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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Maio 31, 2024

As esquerdas à procura dos seus caminhos

Miguel Marujo

Operários numa obra no México. Foto © Tomas Castelazo, www.tomascastelazo.com / Wikimedia Commons.

Operários numa obra no México. Foto © Tomas Castelazo/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0.

 

 

A esquerda portuguesa e europeia vive numa encruzilhada, com muitos a insistirem numa certidão de óbito. E talvez, neste caso, parafraseando Mark Twain, a notícia da sua morte seja manifestamente exagerada. Por isso, vale a pena mergulhar nessa encruzilhada a partir desta Breve História Mundial da Esquerda, de Shlomo Sand, historiador israelita nascido na Áustria, para aprofundar as causas que apontam para essa eventual crise, depois de experiências reformistas falhadas — como a Terceira Via, que juntou Bill Clinton, na América, e Tony Blair, no Reino Unido — ou as novas causas identitárias, como as de género e sobre o clima.

 

A capa da edição portuguesa do livro de Shlomo Sand.

A capa da edição portuguesa do livro de Shlomo Sand. Foto: Livros Zigurate.


Shlomo Sand oferece ele próprio a sua história pessoal para nos situar de forma desapaixonada na forma como a esquerda evoluiu na história, situando-se muito na noção de igualdade. A “matriz original de todas as esquerdas” é a igualdade, e de como essas esquerdas podem sobreviver a um “tempo marcado pelo individualismo e por reivindicações identitárias”, na feliz síntese que nos traz o seu livro em português. Sand nasceu numa família de judeus polacos sobreviventes do Holocausto e bebeu no pai comunista, avesso a rabis, uma atitude política de esquerda, até se desiludir no início da década de 1970 – que é como quem diz, depois da então União Soviética esmagar a Primavera de Praga, em 1968 –, e cortar os laços com o movimento comunista, sem voltar a reaproximar-se. “Todavia, continuo a pensar como um homem de esquerda: uma parte das falhas e, talvez, da qualidade do que escrevo conduz-me às minhas posições iniciais, a que não estou disposto a renunciar. Apesar de todas as decepções geradas, pelos desvios e fracassos das lutas sociais do século XX, continua a existir um abismo entre o universo e valores que anima a esquerda, em toda a sua diversidade, e aquele que alimenta todas as direitas” – apresenta-se o historiador, de forma clara.  

Escrito durante a pandemia, que não foi só uma “questão sanitária”, mas também “socioeconómica”, este livro é quase impiedoso na forma como vai sublinhando as deceções e fracassos das esquerdas no mundo – somos sempre mais críticos com os nossos pares. “A esquerda perdeu a sua força mobilizadora e abriu espaço ao populismo”, argumentava Shlomo Sand em entrevista ao Público, quando do lançamento do seu livro. A decomposição da esquerda enfraqueceu uma visão do mundo de progresso, no qual a igualdade agoniza, quando a esquerda começou pela ideia de igualdade.

O historiador, que se diz pessimista, sem ser fatalista, recusa a repetição da História, preferindo antes a ideia de que esta “fabrica fenómenos sempre desconhecidos e inesperados”. Deixando de lado grandes certezas, numa conclusão melancólica do livro, Sand prevê um possível caminho para as esquerdas, sem saber exatamente como se concretizará. “Quando os assalariados «de cima» se derem conta de que o seu futuro depende dos assalariados «de baixo», em particular dos mais novos, e quando estes últimos estiverem cansados do culto inútil prestado aos ídolos populistas, poderão emergir estratégias que levem a uma política diferente, reformista ou revolucionária. Infelizmente, ainda não é esse o caso.” Até lá, argumenta, a “exausta esquerda” pode resistir como o “vergado Galileu”, que depois de ter renegado as suas teses sobre o movimento da Terra à volta do Sol, perante o tribunal da Inquisição, acrescentou: “E, no entanto, ela move-se!”

