Esta é uma história que está por concluir. O capitão Barros Basto sofreu na pele a perseguição antissemita e foi "separado do Exército", por motivos falsos. A família luta há décadas pela sua reabilitação. Eu acompanhei o caso a partir de 2012, no Parlamento, e em 2019 a Defesa confirmava, neste artigo que então publiquei, uma avaliação do processo. Até hoje. Os militares resistem a aceitar que erraram e a reparar aquilo que nem o 25 de Abril conseguiu (ainda) reparar.
A família do capitão Artur Barros Basto voltou a pedir a reintegração no Exército deste militar expulso em 1937 apenas por ser judeu, acusado formalmente de práticas de pederastia, num processo que já se arrasta há décadas, confirmou o DN [em março de 2019].
A reintegração de Barros Basto — que é também pedida pelo Parlamento desde 2012 — está dependente de uma comissão que está a avaliar caso a caso a reintegração nas suas funções de militares e ex-militares que, antes do 25 de Abril, tenham sido "demitidos, reformados, aposentados ou passados à reserva compulsivamente e separados do serviço por motivos de natureza política".
Foi este mesmo artigo que, já em 1975, a viúva de Arthur Barros Basto invocou para pedir a "reabilitação moral e reintegração" do seu marido — que morreu em 1961 "pobre e amargurado" — "anulando-se esse miserando processo que lhe foi organizado e a sentença de separação tão iniquamente mandada cumprir pelo ministro Santos Costa". Lea Monteiro Azancot Barros Basto referia-se à decisão da ditadura do Estado Novo em afastar o militar depois de um processo persecutório contra o capitão condecorado na I Guerra Mundial, que fundou a Sinagoga do Porto e lançou uma campanha nacional e internacional pela busca e conversão de descendentes dos judeus portugueses marranos e é chamado por muitos do Dreyfus português.
Em 1975, a sua viúva bateu numa porta de ouvidos moucos: o novo regime saído da Revolução de Abril não só recusou essa reabilitação como agravou a pena de 1937 com factos nunca provados, com um parecer que, como caracterizou o deputado Carlos Abreu Amorim, "distorceu os factos" e "refê-los de acordo com o feitio que julgava melhor adequado para tornar improcedente o requerimento da viúva de Arthur Barros Basto".
A resposta de 1975 "contradiz a matéria probatória adquirida no processo disciplinar militar n.º 6/1937 que sentenciou Barros Basto" — apontava o deputado social-democrata num parecer da comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, que foi aprovado com uma rara unanimidade de elogio parlamentar —, "extrapola livremente, inventa factos, deles extrai ilações não certificadas e alcança uma segunda condenação póstuma dirigida a Arthur Barros Basto sem qualquer alicerce factual".
Esta nova condenação foi redigida em termos duros, mas falsos como já se viu: "Os factos que justificaram esta decisão, que veio a ser homologada por despacho ministerial, traduzem-se em práticas homossexuais com vários alunos do Instituto Teológico Israelita do Porto, de que era diretor, práticas essas que mantinha de longa data (...) o que nada tem que ver com as cerimónias prescritas pela religião semita", apontou o autor do texto de 1975. A decisão é, para Abreu Amorim, "juridicamente insustentável e moralmente arrepiante".
Barros Basto sofreu na pele a perseguição da ditadura do Estado Novo, em anos marcados por um forte antissemitismo. Nascido em Amarante, em 18 de dezembro de 1887, numa família católica com ascendência criptojudaica, o capitão foi o militar que hasteou a bandeira republicana no Porto e na I Guerra Mundial comandou um batalhão do Corpo Expedicionário Português na Flandres, cujo dia-a-dia documentou em fotografias. Condecorado por bravura militar, recebeu a Cruz de Guerra.
Logo depois do conflito, que terminaria em 1918, Barros Basto converte-se ao judaísmo, retomando a fé de um avô. A sua conversão não é um gesto que guarda na intimidade: Abraham Israel Ben-Rosh, o nome hebraico que adota, desenvolve uma intensa atividade prosélita de procurar e converter descendentes de judeus portugueses marranos, que tinham sido obrigados a converter-se ao cristianismo.
Esta sua Obra do Resgate dos Marranos foi acompanhada de uma revitalização da comunidade israelita do Porto e da construção da sinagoga da cidade. Fundou um jornal, o instituto teológico Yeshivah e apoiou outras comunidades judaicas que surgiram no norte do país.
Se a I República aceitou este ativismo, com base na liberdade religiosa consagrada na Constituição, a ditadura militar saída do golpe de 1926 já não viu com os mesmos olhos a ação de Barros Basto, que começou a sentir na pele uma perseguição clara e foi "sujeito a limitações pessoais e profissionais" que não deixaram "quaisquer dúvidas acerca do incómodo resultante do seu comportamento", como descreve o parecer do Parlamento: "Em 1928, é exonerado da Direção da Casa de Reclusão; em 1931, é-lhe fixada residência fixa com proibição de saídas noturnas; e, em 1932, há uma tentativa de o afastar do Porto colocando-o em Évora (deslocação que acabou por não acontecer)."
