Setembro 06, 2024
1971, um ano de excecional colheita
Miguel Marujo
Qual a probabilidade de juntarmos numa qualquer playlist José Mário Branco e Tonicha, Sérgio Godinho e Duo Ouro Negro, José Afonso e Marco Paulo, ou ainda Amália Rodrigues, Bonga, Paco Bandeira, Adriano Correia de Oliveira, Quim Barreiros e Carlos Paredes? A resposta está no título que se deve dar a essa banda sonora: 1971, o ano da revolução antes da revolução.
Esta proposta é fácil de fazer, argumenta Luís de Freitas Branco, autor de A Revolução antes da Revolução (edição Livros Zigurate), uma obra essencial e cativante, apresentada cronologicamente, mês a mês, sobre a importância de discos gravados e editados nesse ano. Em cada capítulo, que é um mês, as histórias multiplicam-se para, a partir de um disco ou de um evento específico, contar, contextualizar e cantar o Portugal da ditadura.
Os meses demoram-se nas páginas, nas quais Freitas Branco pega na música para entrar na sociedade e na política, das conquistas da angolana Riquita como Miss Portugal, deixando a metrópole de fora, para nos fazer chegar aos meandros da censura, da pequenez de um país cinzento, com bufos ao virar de cada esquina; para nos fazer assistir às emissões de uma RTP reflexo de um país, para nos meter na insurreição dos povos das então colónias de mãos dadas com a música, também eles a fazerem uma revolução antes das suas independências.
Freitas Branco socorre-se do escritor José Cardoso Pires, que do Brasil, em julho de 1971, diz que “em certos momentos da História de alguns países, é justamente nos momentos mais duros, mais dramáticos e com menos liberdade de expressão que se consegue, talvez por reação a isso, produzir obras válidas”. Tal e qual esse ano de 1971, com a censura do Estado Novo de Marcelo Caetano a mostrar-se cada vez mais bruta e pouco dada a subtilezas.
A lista de “obras válidas” que justificam a revolução de que fala o autor é extensa — e é suficiente cingirmo-nos aos títulos que alimentam cada um dos capítulos: Traz Outro Amigo Também, de José Afonso (que é de 1970, mas dá o mote para o livro), Movimento Perpétuo, de Carlos Paredes, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, de José Mário Branco, Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho, Blackground, do Duo Ouro Negro, ou Cantigas do Maio, de José Afonso, fechando o círculo.
Nestas páginas, há também o Festival da Canção (e o furacão que era Ary dos Santos), o Festival Vilar de Mouros, que trouxe Elton John e Manfred Mann a uma então desconhecida aldeia minhota por teimosia de um médico, ou o Jazz de Cascais, “o festival que a PIDE não conseguiu prender”, com monstros sagrados do jazz e um vendaval musical e político (Charlie Haden chegou a ser preso por ter dedicado Song for Ché aos movimentos de libertação das colónias).
Pelo meio, há debates constantes sobre a procura da canção portuguesa, entre o cançonetismo, a balada e uma outra coisa nova e entusiasmante, que a imprensa especializada da época antecipa em Zeca, Sérgio e Zé Mário; sobre a música das então colónias que aparecia na Europa sem a mordaça do Estado Novo; sobre a notícia exagerada da morte do rock português, mas que sucumbiria depois aos anos da canção de intervenção; ou sobre o impasse do fado, colado à ditadura, mas também à procura do seu cravo (e temos o retrato de uma Amália opositora, mas que a crítica teimava em não entender), entre o tradicional e a ânsia de arrojo e democracia.
Há ainda uma atenção às palavras que acompanhavam a melodia, e que fizeram chegar a poesia (de nomes maiores da literatura em português do século XX) a muito mais gente, concentrando uma “rebelião em meia dúzia de linhas” – e desassossegando as pessoas. O autor retoma a tensão entre cançonetistas e baladeiros e os outros, notando que a palavra precisava de música, e não bastava a simplicidade dos acordes de baladas. “A supremacia da literatura na canção foi destronada, as transformações culturais reivindicavam uma obra de arte completa, dos pés à cabeça, da melodia aos versos. A reacção surgiu em Paris, a 1500 quilómetros de Portugal, encabeçada pelo produtor José Mário Branco, que se apresentou como a antítese do cinzentismo das baladas, o maestro da cor quente e audácia de Cantigas do Maio, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades e Os Sobreviventes. E o mundo pula e avança.”
