Agosto 26, 2024
Visite o andar-modelo. Há muitos e bons livros para lembrar Abril
Miguel Marujo
(ilustração de Nuno Saraiva, para o livro 25 de Abril – No Princípio Era o Verbo)
Abril, livros mil é o cliché óbvio, e até preguiçoso, para o manancial de edições no mercado livreiro português sobre os 50 anos do 25 de Abril ou que, aproveitando a efeméride redonda da Revolução dos Cravos, se inscrevem na história da ditadura do Estado Novo e da democracia nascida em 1974. O 7MARGENS publicou três (primeiras e breves) propostas que li. Abril é sinónimo de diversidade e as férias (que restam) podem ser ocasião para descobrir mais como se fez a democracia que vivemos há cinco décadas.
25 de Abril — No Princípio era o Verbo. Este livro é uma festa, avisa-nos logo no seu início, e procura “pintar” nas suas páginas essa festa que foi o dia inicial e limpo e tudo o que se lhe seguiu. Com texto de Manuel S. Fonseca, as ilustrações de Nuno Saraiva (cujo traço único criou um estilo muito próprio, desde Filosofia de Alcova, no velhinho O Independente) trazem-nos a algazarra própria de um povo que tirou a mordaça e soltou o verbo, após 48 anos de ditadura.
No primeiro quarto do livro encontramos uma cronologia horária dos acontecimentos que fizeram a mais improvável das revoluções contra a mais esclerosada das ditaduras de então, que ajuda o leitor mais esquecido ou desconhecedor nos detalhes que levaram o 25 de Abril a derrubar o regime. É esse o principal objetivo deste livro: contar-nos as palavras de ordem, as frases livres, as pichagens que encheram paredes de alegria e provocação, os slogans que fizeram caminho numa democracia que dava os primeiros passos.
É, pois, “um livro livre”, como descreve o autor (e editor) Manuel S. Fonseca, com os 50 anos de Abril a serem pretexto para tamanho desopilanço. “Os 50 anos do 25 de Abril de 1974 têm de ser festejados”, defende. Para logo explicar o óbvio (mas que nestes tempos precisa de ser lembrado): “O 25 de Abril foi uma das mais impressionantes algazarras de liberdade, loucura, e inocente destrambelhamento colectivo que o modesto povo português já viveu.” Bela definição, que tem a melhor das melhores traduções nos restantes 3/4 do livro: “Irrompem frases, palavras de ordem, diálogos que hoje precisamos de nos beliscar para acreditar que não foram inventados pelos irmãos Marx, se Karl Marx me perdoa ser assim secularizado”, aponta Fonseca, que faz notar que “a acompanhar este alucinado desatino das palavras”, as ilustrações de Nuno Saraiva recriam “esse Portugal de cabelos desvairadamente compridos, calças boca de sino, soutiens a serem queimados, ainda tão rural, às vezes involuntariamente quase hippie, esse Portugal a pôr a ávida boca na orgia de novos costumes”. E há exemplares deliciosos de tantas belas palavras, que bebem no socialismo, no anarquismo, no reacionarismo, ou apenas na imaginação mais imaginativa: “O socialismo está em construção, visite o andar modelo”; “Abaixo a foice e o martelo, viva o Black and Decker”; “A terra a quem a trabalha, mortos fora dos cemitérios já!”; “Nem mais um soldado para as colónias! Nem mais uma freira para o céu!”
Este é um livro que se revisita uma e outra vez, e a cada palavra e a cada ilustração solta-se a gargalhada e o sorriso, por um país que é livre e que provou que sabe ser feliz. Sempre.
Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975. A historiadora Irene Flunser Pimentel apresenta, com este seu novo livro, “episódios menos conhecidos” do período que percorre o dia da revolução à data que consolida a democracia no país. Não é, diz-nos a autora – reconhecida pelos seus estudos e livros sobre o Estado Novo e a PIDE, a polícia política da ditadura – uma “análise exaustiva” à implantação da democracia, apresentando antes “uma análise pessoal” ao que se passou naquele tempo de 580 dias, optando Irene Flunser Pimentel por destacar o que aconteceu à ex-polícia política e olhar para a ação dos Estados Unidos, da França e da Alemanha.