 

Na cabeça de quem está na política

A atenção à atualidade é uma das mais-valias das edições da Livros Zigurate, que se impôs rapidamente num mercado saturado, com uma imagem de marca distintiva, no grafismo dos livros, mas também nos temas que marcam os tempos de hoje, ultrapassando a mera espuma dos dias. Para lá da superficialidade das matérias lidas apressadamente num jornal ou na internet, há quem procure deixar uma reflexão, e isso passa por estas páginas – e pelas páginas de cada um dos livros já publicados pela editora de Carlos Vaz Marques. 

Talvez o atual líder do PS, Pedro Nuno Santos, possa encontrar nesta Breve História Mundial da Esquerda uma leitura fundamental que o ajude a moldar a atuação política dos socialistas portugueses, no quadro de ascensão do populismo de uma extrema-direita que entrou em peso na Assembleia da República. Ou então beber naquilo que tem sido a sua preocupação primeira com uma Europa subjugada a uma “lógica monetarista” e que precisa de ser reformada nas suas políticas económicas.

 

Na cabeça de Pedro Nuno

Na cabeça de Pedro Nuno, de Ana Sá Lopes. Foto © Livros Zigurate.


Em Na Cabeça de Pedro Nuno, outra edição da Zigurate, lançada a tempo das eleições legislativas de março deste ano, a jornalista do Público Ana Sá Lopes traça esse permanente “esquerdismo”, lembrando a defesa intransigente de uma “nova social-democracia”, na qual o Estado é um mecanismo de redistribuição de rendimento e de proteção social, aliado ao desenvolvimento e à inovação socioeconómica. Sem a melancolia de Shlomo Sand, o socialista português aponta a questão da igualdade como chave.

Esta biografia de Pedro Nuno Santos completa-se também no confronto com outras duas biografias de políticos à direita lançadas em simultâneo (Na Cabeça de Montenegro e Na Cabeça de Ventura, também da Zigurate), que mais do que terem ajudado um eventual eleitor indeciso, proporcionam um retrato do muito que descreve o historiador israelita sobre o estado atual da arte da política do mundo – a esquerda, sim, mas também a direita. Se Ventura é descascado no seu primário populismo e radicalismo inconsequente, por Vítor Matos, jornalista do Expresso, o sensaborão inevitável-derrotado-até-à-última-vitória líder do PSD é descrito, na prosa de Miguel Santos Carrapatoso, jornalista do Observador, como alguém que “não era suposto ter chegado aqui”. Já se sabe: a esquerda espera que a Terra continue a mover-se.

 

Breve História Mundial da Esquerda, de Shlomo Sand
(trad. Carlos Vaz Marques, a partir da tradução francesa, do hebraico, de Michel Bilis)
Livros Zigurate, 2023
268 pp., 21,20€

Na Cabeça de Pedro Nuno, de Ana Sá Lopes
Livros Zigurate, 2023
160 pp., 14,80€

Na Cabeça de Montenegro, de Miguel Santos Carrapatoso
Livros Zigurate, 2023
200 pp., 14,80€

Na Cabeça de Ventura, de Vítor Matos
Livros Zigurate, 2023
192 pp., 14,80€

[artigo originalmente publicado no 7MARGENS, em 19 de maio de 2024]

Maio 09, 2024

O 25 de Abril chegou por pancadas na parede. O diário na prisão de Conceição Moita

Miguel Marujo

O 7MARGENS leu pela primeira vez pastas do arquivo pessoal de Maria da Conceição Moita, que estava presa em Caxias no dia em que a ditadura caiu. A libertação para esta professora e muitos opositores ao Estado Novo demoraria ainda a chegar: só aconteceu pouco depois das zero horas de dia 27 de abril. Eis um relato desses 141 dias.

 

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Com pancadas na parede, a notícia correu as celas. “Às 21.15 – o lado E. [esquerdo] informa de que houve um golpe militar e que foi derrubado o Governo de Marcelo Caetano”, escreve Maria da Conceição Moita, detida na cela 56, juntamente com Fátima e Helena.