É também em Paris que um homem das baladas encontra refúgio, despojado de emprego e salário, perseguido pela PIDE. Francisco Fanhais, padre, faz do púlpito uma tribuna contra a situação. “Alguém ligado à igreja era onde eles menos esperavam que pudesse haver oposição”, recorda o próprio. Saltou para Paris à boleia de José Afonso e seria acolhido por José Mário Branco e Luís Cília [ver entrevista ao 7MARGENS].
É nesta teia intrincada de histórias que se entrelaçam, de nomes que se cruzam, que sobressai o trabalho de pesquisa e investigação de Luís de Freitas Branco, que não se fica por algumas versões mais ou menos conhecidas, antes desvelando um quotidiano nas artes e na política, nos costumes e na música, e resgatando nomes a um profundo esquecimento, de fadistas, cançonetistas, baladeiros — mas também outros músicos que voaram mais alto em termos estéticos, com uma carreira breve (José Almada e Denis Cintra, por exemplo) ou longa, como é o caso de Luís Cília, a merecerem uma revisitação. 1971 é, sobretudo, o ano do “boom de José Mário Branco”, do “disco-renovação de Adriano Correia de Oliveira” e do “disco-revolução de José Afonso”, como resume José Jorge Letria, e de Sérgio Godinho, que ninguém conseguia dizer de onde vinha.
Este é um livro também bem documentado na imagem, com fotografias de músicos, bastidores, concertos e festivais, instantâneos privados, e que nos traz ainda muitas capas de discos quase nada vistos, e raramente ouvidos. Como também aconteceu com as “duas ou três” mulheres do canto de intervenção — onde se fala de Ana Maria Teodósio, Lídia Rita e Rita Olivaes — que o tempo e o machismo não deixaram vingar.
A atenção às histórias leva-nos pelos bastidores da gravação de discos, pela forma como a ditadura se metia no dia-a-dia de todos, com um José Mário Branco em grande sofrimento a sentir-se impotente no exílio de Paris, “não é a vida, nem é a morte”, mas a procurar sempre pontes para a tradição portuguesa. Ou pela inesperada vontade de criar algo diferente, como fizeram Raul Indipwo e Milo MacMahon no seu Duo Ouro Negro, que usaram recolhas folclóricas angolanas do Museu do Dundo. Como assinala Freitas Branco, “nem o inventivo produtor José Mário Branco ousaria utilizar as recolhas de Lopes-Graça e Giacometti numa gravação”.
Cheirava a revolução na música — e no país. Três anos antes de Abril, em Paris, “quatro amigos abraçados”, José Mário Branco, José Afonso, Francisco Fanhais e Carlos “Boris” Correia, “à moda alentejana, um frio de rachar, sobre a gravilha, a arrastar os pés de madrugada, com o técnico de som agachado para captar o instante, em gravação multipista”, apontavam ao regime — e desse registo nasceram os passos de Grândola, Vila Morena. “Era apenas uma canção, um completo tiro no escuro, quem diria, em cheio na ditadura.” Este livro canta a liberdade em todas as linhas e páginas.
A Revolução antes da Revolução — O ano que mudou a música popular portuguesa
Luís de Freitas Branco
Livros Zigurate, 2024, 300 pp., 18,80€
[Artigo originalmente publicado no 7MARGENS, a 23 de agosto de 2024. Na foto principal © Carlos Gil: chegada de cantores exilados ao Aeroporto de Lisboa, com familiares e amigos. Da esquerda para a direita: José Jorge Letria, Zeca Afonso, Lucília Branco (tia-avó de José Mário Branco), José Mário Branco, Isabel Alves Costa, José Duarte, Sara Monteiro (mãe), Celeste Fernandes Sá e, atrás, Adriano Correia de Oliveira (segundo legenda da página Antifascistas da Resistência); na foto inserida no texto © Livros Zigurate: o autor do livro, Luís de Freitas Branco, que é trineto do compositor Luís de Freitas Branco e bisneto do musicólogo João de Freitas Branco.]