Este livro estende, no entanto, o seu tempo para lá das datas enunciadas no título, para melhor enquadrar o que se viveu em Portugal, mergulhando nos últimos anos do regime ditatorial e da guerra colonial, com um especial destaque no “Exercício Alcora”, que juntou a ditadura de Lisboa aos regimes racistas e de apartheid da África do Sul e da Rodésia numa “Aliança Contra Rebeliões em África”. E logo por aqui entramos em episódios menos conhecidos daqueles tempos, percebendo como a estratégia militar dura (nomeadamente de Kaúlza de Arriaga, que conduziu a massacres como o de Wiriyamu, em dezembro de 1972) era criticada por responsáveis sul-africanos, por exemplo, por afastar as autoridades portuguesas das populações locais.
Irene Flunser Pimentel debruça-se ainda sobre como as autoridades policiais e de informação dos EUA, França e Alemanha “ajudaram também ao esforço da Guerra Colonial do regime de Salazar e Caetano” e de como, depois do 25 de Abril, os serviços secretos destes três países mantiveram uma “atitude e postura não neutra” nesse “ano e meio português”.
Centrando-se no que aconteceu à ex-polícia política, na ação daqueles três países e na centralidade dos militares no processo revolucionário, a historiadora avalia também a “autonomia do campo político”, deixando de lado um olhar sobre as movimentações populares e resgatando os tais episódios menos conhecidos que a capa do livro regista, no modo rigoroso reconhecido a Irene Pimentel. Obrigatório.
25 de Abril: A transformação nos “media”. Mário Mesquita (1950-2022) é um dos nomes que poderá não dizer muito a novas gerações, até no jornalismo, mas que viu a sua obra (académica e jornalística) ser publicada e estudada com regularidade, tornando-a acessível mesmo aos que desconhecem o seu percurso nos média em Portugal.
É o caso deste livro recente (e póstumo, “uma vontade sucessivamente adiada”) 25 de Abril: A transformação nos “media”, que traça um panorama amplo sobre o mundo da comunicação social, sinalizando (logo no início) “o papel dos media na consolidação da democracia portuguesa”.
Mesquita estabelece três tempos para o lugar da comunicação social nesta consolidação: 1974-1975, que define de “ideologias”; 1976-1987, que sintetiza em “instituições”; e 1987-1995, com o advento do “mercado”. Cada um destes momentos é dissecado em múltiplos textos, que vão mais fundo na abordagem, recusando a leitura mais simplista ou imediata, apesar dos textos terem sido escritos em momentos diferentes (1984, 1987, 1988, 1989, 1994, 1996, 2004 e 2019 – para se perceber a abrangência) e por motivos diversos. Por exemplo, nos dois primeiros anos quentes da revolução e do PREC, Processo Revolucionário Em Curso, Mesquita sintetiza a comunicação social, de novo em três palavras: “Militantes, porta-vozes e jornalistas”, referindo-se à “tentação do monolitismo ou a ignorância dos limites do poder dos media”. Antecipa-se uma leitura crítica, num tempo em que coexiste uma “experiência original”, a do modelo das democracias políticas com a imprensa estatizada (1976-1983). A leitura do índice é, por si, um excelente resumo (pela acutilância dos títulos) do que se encontra no livro, que também revisita o caso República, como “um incidente crítico” e a recetividade francófona (com a leitura de 100 edições de cinco jornais da imprensa francesa, belga e suíça) à Revolução do 25 de Abril.
Se este é “um livro que faltava” sobre “os media na revolução e a revolução nos media”, como o apresenta Pedro Marques Gomes, por ele passa também o olhar do “anatomista dos media que sonhava com jornais perfeitos”, na definição feliz de Carla Baptista, que nunca se ficou por uma leitura a preto e branco deste universo no seu percurso profissional. As zonas cinzentas também são notícia e, no caso, objeto de estudo por um homem apaixonado pelo jornalismo. O texto final sobre as comemorações dos 30 anos de Abril nas páginas do Jornal de Notícias são disso um exemplo. O título volta a ser um tratado: “Memória e esquecimento na reconfiguração jornalística da Revolução dos Cravos”. O que teria escrito Mário Mesquita sobre os 50 anos, festejados em abril passado, vistos pelos jornais, num tempo em que os saudosos do outro tempo achincalham a democracia, sentados na Assembleia da República? Provavelmente muito do que se lê nestas páginas, que servem de guião para o futuro. Uma leitura essencial.
25 de Abril — No Princípio era o Verbo
Manuel S. Fonseca e Nuno Saraiva
Guerra e Paz, 2024, 188 pp.
Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975. Episódios menos conhecidos
Irene Flunser Pimentel
Temas e Debates, 2024, 471 pp.
25 de Abril: A transformação nos “media”
Mário Mesquita
Tinta-da-China, 2024, 372 pp.
[artigo originalmente publicado no 7MARGENS, a 23 de julho de 2024]