O dia, aquele dia 25 de abril, uma quinta-feira, que era o sexto dia de “greve às visitas” e o segundo de “corte de recreios” tinha sido estranho: “Às 17.10m – os G.N.R. são substituídos por uma força de choque – têm capacete e estão especialmente armados. Na auto-estrada o movimento de automóveis é muito pouco. Às 18.30 – um automóvel na auto-estrada pára em frente da cadeia e buzina insistentemente. As camaradas da [cela] 54, no fim do carro desaparecer, comunicam-nos que perceberam que o carro comunicou uma mensagem da qual só perceberam as duas últimas palavras – derrubado e coragem. Comunicamos isto à sala 3 e 4 pela parede.”

Há outros dois detalhes no bloco-notas de Conceição Moita, que ajudam a perceber que algo de diferente se passava naquele dia 25: “Não tivemos jornal. As camaradas da ARA não tiveram julgamento, hoje.”

Conceição escreverá, eventualmente depois, num calendário que mantém na prisão de Caxias, no dia 26: “Libertação!” – a palavra que temia estar longe, chegava ao fim de mais de quatro meses e meio de prisão e tortura às mãos da PIDE/DGS, a temível polícia do Estado Novo, responsável pela censura, prisão e morte de muitos que se opuseram à ditadura de Salazar e Caetano. O 25 de Abril (para estes presos políticos) chegou por pancadas na parede, e apenas um dia depois. Foi uma “dupla libertação”, repetiria depois, muitas vezes.

Estes documentos, sem data, integram uma parte do espólio pessoal de Maria da Conceição Moita – antiga professora e ativista, que morreu em 30 de março de 2021 –, deixado à guarda do Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade Católica, e que o 7MARGENS consultou em primeira mão (oito de 14 pastas). Não é possível aferir quando foi escrito o bloco-notas, um “quase-diário”. Aparentemente terá sido já depois do tempo da prisão, a partir de outras notas e folhas manuscritas com calendários dos meses em que esteve detida, também incluídos no espólio, e que (apesar de também não estarem datados) serão desse tempo de cadeia.

 

Três folhas, cinco meses

 

Os calendários com o registo dos dias da prisão, incluídos no espólio pessoal consultado pelo 7MARGENS. Direitos reservados, reprodução proibida.

 

Os calendários são três folhas desenhadas à mão e cobrem os cinco meses da prisão, de dezembro a abril. No espólio há uma pequena folha, assinada por Ernestina Moita, a mãe de Xexão (como era chamada por familiares e amigos), onde consta que entregou “uns papelinhos com apontamentos de aniversários” para a filha. E lá estão os aniversários, mas também visitas, pequenos acontecimentos do quotidiano, idas à PIDE.

Conceição Moita sempre testemunhou os seus dias na cadeia, não omitindo o que sofreu às mãos dos esbirros da polícia política da ditadura: oito dias e oito noites sem dormir, uma violenta bofetada que lhe valeu uma queda desamparada seguida de violentos espasmos descontrolados, um dia inteiro na posição de estátua, sem se poder mexer, a centímetros de uma parede a que não se podia encostar. “Estava à beira da demência, do esgotamento físico e psicológico. Sentia um cansaço até ao fundo da alma”, contou à jornalista Joana Pereira Bastos, no livro Os Últimos Presos do Estado Novo Tortura e Desespero em vésperas do 25 de Abril (Oficina do Livro, abril de 2013, 1.ª edição).

No calendário de dezembro, os dias de tortura estão assinalados apenas com uma mancha vermelha que preenche aquelas longas horas consecutivas: de 6 a 13 de dezembro, todos os quadrados estão pintados, com duas únicas indicações. “Prisão”, no dia 6 (que coincide com um aniversário de uma amiga) e “Entrada na cadeia”, no dia 13. Esta mancha vermelha volta a repetir-se de 19 a 21 de dezembro de 1973 e de 2 a 4 de janeiro de 1974. Qualquer legenda seria desnecessária.

