobra a nostalgia do vinil. A coisa boa da globalização (e do streaming) é o mundo todo ao virar da esquina na internet.

Deixem-me fazer uma rápida divagação, que não é para mostrar apressados saberes enciclopédicos, mas ajuda a compor o tema — e a desenhar uma geografia contra o ódio. Pode começar-se a viagem com o senegalês filho de pescador Baaba Maal em Call to Prayer ou escutar em silêncio os ventos andinos de um Kyrie da Misa Criolla, tropeçar num casamento klezmer dos Muzsikás, percorrer os desertos sufis com o afegão Mohammad Rahim Khushnawaz ou o paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, visitar os banhos do Istanbul Oriental Ensemble ou cair nos braços de Sheila Chandra e das vozes búlgaras em polifonia com António Zambujo. Mas também ouvir os desejos de paz da palestiniana Haya Zaatry em Rahawan.

Num tempo em que nos impingem que quem é diferente (apenas por ser migrante, refugiado, asilado, estrangeiro) deve ficar algures esquecido no seu canto, ou à porta do muro que levantamos ou escorraçado para longe da Europa, talvez possamos reconhecer que estes sons nos levam antes em peregrinação. O que esta viagem nos desenha não é da superioridade das civilizações. É da superioridade da alteridade, da descoberta do Outro, a vitória da civilização do Amor. Mas isto não é música que muitos queiram para estes dias.

Num tempo em que nos impingem que quem é diferente (apenas por ser migrante, refugiado, asilado, estrangeiro) deve ficar algures esquecido no seu canto, ou à porta do muro que levantamos ou escorraçado para longe da Europa, talvez possamos reconhecer que estes sons nos levam antes em peregrinação.

Elias Chacour, que é cristão, palestiniano, árabe, com cidadania israelita (para contrariar as ideias feitas e as definições fechadas), disse-nos: “A palavra guerra significa em hebraico aproximar-se demasiado um do outro, a ponto de não se conseguir respirar. A paz significa afastar-se um pouco, para que eu possa respirar. Hoje, sufocamos.” Podemos descobrir a música afastados apenas o suficiente para respirarmos. E podemos perceber que o mundo precisa de música, em vez de armas.

 

Dois discos que só aparentemente não falam de paz

 

Quando Baaba Maal, filho de pescador, cantor e violinista senegalês, nos convoca para a oração, a voz elevada a uma transcendência emocionante, no ecrã sucede-se a representação da Última Ceia, momento fundador do cristianismo. É, só aparentemente, uma provocação: um cantor educado na fé muçulmana ilustra a sonoridade do momento em que Jesus se senta à mesa com os seus discípulos, antes da sua morte.

É esta também a provocação maior dos dois discos que aqui trazemos, que incluem este Call to Prayer, de Baaba Maal: Passion Sources é uma coletânea que reúne cantores e músicos de diferentes regiões de África, Médio Oriente e Ásia, compilada por Peter Gabriel (o autor da icónica canção anti-apartheid Biko) para acompanhar o seu álbum Passion, a música que compôs para o filme de Martin Scorsese A Última Tentação de Cristo – outra provocação, que pouco importa para este (con)texto. Um e outro disco são peças notáveis que confluem, inevitavelmente, numa linguagem comum, apesar da dispersão geográfica, que é a da música.

 

 

 

Estes dois álbuns não nos falam, aparentemente, da importância da paz. Só aparentemente, também. Na sua amálgama de origens, da Etiópia ao Paquistão, de Marrocos ao Egito, da Arménia à Guiné, passando pela Índia, Irão, Senegal e Turquia, e na sua diversidade de sonoridades, entre percussões e guitarras, vozes que parecem falar com Deus, Peter Gabriel situa todas estas afinidades na Terra Santa da época de Jesus, pintando uma mensagem de cooperação e sem barreiras que rompe com as diferenças.

“Scorsese tinha pedido um novo tipo de partitura que não fosse nem antiga nem moderna, que não fosse um pastiche, mas que tivesse referências claras à região, tradições e atmosferas, mas que fosse em si mesma uma coisa viva”, explicou Gabriel sobre o seu trabalho de composição. Esta coisa viva cruza Nusrah Fateh Ali Khan, uma voz qawwali espantosa, das mais respeitadas no mundo islâmico, à exuberância rítmica de kongas e djembês dos guineenses Fatala, e termina com uma Song Of Complaint, um tema de origem arménia, que é a adaptação instrumental de The Song Of The Emigrant. Como descreveu Peter Gabriel, “a música é tocada num instrumento de palheta dupla chamado doudouk. Esta é uma versão instrumental de uma canção de dor que descreve a emigração forçada de uma pessoa devido à sua pobreza”.

 

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Capa do disco de Peter Gabriel, Passion (Music for The Last Temptation of Christ)

 

É impossível não ver nesta música uma banda sonora também para o que se passa no Médio Oriente, de Israel ao Território Palestiniano Ocupado, passando pelo Líbano e Irão, canções de dor que pedem a cada nota por uma emergência de paz.

 

Peter GabrielPassion (Music for The Last Temptation of Christ), ed. Real World Records
Vários, Passion Sources, ed. Real World Records
(disponíveis no Spotify e outras plataformas digitais)

— textos originalmente publicados no PontoSJ e no 7Margens, a 18 e 6 de outubro de 2024, respetivamente, e aqui reunidos numa única versão.