São duas cartas anónimas, uma de 1934 e outra de 1935, que colocam Barros Basto na alçada do Conselho Superior de Disciplina militar, com acusações de práticas de homossexualidade. O processo disciplinar militar vai levar ao seu afastamento do Exército, apesar de o absolver nas acusações de comportamentos homossexuais.
Na decisão de 12 de junho de 1937, como escreve Carlos Abreu Amorim — no parecer de 2012 da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República —, o Conselho Superior de Disciplina Militar considera que o capitão procedeu "de modo a afetar a sua respeitabilidade" e "decoro militar" e não procurou "desafrontar e ilibar a sua honra e dignidade tão rudemente atingidas", "declarando Arthur Barros Basto destituído" da "capacidade moral para prestígio da sua função oficial e decoro da sua farda", e aplicando-lhe a pena de "separação de serviço".
O militar "foi "separado do exército" devido a um clima genérico de animosidade contra si motivado pelo facto de ser judeu, de não o encobrir, e, pelo contrário, de ostentar um proselitismo enérgico convertendo judeus portugueses marranos e seus descendentes", nota Abreu Amorim. Em 2012, este deputado afirmava que "o caso de Arthur Barros Basto é um dos poucos que ainda subsistem sem resolução condigna nos países sob um Estado de direito livre e democrático".
A resolução pode estar para breve [2019], apesar de o Ministério da Defesa não conseguir estabelecer um prazo para a Comissão de Apreciação avaliar o pedido da neta do capitão. "Isabel Maria de Barros Teixeira da Silva Ferreira Lopes veio requerer a sua reintegração no Exército e a reconstituição na carreira com o posto de coronel desde 2.11.1945", revelou ao DN o gabinete do [então] ministro João Gomes Cravinho.
O Parlamento reconheceu, em 2012, que "reabilitar Arthur Barros Basto é reconhecer um erro trágico cometido há mais de sete décadas, regenerando, com isso, o presente e o futuro dos portugueses que se quer livre, democrático e tolerante".
De 1496 para o século XX: a história do militar nos ecrãs
É em 1496, quando os judeus foram expulsos de Portugal, que se inicia o filme Sefarad, para melhor contar a história do capitão do Exército português que se converteu ao judaísmo depois da Grande Guerra. Quatro séculos depois, Arthur Barros Basto, que tinha origens criptojudaicas, procura encontrar e converter judeus marranos. E é esta a história que o filme também levou ao festival de cinema judaico de Miami, onde teve a sua estreia mundial em janeiro.
Como relata a sinopse de Sefarad, que foi exibido [em março de 2019] na Casa da Música, no Porto, uns 20 comerciantes judeus da Europa central e oriental juntaram-se ao militar português e fundaram a comunidade judaica do Porto.
Ouvindo falar de descendentes de judeus do século XV que viviam em aldeias do Norte e ainda realizavam ritos judaicos, "convencidos de que eles eram os últimos judeus na terra", Barros Basto "começou a viajar de aldeia em aldeia, de comboio, a pé, a cavalo, para resgatar estes criptojudeus e trazê-los de volta ao rebanho do judaísmo oficial". O filme foi realizado por Luís Ismael e é o ator Rodrigo Santos que dá vida a Barros Basto nos ecrãs.
Cronologia: o Dreyfus português
A família católica. Nasce em Amarante, em 18 de dezembro de 1887, numa família católica com ascendência criptojudaica. O avô chegou a praticar ritos religiosos judaicos, facto que Arthur só conhece na sua adolescência. Converte-se ao judaísmo depois de regressar da I Guerra Mundial.
Apóstolo dos marranos. Já como Abraham Israel Ben-Rosh, nome que adota, empenha-se a resgatar marranos, descendentes de antigos judeus forçados a conversão, e ganha o epíteto de "apóstolo dos marranos". Desde 1921, revitaliza a comunidade israelita no Porto, edifica a sinagoga, funda o jornal Ha-Lapid e o instituto teológico Yeshivah.
O processo de 1937. Em duas cartas anónimas, Barros Basto é acusado de práticas homossexuais, de que é absolvido. Mas o processo disciplinar militar considera provada "a operação de circuncisão a vários alunos" do Instituto Teológico e "intimidades exageradas" com alunos do Yeshivah "beijando-os e acarinhando-os frequentemente".
A segunda condenação. Com o 25 de Abril, a viúva tenta que seja feita justiça ao militar que morreu pobre em 1961. Pede ao então Presidente da República, Costa Gomes, que Barros Basto seja reintegrado no Exército. A decisão é negativa porque se baseia em pressupostos que foram dados como não provados em 1937, como a prática homossexual.
Reintegração avaliada. Em 2012, o Parlamento é unânime em reconhecer a necessidade de reabilitar Barros Basto. Agora, com a lei que repõe a possibilidade de militares e ex-militares requererem a reintegração nas suas funções, a neta pediu a sua reintegração. Há uma comissão de apreciação que avalia agora [2019] o pedido e que depois submete aos ministros da tutela.
[Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias em 16 de março de 2019, e republicado na edição online do DN a 19 de março.]