O uso dos calendários vai-se tornando mais intenso: há os aniversários e notas de visitas, que só mais tarde passam a ser mais descritivas. Em dezembro, Conceição Moita assinala três visitas, nos dias 17, 26 e 31, numerando apenas as mesmas: 1.ª, 2.ª e 3.ª – um registo que manterá em janeiro. A 5 do primeiro mês de 1974, Xexão escreve: “Licença para ler a Bíblia.” No dia 9, marca um risco vermelho no quadrado e escreve que recebe “licença para ler livros de índ.[ole] profissional”. No dia 11 anota: “Poema ao poeta.” A 12 escreve: “Companhia da Zé, Luísa, Fátima.” No dia 21 regista a “operação da Fátima” e a 22 o “1.º dia de jornal”.

Em fevereiro, o calendário de Conceição é cada vez mais preenchido – e aos pequenos episódios do dia-a-dia, juntam-se notas da luta dos presos. “Li ‘Um sorriso ao pé da escada’ do H.[enry] Miller”, abre o dia 1, e dia 2 traz o regresso da companheira de cela: “Chegada da Fátima do hospital”. No dia 4, “manif.[estação] MPLA” e no 5 “princípio greve de fome”, que termina a 12, no dia em que assinala também “fim do isolamento”.

Há uma aparente contradição neste registo, uma vez que, um mês antes, Conceição já tinha registado a “companhia” de outras três mulheres, não sendo claro se se trata de um novo período de isolamento. Nos testemunhos públicos, como aquele que deu ao projeto Mulheres de Abril, Conceição afirmou ter estado isolada um “mês e meio”, o que permite pensar que este é um segundo isolamento a que foi sujeita, eventualmente por causa de estar a fazer greve de fome. No dia seguinte, 13 de fevereiro, tem a “1.ª visita lá em baixo” e, no dia 14, as companheiras Fátima e Zé são “notificadas”.

 

Levantamento de rancho

 

Maria da Conceição Moita, Xexão, em 2007. Foto: Direitos reservados

Maria da Conceição Moita, Xexão, em 2007. Foto: Direitos reservados.

 

No espólio arquivado de Conceição Moita, há uma lista de carros, com matrículas, e em muitos a referência à cor do veículo. No cabeçalho, a indicação “F. Pide” – que talvez signifique “funcionários da Pide”. No arquivo de Xexão, detida aos 36 anos, e que festejará os 37 presa, consta ainda o desenho de dois mapas das celas, com os nomes de (muitos) presos, no que parece ser um exercício posterior de memória.

Há também notas que se encontram em três longas e finas tiras de papel, densamente escritas em letra pequenina, com diferentes tipos de letra, e que fazem a “cronologia dos acontecimentos na GF [greve de fome]”, do “Lado esquerdo” da cadeia. Percebe-se por estas notas que diferentes formas de luta vão sendo ponderadas, de “levantamentos de rancho” a greves às visitas, às horas de recreio ou as greves de fome.

Já o bloco-notas, que terá sido escrito depois do tempo da prisão, eventualmente a partir de tiras de papel como aquelas, inicia-se a 4 de fevereiro: “Manifestação às janelas, pelas 23h. Dia do MPLA”, numa referência ao Movimento Popular de Libertação de Angola, uma organização independentista que lutava pela libertação do jugo colonial português. Também o dia 5 é mais detalhado: “Início da G.F. [greve de fome] Motivo: camarada em regime normal voltar a isolamento e ser submetido a interrogatórios.” De fevereiro, só tem mais esta entrada: “11 de fevereiro – Fim da G.F. às 22 horas. Greve de visitas das celas em regime normal até dia 16 inclusive”.

Estas notas voltam a encher-se de registos a partir do final de março, dando conta de um “levantamento de rancho ao jantar”, no dia 26, “como protesto pelo castigo a 2 camaradas do lado esquerdo que subiram aos muros do recreio”. De 27 de março a 1 de abril, os presos fazem “greve aos recreios em solidariedade com os camaradas castigados”. Alguns presos fazem greve de fome, nestes dias, e há uma “discussão às janelas sobre o problema de fundo em causa – o isolamento entre celas”.

O “problema do isolamento” é levado ao diretor da prisão de Caxias no dia 28 de março, que “concorda” que “o problema das mulheres a cumprir pena nesta cadeia é particularmente grave” e diz aos presos para fazerem “uma exposição”, que segue no dia seguinte para o diretor-geral de Segurança, o pide dos pides. Na carta, assinada por Maria Helena Vidal, Maria de Fátima Pereira Bastos e Maria da Conceição Moita, as reclusas entendem ser seu dever “chamar a atenção dos responsáveis” para a situação de más condições da cadeia, “manifestar quanto a achamos inaceitável e pede a sua urgente revisão”, pedindo ainda, “como princípio de resolução do problema, a existência de recreios conjuntos para os reclusos e reclusas em regime normal”, e que isto “tenha início o mais brevemente possível”. O diretor fez orelhas moucas – e as três signatárias continuam presas em Caxias a 25 de abril.

 

Um abecedário de pancadas na parede

 

Richter Frank-Jurgen, CC BY-SA 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0>, via Wikimedia Commons

Jorge Sampaio, que tinha sido um dos líderes da crise académica de 1962 e seria, já na democracia, líder do PS e Presidente da República, foi o advogado de Conceição Moita. Foto © Richter Frank-Jurgen, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons.

 

 

O isolamento era quebrado por pancadas nas paredes, como contou Conceição Moita ao projeto Mulheres de Abril. “Na cadeia aprendi a comunicar com as camaradas das celas do lado. Do meu lado direito, uma camarada fazia uns batimentos na parede que eram sempre os mesmos. Pus a hipótese mais lógica de cada pancada ser uma letra. Recorrendo ao papel higiénico e a um bâton que tinha dentro do bolso do casaco, fiz um abecedário para me orientar. Ela dizia-me sempre “olá”. Quando respondi “olá”, ficou contentíssima. Passámos a comunicar durante todo o tempo.”

No arquivo de Conceição, numa das tiras de papel, está escrito esse código de comunicação através das paredes da prisão de Caxias. “Para transmissões de parede de extrema conspiratividade, foi fixado um novo código. Deve ser precedido, após o sinal de início de comunicação, de 2 pancadas seguidas repetidas por 3 vezes. O código de letras é como se segue: 1. R, 2. S, 3. O, 4. M, 5. A, 6. I, 7. D, 8. E, 9. C, 10. T, 11. H, 12. P, 13. F, 14. B, 15. G, 16. L, 17. U, 18. J, 19. V, 20. ?, 21. H, 22. X, 23. Q, 24. 25. Z, 26. A, 27. S, 28. R, 29. O.” Não há erro de transcrição: as últimas quatro letras repetidas são para enganar os agentes da PIDE, como se esclarece logo: “Estes são ‘duplos’ das letras já representadas por outros nºs e para usar em subst.[ituição] para despistar os ‘escutas’ da Pide.”

Os dias na prisão de Conceição Moita sucedem-se ao ritmo das pancadas nas paredes e de conversas possíveis às janelas, ocupando-se os reclusos e reclusas de intensos debates sobre as formas de luta contra as condições de detenção e isolamento. A 23 de fevereiro, mais de dois meses e meio depois da ordem de prisão, a professora recebe a “1.ª visita” do seu advogado, Jorge Sampaio, que tinha sido um dos líderes da crise académica de 1962 e seria, já na democracia, líder do PS e Presidente da República. Conceição coloca duas setas, ao lado do registo da visita: “Leitura da acusação” e “conversa “particular” com o Jorge”. As aspas podem indicar que haveria alguém mais na sala a ouvir a conversa.

Nos dias seguintes, que coincidem com o Carnaval, há vários registos no calendário, com uma primeira visita da mãe “lá em baixo”, a 25 de fevereiro, o mesmo dia em que recebe a “1.ª carta do Luís”, o irmão que também estava preso em Caxias. Dois dias depois, Conceição recebe “licença para escrever ao Luís”. No mesmo dia escreve que leu Rainhas Cláudias ao Domingo, de Virgílio Martinho. A 28 de fevereiro anota: “Fui notificada. Cortei o cabelo no barbeiro. [Visita de] Toina e Rosário.”

De 5 a 10 de abril, nas vésperas da Páscoa, há uma intensa (quanto possível) troca de propostas entre celas e salas onde estão detidos homens e mulheres. No bloco-notas, Conceição escreve dez detalhadas páginas com as propostas dos diferentes reclusos e reclusas para um “caderno reivindicativo” a apresentar ao diretor da cadeia. “Todas as celas fazem uma carta colectiva ao Director pedindo um convívio entre os presos no Domingo de Páscoa”, que será a 14 de abril, acrescenta Conceição. O “lado esquerdo” das celas propõe ainda uma greve de fome “a partir do dia 15 para a conquista do caderno reivindicativo”. Há quem rejeite a proposta. A sala 1 diz que “é prematura e não recorre a etapas de luta intermédia”.

 

Seis pontos de reivindicações

 

Pasquale Paolo Cardo from Finale Ligure (Savona), Italy, CC BY 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/2.0>, via Wikimedia Commons

Cravos disparados de um morteiro, num mural atribuído a Banksy, aludindo à Revolução dos Cravos de 1974, na Travessa do Judeu, em Lisboa (2017, já desaparecido). Foto © Pasquale Paolo Cardo, de Finale Ligure (Savona), Itália, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons.

 

O caderno reivindicativo destes homens e mulheres presos em Caxias divide-se em seis pontos: portas das celas abertas; recreios em conjunto; visitas em comum de duas horas, uma vez por mês; filhos menores do lado dos pais presos na visita; entrada de todos os jornais e revistas; visitas e correspondência com amigos e todos os familiares (para além do 3.º grau). A 9 de abril, o diretor da cadeia não tem ainda uma resposta para dar e, aos presos da cela 4, diz que “os múltiplos pedidos e exigências provocariam a não concessão destas coisas”.

No dia 6, Conceição é levada de novo à Rua António Maria Cardoso, no Chiado, em Lisboa. No calendário, escreve: “Fui à Pide. O Santos Costa queria que eu reconhecesse fotografias.” Na véspera tinha feito 37 anos, mas no calendário não há nada. A 7 de abril, há uma manifestação dos presos às “janelas”, e a 15 de abril os pontos reivindicativos dos detidos seguem por carta para o diretor-geral de Segurança, de novo assinada por estas três Marias, como regista no bloco-notas. “Considerando que nada do que acima se expõe excede um mínimo aceitável de condições prisionais, pedimos que os pontos focados sejam urgentemente atendidos.” Silva Pais volta a ignorar a carta – e só a liberdade faz caducar as exigências dos presos.

A noite de 25 e o dia de 26 são vividos na angústia de saber quem tinha feito o golpe. Setores ultradireitistas ameaçavam o governo de Marcelo Caetano, por o acharem fraco, daí o receio dos detidos. “Em algumas celas, instalou-se a discussão entre os presos que já só pensavam em fazer as malas e os que, com medo, achavam que o melhor era barricarem-se e tentarem, por todas vias, proteger-se”, descreve Joana Pereira Bastos, em Os Últimos Presos do Estado Novo. No seu bloco-notas, Conceição escreve que “às 8 horas da manhã uma força de para-quedistas toma posição diante da cadeia”. E acrescenta: “Chove. Está uma manhã de mistério. O silêncio é total.”

Uma hora depois, nota, um “grupo de advogados”, “pessoas da CDE” (Comissão Democrática Eleitoral, formada pela oposição democrática ao Estado Novo, em Portugal) e jornalistas “estão diante da cadeia”. E gritam: “Estamos aqui todos! Vão ser libertados!” Na estrada, uma força de fuzileiros navais posiciona-se. “Por volta das 10h, esse grupo de pessoas entra pelos portões da cadeia e gritam-nos que está tudo controlado e que vamos ser todos libertados.”

A espera será ainda longa. “Pouco depois abrem-nos as portas. Saímos para o corredor. Todas as portas estão abertas e oficiais percorrem os corredores com um ar sorridente e amável. Recomendam calma. Um oficial explica um bocadinho como as coisas se passaram. Descemos. Lá fora, já estava a Sala 1D. Muitos fotógrafos e jornalistas. Abraços e reconhecimentos.”

Como a libertação de os presos políticos – cuja amnistia tinha sido anunciada pelo capitão Vítor Alves – não era pacífica no seio do Movimento das Forças Armadas, por resistências do general Spínola, que não queria libertar prisioneiros que tivessem ligações às organizações de luta armada, como a ARA, a LUAR e as Brigadas Revolucionárias (às quais estava ligada Conceição), no forte de Caxias o dia 26 foi passando sem que houvesse ordem para libertar.

“Perto das 11 horas dizem-nos que a nossa liberdade não é coisa fácil – recomendam calma e que voltemos de novo para as celas… Ordeiramente e calmamente. Subimos. Vamos visitar o Lado E.”, escreve Conceição Moita. E regista as suas últimas notas desse dia, neste quase-diário: “A Fátima e eu tentamos escondermo-nos na Sala 1E, mas somos descobertas. Voltamos às celas. Arrumamos as coisas. Às 15.30 dão-nos o jornal. A 5.ª edição do Século de 25 de Abril. Às 16h, a rádio transmite um comunicado dizendo que os presos políticos serão libertados dentro da maior brevidade possível.” A brevidade chegaria só às 00h30 de dia 27. A liberdade estava finalmente a passar por ali. “Libertação!”, escreveu Conceição no seu calendário, 141 dias depois de receber ordem de prisão.

 

 

Um arquivo para investigações futuras

Tiras de papel com notas em letra muito pequena, depositadas no arquivo de Conceição Moita. Direitos reservados, reprodução proibida.

Tiras de papel com notas em letra pequena, depositadas no arquivo de Conceição Moita. Direitos reservados, reprodução proibida.

 

O Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa recebeu recentemente espólios pessoais de Maria da Conceição Moita e de Luís Moita, seu irmão, “figuras marcantes do catolicismo português e com destacada atuação cívica desde os anos de 1960”, como descreve o investigador Nuno Estêvão Ferreira, do CEHR, ao 7MARGENS.

“Os papéis pessoais que mantiveram consigo foram doados por familiares ao CEHR”, disse, acrescentando que “o pressuposto destas doações assenta na manutenção em boas condições de depósito e, após a sua organização do ponto de vista arquivístico, na sua disponibilização junto dos investigadores e da comunidade em geral”.

Nuno Estêvão Ferreira recorda que o CEHR possui entre as suas áreas de trabalho a salvaguarda e a valorização do património documental de cariz religioso, sublinhando a importância da promoção de arquivos. “Enquanto unidade de investigação no campo da História, a promoção de arquivos é vital por dois motivos principais: metodologia de trabalho, dado que o peso que os repositórios de fontes de diferentes proveniências assumem no labor historiográfico; responsabilidade perante a comunidade, porque a transmissão da memória é um elemento vital para estabelecer vínculos entre gerações.”

É esta “preservação e a promoção do património documental” qu é realizada no CEHR, “por intermédio da sensibilização de responsáveis de organizações religiosas para a importância de manterem em boas condições os seus arquivos correntes e históricos, como elemento fulcral para demonstrarem os termos da sua atuação e legado à sociedade. Mas o CEHR também disponibiliza recursos para depósito, organização e disponibilização junto da comunidade de espólios pessoais de figuras provenientes de organizações religiosas”, sintetiza o investigador.

No caso de Luís Moita, este antigo professor cedeu o seu arquivo ao Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra, mantendo consigo alguma documentação, que foi entretanto doada ao CEHR. O espólio de Conceição Moita integra um total de 14 pastas, das quais o 7MARGENS consultou já oito.

 

[artigos originalmente publicados no 7MARGENS, em 22 de abril de 2024, nos 50 anos do 25 de Abril; a foto principal é uma captura de imagem de uma reportagem da RTP, no momento da libertação de Maria da Conceição Moita e restantes presos]